sábado, 1 de dezembro de 2018

Sonata - Parte 2 - Nathan



Nathan

Nathan dorme em seu apartamento. Crescendo órfão de pai e mãe, ele vive sozinho desde os vinte e dois anos. Quando a sede de ser independente explodiu em seu peito, ele quis perseguir seus sonhos sozinho, descobrir o mundo sozinho, viver a vida intensamente sob o olhar de um explorador rumo ao desconhecido. Atualmente ele trabalha na Electro Core, uma das poderosas megacorporações que governam Sonata.
Mas hoje, aos trinta anos, seu mundo de sonhos e descobertas mostrou-se terrivelmente limitado. Rotinas estressantes e turnos cansativos aos poucos minaram seu lado emocional, onde a recompensa por sua dedicação foi um cargo onde ele iria trabalhar exaustivamente.
Há alguns meses, uma lembrança insistia em habitar sua mente, uma lembrança ruim e impossível de ser esquecida, e toda noite ela invadia seus sonhos e os transformavam em pesadelos.
Quando criança, Nathan brincava pelo apartamento. Sua mãe estava distraída em seus afazeres e não percebeu que a porta foi abruptamente aberta. Exasperado, seu pai entra e rapidamente a tranca. Nathan vê que ele está todo ensanguentado e demonstra muita dor. Ao vê-lo naquele estado, sua mãe se desespera.
- O que houve?! O que aconteceu com você?!
- Não há tempo para explicar... Temos que tirar o Nathan daqui!
- Por quê?!
- A polícia... Eles descobriram meu envolvimento com os habitantes da superfície. Alguém nos traiu!
Indignada, a mulher diz:
- Depois de termos conversado, você ainda manteve contato com aqueles excluídos? Como você pôde...? Como pôde colocar em risco sua família?!
- Não há tempo para explicar! Vocês têm que fugir daqui agora!
- E para onde vamos?!
Antes de responder, a janela de seu apartamento se estoura em milhares de pedaços e luzes vermelhas e azuis invadem o local. Nathan se assusta e começa a chorar.
Uma voz no alto-falante diz:
“Aqui é a Polícia! Saiam com as mãos para cima!”
- Rápido, suba para o terraço!
- Eles vão atirar na gente!
- Pegue o Nathan e suba as escadas, rápido!
“Resistência à prisão será vista como agressão e passiva de força letal” alerta a polícia.
- Devemos nos entregar!
- Se nos entregarmos eles vão nos prender e nunca mais veremos o Nathan! É isso o que você quer?
No aerocarro da polícia, os canos da minigun começam a girar.
“Último aviso. Rendam-se!”
- Eu não quero morrer...!
A mulher olha para as luzes e levanta os braços. Chorando intensamente, Nathan corre para as pernas de sua mãe e a desequilibra, fazendo-a gesticular bruscamente. A polícia abre fogo e sua mãe, juntamente com todo o apartamento, é atingida freneticamente pelas balas.
- Não!!!
O homem agarra seu filho e se deita. Ao final dos disparos, sua mulher cai no chão olhando para ele, mas nela já não havia mais vida. Pegando sua mão, o homem chora amargamente.
- Polícia! Inspeção geral no andar! Abram as portas! – Grita alguém no final do corredor.
Nathan tenta agarrar as roupas de sua mãe, mas seu pai o puxa de volta para si. Levantando-se, ele deixa o apartamento e corre para o elevador. Alguém aparece atrás dele e ordena:
- Parado!
Várias miras lasers atravessavam o ambiente. De repente as portas do elevador se abrem e iluminam a pequena passagem. Com Nathan em seus braços o homem tenta rapidamente entrar, mas tiros são disparados e atravessam suas costas. Caído no chão, o homem não consegue mais sentir suas pernas e isto o faz se desesperar. Com muito esforço, ele se arrasta e põe seu filho no elevador, apertando o botão em seguida. O menino chora histericamente, e seu pai apenas diz:
- Vai ficar tudo bem...
Seu pai sorri e então a porta se fecha lentamente, e essa foi a última vez que Nathan o viu com vida.
Ao chegar ao topo do enorme edifício, o menino deixa o elevador e sobe por uma estreita escada de metal. Saindo ao ar livre, ele sente o vento forte soprar suas roupas e esfriar seu corpo. Ainda assustado, ele corre pelo terraço, o local está cheio de dutos de ar e cabos de transmissão sobre o piso, dificultando sua passagem.
Parando em frente ao parapeito, ele contempla a metrópole lá embaixo. O céu estrelado do anoitecer confunde-se com as brilhantes luzes dos prédios. Nathan vê as enormes torres brilharem com luzes de neon e telões gigantes em suas fachadas. As passarelas irradiavam suas luzes douradas enquanto centenas de transeuntes passavam. A frota infindável de aerocarros cruzavam as megaestruturas em diferentes níveis nas vias virtuais de trânsito.
O anoitecer da megalópole era maravilhoso. O poente contrastava com as brilhantes luzes semelhantes a pedras preciosas sobre torres de concreto e aço. Nuvens negras contrastavam com o céu escarlate. O pequeno Nathan se sentia em um outro mundo, um paraíso onde toda a dor parecia não existir.
Sentindo-se triste e solitário, ele chora em silêncio, chamando por sua mãe. A metrópole apenas olhava para ele, consolando-o com seu alegre brilho.
Minutos depois a polícia aparece. Mirando seus holofotes para os cantos escuros do terraço, eles encontram o pequeno menino sentado no chão. Nathan está abraçado às suas pernas, tremendo de frio e com lágrimas deslizando em seu rosto. A luz forte ofusca seus olhos e, ao ouvir homens conversando, ele engole o choro e pergunta:
- Papai...?
Capturado e sem família, o pequeno órfão é inserido no Programa de Reintegração Social de Sonata, onde ele, com mais centenas de outras crianças órfãs, cujos pais foram presos ou mortos em confrontos armados, cresceu e se educou nos padrões da sociedade corporativa.

