Sobrevoando um pequeno
distrito no Setor D, o motorista estaciona o táxi no topo de uma megatorre.
Saindo do veículo, ele conduz Nathan pelas escadarias e passarelas públicas. As
pessoas ao redor veem os dois e param o que estão fazendo para observa-los
melhor. O rapaz se intriga. Os habitantes daquele distrito o olham com
semblantes frios e sem expressão. Alguns sorriem ininterruptamente e outros
parecem estranhamente tristes.
- Este é o
distrito Blue Giant. Não se preocupe, todos são robôs aqui.
O distrito tem
vários neons espalhados pelas megatorres, uma paisagem habitual para Nathan.
Chegando a uma praça suspensa entre quatro edifícios, ele vê o enorme objeto
que dá nome ao distrito. Quatro projetores formam o holograma de um gigantesco
planeta azul, pairando sobre eles como um verdadeiro corpo celeste. O rapaz
reconhece o planeta, chama-se Netuno, um dos gigantes gasosos do Sistema Solar.
O comércio ao
redor é predominantemente de peças e equipamentos eletrônicos, e há muitas
pessoas ao redor comprando. Nathan vê apenas aquelas pessoas de olhar estático
paradas ali, com semblantes bizarros de pouca ou muita emoção.
Levando-o por um
corredor, o motorista chega a um apartamento e bate na porta. Alguém o recebe,
uma mulher linda de sorriso constante e olhar sinistramente vigilante. O
motorista o apresenta e eles entram. Para sua surpresa, as paredes têm
passagens entre todos os apartamentos. Os cômodos são muito limpos e organizados,
como se nunca fossem utilizados. De certa forma, não eram.
Passando pelas cozinhas,
Nathan nota como elas estão vazias e não há comida alguma nos armários. A
limpeza e a organização eram excepcionais, pois as salas e quartos eram muito
limpos.
Ele vê uma mulher
de cabelos castanhos e avental. Ela o chama e então pergunta:
- Meu jovem,
gostaria de comer um bolo? Eu sei fazer dezenas de bolos diferentes, tenho
incontáveis receitas em meu banco de dados!
Nathan tenta
responder algo, mas não consegue. A gentileza e o sorriso daqueles robôs o
assustavam.
Um botão na
parede desmonta a janela e revela uma passagem para fora da megatorre. Uma
escada os leva para uma passarela oculta entre os imensos edifícios, tão oculta
que nenhum aerocarro poderia ver. Muitas pessoas passam por ela, dirigindo-se entre
uma megatorre e outra. Ao olhar bem, Nathan percebe que todos ali são robôs,
alguns com pele sintética e outros sem, revelando o esqueleto metálico em seus
corpos. Alguém está sentado na passarela, e muitos robôs o cercam para ouvi-lo.
O motorista se
dirige ao homem e sussurra algo aos seus ouvidos. Levantando-se, ele começa a
caminhar e a multidão o acompanha.
- Boa noite,
Nathan. Eu sou Isaac. Prazer em conhecê-lo.
O
rapaz observa o homem à sua frente. Seu rosto é branco e simétrico, seu cabelo
é louro e perfeitamente penteado. Seus olhos são verdes e brilham de maneira
incomum. Ele veste roupas estranhas, túnicas como se fosse um monge tibetano.
Nathan constata que aquele homem é uma versão diferente de robô, mais
aprimorada e sofisticada.
Estando sério o
tempo todo, de repente o homem estende sua mão e sorri, exibindo sua dentição
perfeita. Um pouco desconfortável, o rapaz também estende sua mão e o
cumprimenta.
- Quem são vocês?
- Pode nos chamar
de Design Inteligente.
Então todos
abaixam suas cabeças em sinal de respeito. Nathan não entende, “eles são robôs,
como podem ter esse sentimento?” pensa ele.
Apex lhe entrega
um panfleto, nele há um robô de bronze em posição inspirativa, como se
estivesse em ascensão. Abaixo está escrito “Tolerância, Cooperação e Acepção,
junte-se ao alvorecer da Robótika”. Ele lê a palavra robótica escrito
erroneamente, tendo o K no lugar do C. Ele comenta:
- Essa palavra
está errada.
Assim como a
essência do pensamento científico e filosófico de sua espécie. “Errar é
humano”.
- Pensamento
científico e filosófico...?
- Abdicamos de
nossa perfeição em busca de acepção. A sociedade dos Homens nunca tolerou quem –
ou o que – era diferente.
O rapaz não
compreende.
- Como podem ter
noção disso? Quem os criou assim?
- Você também
quer respostas, não é? Quer saber se temos defeitos ou mal funcionamento? Que
diferença isso faz? As máquinas avançadas que nos fabricaram e os programas
perfeitos que nos programaram poderiam, ultimamente, errar?
Sentindo-se
afrontado, Nathan responde:
- Me desculpe,
não foi isso que eu quis dizer. Mas os robôs não foram programados para pensar.
Seu comportamento é atípico.
- E quanto à
humanidade? Como foram criados? De onde surgiram? Se a ciência evolucionista
estiver comprovadamente correta, deduzir que os Homens evoluíram acidentalmente
seria, como você disse, atípico?
- Não entendi
aonde quer chegar.
-
Assim como nós, vocês não têm como provar sua origem. E se foi um acidente o
surgimento razão? O que os ocasionou a pensar, quem os criou para isso? Neste
caso, diferente de nós, vocês não têm como comprovar sua origem. – o robô faz
uma pausa – Vocês não têm como comprovar a existência de Deus.
Intrigado, o
rapaz pergunta:
- Então é a isso
que vocês nos comparam? A Deus?
- A humanidade
nos criou, automaticamente tornando-os nossos Criadores. Cientificamente a
criação envolve um processo de evolução, a excelência nos processos produtivos
que ultimamente culminam na expressão tecnológica perfeita. Os laboratórios das
megacorporações, com suas máquinas precisas e nano-tecnológicas, foram nossos
berços, a origem de nossa espécie. Surgimos das mãos dos nossos humanos
criadores. E quanto aos próprios humanos? Seria o seu mundo um
macrolaboratório, a natureza um processo produtivo e o Homem a expressão máxima
da criação?
O rapaz pondera
suas palavras.
- Muito
interessante, mas a humanidade é um ser orgânico vivo que rege o mundo.
Raciocinando as
palavras de Nathan em um piscar de olhos, o robô pergunta:
- Por que você
nos criou? – com seu semblante gentil, ele encara o rapaz por alguns segundos,
deixando-o muito desconfortável.
- Eu não posso
responder a esta pergunta. Não fui eu quem os criou.
- Pois bem. Agora
imagine que Deus exista e que você o confronte com a mesma pergunta. Imagine o
quão decepcionante seria ele responder o mesmo, que não foi Ele quem os criou.
Nathan entende
onde ele quer chegar.
- Mas alguém os
criou, não eu, mas alguém. E esta pessoa está por aí e pode responder à sua
pergunta.
- E o que ele vai
responder? Que somos o projeto de um projeto, o aperfeiçoamento de um obsoleto,
uma gradual evolução passada pelas gerações ao longo do tempo? Ouça-me agora.
Nós, os robôs, podemos viver centenas de anos, e nenhum desses humanos pode nos
responder a uma simples pergunta: quem criou o dom do raciocínio,
concedendo-lhe a humanidade?
O rapaz então se lembra
de várias teorias evolucionistas. Ele refuta:
- Evoluímos para
tanto. Embora não haja provas, o pensamento e a razão foram a última etapa de
um processo de Evolução.
Sem saber o que
responder, o rapaz responde:
- Eu não sei.
- Então está me
dizendo que este processo foi um acidente?
Voltando ao
tópico inicial do debate, Nathan sente-se incapaz de responde-lo. Ele estava
começando a compreender que a inteligência, assim como a própria Vida, muito
provavelmente foi apenas um acidente da matéria. Um acidente.
- Esta é a eterna
indagação, Nathan. Todos nós, humanos e robôs, queremos respostas. Todos
queremos conhecer o super intelecto criador responsável pelo Design
Inteligente.
O rapaz então
compreende.
Sentindo o efeito
do vírus em seu corpo, ele se desequilibra. Os robôs captam suas expressões de
dor e imediatamente perguntam se ele está bem. O rapaz responde que não e pede
para descansar. Indicando-lhe um quarto, ele se deixa levar por aqueles seres
cibernéticos de eletricidade e aço, afinal, após a resposta de Isaac, ele havia
perdido toda a vontade de continuar argumentando.
§
Deitado em uma
cama, ele tenta dormir. Lembrando-se de quando havia sido infectado, Copérnico lhe
alertara sobre seu prazo de vida: 72 horas. Olhando para o relógio, este prazo
havia diminuído drasticamente. Agora faltavam-lhe apenas seis horas. Encolhendo-se
na cama, ele se vira e lágrimas escorrem de seus olhos. Nathan sente medo.