§

De repente ele acorda. Sentando-se à beira da cama, ele olha para o relógio e vê que horas são. Três horas da manhã. Faz meses que ele acorda nesse mesmo horário, sentindo dificuldade para voltar a dormir. Ele se sente mal, uma angústia estranha cresce em seu peito, seu coração se aperta.
Nathan sonhou com seus pais de novo. Lembrando-se da paisagem noturna, era como se a lembrança de seus pais estivesse eternamente amarrada a ela, onde sua mente criava uma fuga, colocando uma imagem feliz para suplantar outra triste. O rapaz põe as mãos no rosto e se lamenta.
Então ao longe ele ouve uma explosão. Intrigado, ele se levanta e caminha até a janela. No topo de uma megatorre ele vê chamas e vários aerocarros da polícia se dirigirem ao local. “Não é naquele terraço onde instalaram a nova torre de transmissão da Cybersys?” pensa ele.
Ignorando o caso, ele aperta um botão na parede e se afasta. Uma cortina lentamente se abaixa até tampar a visão lá fora. Atentados terroristas eram tão comuns naqueles dias e os cidadãos aprendiam a conviver com eles, mesmo Nathan se sentia sortudo por ainda estar vivo. Então ele finalmente sussurra:
- Malditos terroristas...
Nathan vive em um apartamento unicelular. Apertando um botão na parede, Nathan ativa a lavanderia e joga suas roupas sujas na máquina de lavar. Apertando outro botão, a lavanderia se retrai e uma cozinha se forma. Ele retira bandejas de comida congelada da geladeira e as põe no micro-ondas. Um botão retrai sua cama e forma uma pequena sala, mas não retrai a cozinha já montada. Sentando-se numa pequena poltrona, ele tenta descansar um pouco.