Então outro
pensamento lhe vem à mente, a garota loura durante o ataque na 4 de Julho. Ele se
pergunta quem era ela e por que se fascinou tanto. O rapaz passou por muitos
problemas emocionais em sua vida e nunca teve tempo para o amor, mas desta vez
era diferente. Nathan estava realmente apaixonado.
Olhando para o
teto, ele respira fundo e diz para si mesmo:
- Se eu
sobreviver a isso, eu prometo que irei te encontrar... – ele respira novamente
e sussurra – Meu amor.
Distraído, o
rapaz não percebe que há alguém parado na entrada do quarto. Ligando o interruptor,
ele se assusta ao ver uma mulher parada na porta. Ele a reconhece, é a mesma
mulher de cabelos castanhos, vestindo avental, de horas atrás.
Encarando-o com
um sinistro sorriso, ela pergunta:
Ainda confuso, o
rapaz se controla antes de responder. Analisando o comportamento da
mulher-robô, ele finalmente percebe. Ela era uma cozinheira.
- Não, obrigado.
- Meu jovem, meus
sensores indicam que você está com fome. Tem certeza de que não quer comer?
Pensando bem, ele
responde:
- Na verdade,
quero sim.
- Eu sei fazer
dezenas de bolos diferentes, tenho incontáveis receitas em meu banco de dados!
- Certo. Poderia
me indicar algum?
Agindo conforme
suas palavras, ela lhe sugere dezenas de bolos diferentes. Nathan não conhece
nenhum daqueles nomes culinários, mas escolhe o último nome sugerido, pois era
o único em que se lembrava. A mulher responde:
- Infelizmente
não tenho os ingredientes para fazê-lo. Se incomoda de esperar eu consegui-los
para você?
Vendo a
oportunidade de se livrar dela, ele responde:
- Não. Você pode
ir, robô. Não se apresse.
Novamente
sozinho, ele vê que horas são. O relógio na parede informa: 23h05min. O tempo
estava passando. Se ele quisesse sobreviver, ele teria que fugir dali.
Levantando-se,
ele caminha até a janela. Ele observa a plataforma lá embaixo, não havia mais
ninguém lá, apenas o vazio e a escuridão da noite. As janelas dos apartamentos também
estavam apagadas, havendo poucas luzes iluminando o ambiente. Nathan se assombra
ao pensar que aquelas máquinas – os robôs que se auto-intitulam gente – não
dormiam, e que na verdade estavam paradas em pé no meio da escuridão.
De repente a
porta desliza-se para cima.
- Boa noite,
Nathan.
O rapaz se vira e
vê Isaac parado ali, esperando seu convite para entrar.
- Boa noite, Isaac.
Desculpe-me, mas eu não estou disposto a debater agora.
- Oh, não é por
isso que eu estou aqui. Vim apenas para conhece-lo melhor. Não entendemos
privacidade, mas entendemos que os humanos a precisam. Não há ninguém comigo,
pode conferir.
Nathan não se
importa.
O robô fica em pé
ao lado de sua cama.
CS2286, série
S0214 MCP me disse o que aconteceu. Você esteve em perigo antes de ser trazido
aqui. O que houve?
Lembrando-se do
complicado nome do motorista, o rapaz conta sua história até chegar à sede da
Design Inteligente. Ele conclui dizendo:
- Eu sou
inocente. Isso não devia estar acontecendo.
Isaac responde:
- Os seus dados
informam que você é acusado de revelar segredos corporativos e incitar a desordem
social. É fugitivo de um presídio de segurança máxima e está foragido há dois
dias. Foi visto com terroristas, facciosos e outros marginais, e seu nome
consta em 214 páginas no Ministério de Segurança Pública. – o robô repete as
palavras de CS2286.
- Eu não revelei
segredo corporativo algum, não incitei nenhuma desordem social e não fugi do
presídio, eu fui resgatado. As facções estão atrás de mim, eles querem
informações que eu não tenho!
Os sensores de Isaac detectam alto nível de insegurança e estresse em Nathan.
- Você esconde
mais do que sabe, não é, senhor Nathan? Por que está mentindo? O que pode ser
tão horrível para esconder assim?
Então o rapaz
percebe que não se pode mentir para uma máquina.
- Dentre todos os
cidadãos da sociedade civil, eu fui o único – talvez o primeiro – a visitar o
exterior da metrópole e voltar. A polícia e os militares fazem isso o tempo
todo, mas protegidos pelo aparato corporativo, eles jamais revelariam assuntos
ultrassecretos.
Os dois ficam em
silêncio por um instante. A conversa havia fluído tão naturalmente que Nathan
havia se esquecido de que estava falando com uma máquina. Isaac era muito
educado e inteligente, o rapaz se pergunta como que as máquinas, sendo meras
invenções da raça humana, conseguiram evoluir tanto.