§

Na manhã seguinte, os trabalhadores assistem ao noticiário na TV do aerometrô.
“O Ministério da Segurança Pública decreta esta noite – às 22:00 – um Toque de Recolher em todo o distrito de Autremont, Setor N. Todos deverão estar em suas casas após este horário. Vários locais de acesso público serão interditados, o aerometrô encerrará suas atividades e qualquer forma de transporte durante a noite estará estritamente proibida. A polícia visa manter a ordem e conta com a cooperação popular no combate ao terrorismo e a outros atos subversivos”.
Nathan assiste ao noticiário. Os toques de recolher estão ficando cada vez mais frequentes. A liberdade mais uma vez é ameaçada pelos atentados cada vez mais ousados.
“Próxima estação: Skyline. Saída pelo lado direito do trem”.
Nathan deixa o aerotrem e caminha entre a multidão apressada, dirigindo-se às escadarias e em seguida à saída da estação.
Minutos depois, o rapaz se vê em uma pequena sala. O ventilador de teto gira lentamente, a cortina persiana deixa passar timidamente a luz do dia e o relógio de ponteiro faz ruídos metálicos com o passar do tempo. Nathan está sentado em um sofá, mas se sente um pouco desconfortável.
Sua mãe, sentada em uma poltrona à sua frente, pergunta:
- O que te traz aqui, Nathan?
- Estou com um problema, mãe, e preciso de ajuda.
- E do que se trata esse problema?
- Estou confuso... – seu corpo treme e sua garganta quase emudece ao terminar – Eu me sinto solitário e perdido.
Sua mãe lhe faz um olhar bondoso e compreensiva.
 – O que quer dizer com “solitário e perdido”?
Nathan não sabe como descrever seu problema, mas responde:
- Estou insatisfeito com minha vida. Nada mais parece me dar prazer.
Erguendo as sobrancelhas, sua mãe respira fundo, retira seus óculos e responde:
- Você sabe o que me dá prazer, Nathan? As pequenas coisas da vida, tão pequenas e insignificantes que as pessoas mal conseguem ver. Está vendo meu ventilador de teto, meus óculos e meu relógio de ponteiro?
Confuso, o rapaz responde:
- Sim.
- As pessoas sempre criticam o estilo retrô, o chamam de antiquado e fora de moda, afinal para que um ventilador se há ar condicionado? Para que um relógio de ponteiro se há o relógio digital? Para que gostar do século 20 se o século 23 é o século do desenvolvimento e dos gloriosos avanços tecnológicos? Quer saber por quê?
Acanhado, Nathan responde:
- Quero, eu acho.
- Porque sim! – responde ela, alegremente – Você é o que é porque nasceu assim. Não se pode mudar a mente e os pensamentos, “penso e logo existo” como diria Descartes. Esta verdade é incontestável, todos somos diferentes, todos pensamos distintamente, e é isto o que nos torna humanos.
- Mas o que isso tem a ver comigo? – Pergunta ele, mantendo o foco do assunto.
- Tem a ver que não importa o quanto se sinta solitário e insatisfeito, você sempre terá o seu caminho para trilhar e buscar ser feliz.
Nathan então se cala. A sala fica em silêncio, exceto pelo ruído constante do ventilador de teto.
- Mãe, eu não entendo. Por que nada nessa cidade me compele como a tantos outros lá fora? Por que, para todo o lado que eu olho, só vejo o vazio?
- Porque o vazio está dentro de ti, Nathan. Temos nossas necessidades e eles têm as deles, seja material ou emocional. Talvez a felicidade deles esteja no consumismo pueril, mas você não precisa ser assim se não desejar.
- Não é justo a sociedade me rebaixar assim, me transformando em um ignorante consumidor de futilidades e banalidades, um escravo da tecnologia. Gostaria de não ter que suprir o vazio que sinto com bens materiais.   
Sem demonstrar emoção, sua mãe pergunta:
- Reconheço sua insatisfação, mas responda-me uma coisa: falta alimento em sua casa?
O rapaz se confunde.
- Não.
- De tudo o que acha fútil e banal, todos esses produtos supérfluos que as pessoas consomem, você compra alguns deles?
- Eu comprava antigamente, mas não compro mais.
- E quanto ao seu trabalho? Já ficou desempregado?
- Não.
- Já viu algum miserável mendigar nas ruas da metrópole?
- Não.
- Por falar nisso, já viu algum desempregado?
- Também não.
Sua mãe sorri.
- Sei qual é o seu problema, você tem o que chamamos de Síndrome de Adão e Eva. Vive em um lugar perfeito, mas se deixa enganar por um agitador, um enganador, a Serpente. Então torna-se insatisfeito e se rebela para conhecer a verdade, descuidando-se da amarga consequência que certamente irá te trazer. Nathan, você vive em uma sociedade que lhe dá alimento, moradia, trabalho, educação, saúde e entretenimento. Apesar de ter tudo, você ainda quer mais. Então se sente vazio e triste, culpando a sociedade e seu criador.
- Não sei se é prudente comparar as megacorporações com Deus.
- E a que você compara a si mesmo? A um homem imprudente que tem tudo e se revolta, acabando por ser banido no final? Não deixe sua mente ser sua Serpente, Nathan. Não deixe sua tristeza te influenciar. A não ser que haja alguém te influenciando?
Ele respira fundo e responde:
- Não há.
- Pois bem.
De repente sua mãe se deforma, como uma imagem de TV com transmissão ruim. Uma voz nas paredes diz:
“Ei, cara, seu tempo está acabando. Se quiser ficar mais terá de pagar vinte créditos”.
- Está bem, eu já vou sair. – responde Nathan, desanimado.
A imagem holográfica de sua mãe retorna e fica em perfeita definição. Um holograma, um estúpido holograma era o que Nathan usava para conversar – ou fingir que conversava – com sua mãe. Mas se ele ignorasse as respostas sem sentido ou fora de contexto, conseguia enganar-se e matar as saudades por algumas horas. Ele pensa o quanto era patético. 
“Pai, por que você teve que se envolver com os excluídos?” pensa ele. Então Nathan se lembra de algo: a superfície.
- Mãe, o que existe no nível inferior de Sonata?
- Nível inferior? – pergunta ela – Está se referindo à superfície?
- Sim.
- Por que você quer saber? Está além dos limites permitidos, é acesso restrito.
- Eu não sei, mas sinto que há respostas para mim lá embaixo.
- Não entendi. Que respostas pode haver para você na poluição e nos esgotos?
- Eu não sei. Talvez a resposta que preciso esteja na superfície.
A conversa com o rapaz está ficando perigosa demais. Os algoritmos do holograma não podem sugerir e nem estimular que seus clientes infrinjam a lei.   
- Sugiro que fique nos níveis superiores. Eu não acho que há nada de bom para se ver lá embaixo.
- Mas por...
- Nosso tempo acabou.





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