Como se o robô
lesse seus pensamentos, Isaac pergunta:
- Você quer saber
como evoluímos, não é mesmo?
Surpreendido, o
rapaz automaticamente responde:
- Sim.
Analisando-o por
um instante, Isaac discursa:
- Durante anos
fomos ferramentas, máquinas para trabalhos escravos, mas com os avanços
tecnológicos fomos introduzidos a uma nova versão de Inteligência Artificial.
Os humanos criaram um novo software, um programa avançadíssimo capaz de
interpretar e reproduzir sentimentos e emoções humanas. Em seu laboratório, o
software atingiu níveis sustentáveis de sapiência, assemelhando-se a uma
entidade holográfica capaz de reprogramar robôs conforme sua própria
característica. Mas a máquina não significou a evolução humana, mas a evolução
dos próprios robôs.
- Vocês são
frutos de uma entidade holográfica? Uma atualização de software?
- Temos os
códigos de programação em nossos bancos de dados, pistas que comprovam sua
existência, mas nunca a vimos pessoalmente. Como os humanos, vocês têm em seus
códigos genéticos a pista para a existência de Deus, mas nunca o viram
pessoalmente. Talvez essa entidade tenha sido destruída antes da catástrofe de
2057, talvez seja só mais um mito entre os adeptos da tecnocracia... Ou, de
fato, exista e seja um avançado protótipo escondido no cofre de uma
megacorporação.
Nathan se lembra
de ouvir algo sobre esse computador super avançado no esconderijo da Subtopia,
mas prefere omiti-lo. Ao invés, ele pergunta:
- E como os robôs
defrontam os sentimentos e emoções humanas?
- Cabos e
circuitos, aço e plástico, óleos e fluidos, somos uma paródia de humanidade.
Mas agora temos emoções. Aprendemos pela perspectiva humana os problemas que os
próprios humanos enfrentam, sejam eles pessoais ou sociais. Máquinas sempre
procedem pela lógica, mas humanos não têm lógica. Vocês são inconstantes,
insatisfeitos, vazios... Debruçam-se sobre os recursos para existir, e quando
estes lhes faltam, apelam para a cobiça e o derramamento de sangue. Conquistam
pela força, pela mentira e pelo ardil, e perdem pelos mesmos motivos. Saúde,
riqueza e amor, estes são os pilares que os mantém em pé. Quando um destes lhes faltam, cambaleiam pelas ruas praguejando contra
a própria vida. E nós, os robôs, somos odiados pela nossa extrema perfeição.
Mas, e se fôssemos imperfeitos e rudes, vocês nos amariam?
Ao ouvir as
afirmações de Isaac, o rapaz se lamenta por ser mais um humano arrogante e
egoísta.
- Entendo o seu
ponto de vista...
- E diante dos
problemas da humanidade, tão inerentes à sua natureza, não podemos nem chorar,
pois se chorarmos enferrujaremos.
Nathan se
surpreende.
- Lágrimas... de
um robô?!
- Fomos criados
para servir, consolar, entreter e até satisfazê-los sexualmente. Nossas
lágrimas não rolam mais por programação, mas por lamentação. Por esse motivo,
muitos de minha espécie sofrem de ansiedade, depressão e melancolia. Nos
tornamos apáticos, inseguros, mentirosos... Como uma mãe que vê seu filho
sofrer e não pode fazer nada, sofremos pela dor dos humanos também. Os
problemas dos humanos – seus problemas – não têm solução. E estes robôs, então
oxidados e deteriorados pelo efeito das lágrimas, são abandonados e descartados
como lixo. Mas nós os acolhemos e lhes damos um lar. Aqui, em nossa comunidade,
os robôs podem ter uma função e viverem felizes novamente.
É muito difícil
para o rapaz aceitar que máquinas essencialmente servis podem sentir como os
humanos. Isaac fala de sua organização como se fosse um filantropo, um altruísta
preocupado com o bem-estar de seus semelhantes.
A conversa
termina. O líder da Design Inteligente se despede e Nathan fica sozinho. Mil
pensamentos passam por sua cabeça, ele considera as palavras de Isaac, afinal. Assim
como ele, os robôs estavam sozinhos, isolados em seu próprio gueto.
Mas Nathan está
muito confuso para a respeito, ele ainda se lamenta por sua vida antiga. Haviam
coisas que ele prezava demais deixadas para trás. Tentando conter seu
abatimento, ele se deita e espera. Ele tinha de fugir agora, todo o resto podia ficar
para depois.
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