Voando pelo
distrito industrial, Nathan olha para as chaminés expelindo rajadas de fogo e
se distrai. Ele agora percebe que sua situação piorou e não há mais nada que
pode fazer para voltar atrás. A qualquer momento a polícia de Sonata inteira
estará à sua procura. Sua fuga induzida causará uma Lei Marcial, as autoridades
terão a aval para invadir os apartamentos dos cidadãos e permissão para
executar sumariamente os desordeiros.
Em uma metrópole onde
a informação é restrita, nunca ninguém ouviu falar de alguém que fugiu da
prisão, nem mesmo sabiam que isso era possível. Se Nathan é o primeiro, é
melhor a população não saber que a culpa é sua por suas vidas ficarem bem
desagradáveis de agora em diante.
§
O distrito
comercial Titan é bastante exótico. Ele tem centenas de neons e passarelas
movimentadas ligando as modernas megatorres. Os velozes e caríssimos aerocarros
passam frequentemente entre os edifícios, atraindo o público apaixonado por
motores potentes. A música alta, com batidas divertidas, empolga os clientes, deixando-os
mais à vontade. Os túneis dentro dos edifícios são limpos, organizados e
iluminados por diversas luzes coloridas. Restaurantes elegantes têm mesas com
vista panorâmica para a bela paisagem comercial, e as lanchonetes servem
comidas mais casuais, como o fast-food tão popular entre os
mais jovens.
Vendo o movimento
intenso, Nathan se contagia com a felicidade daquele ambiente, tornando aquele
distrito de Sonata muito agradável.
Obedecendo ao
trajeto no GPS, o aerocarro cruza o setor e começa a subir para o topo das megatorres.
No terraço de um edifício Nathan vê um letreiro escrito “VHS Nightclub”, uma
casa noturna localizada à beira da vertiginosa altura do terraço com
plataformas de aço em sua entrada. O aerocarro pousa no terraço e a voz do
computador de bordo diz: “você chegou ao seu destino”.
Em Sonata, para
escapar da rotina estressante e da longa jornada de trabalho, as casas noturnas
se tornaram uma excelente opção para se descontrair. Como uma febre, elas
rapidamente se espalharam, havendo pelo menos uma em cada distrito comercial e
outras centenas abertas clandestinamente nos distritos residenciais. As casas
noturnas são bastante populares e fazem parte do estilo de vida metropolitano.
Atendendo ao
celular, Maynard sai do veículo antes. O rapaz abre a porta e se pergunta
porque aquele desconhecido o trouxe à um lugar tão incomum.
- Sr. Nathan, há
opções melhores para se divertir.
- O quê?
- O VHS Nightclub
tem uma dúzia de notificações no Ministério da Saúde, e três ordens oficiais de
fechamento.
- Você está
falando comigo... E sem eu pedir? Como?
- Inteligência
artificial. Atualização aprovada pelo Ministério dos Transportes instalada nos
últimos veículos desde 01/08/2278 pela corporação Hoverdrive.
Nathan se intriga.
- Por que o VHS
Nightclub recebeu tantas notificações?
- Alimentos estragados,
bebidas tóxicas, falta de higiene, venda de cigarros clandestinos, instalações
precárias, sonegação de impostos e venda ilegal de substâncias químicas
alucinógenas.
- Meu Deus...
- Neste distrito
há outros bares e restaurantes que correspondem ao seu padrão de conforto.
Aceita uma sugestão?
- Conforto...? –
Nathan não terá mais conforto, pois um caos irremediável arrasou com sua vida.
Se ao menos a máquina pudesse avaliar a crescente angústia que ele sente em seu
peito... – Não obrigado. Na verdade, eu não vim aqui para me divertir.
Descendo os degraus
da plataforma, ele se aproxima da entrada da casa noturna. Os seguranças o
encaram. Por suas aparências, Nathan percebe que está em um antro de marginais.
Ao verem o mercenário,
eles o reconhecem:
- Maynard?
Os
seguranças sorriem, exibindo seus dentes de aço. Eles abrem passagem e o rapaz
entra, muito confuso com tudo aquilo.
A primeira
impressão que se tem no VHS é que se está em um ambiente ilícito, frenético,
onde tudo é permitido. O ambiente escuro, a música alta, a nuvem de fumaça e os
alegres dançarinos de fim de semana compõem o interior da casa. Nathan vê
homens vestindo jaquetas com ombreiras, camisetas vinil e óculos coloridos. As mulheres
vestem roupas com a estampa de pele de animais, como leopardos, panteras e
tigres. De fato, aquele era uma casa noturna com um estilo bastante retrô.
O rapaz se sente
incomodado, demonstrando incompatibilidade e certa repugnância ao lugar.
- O que você pensa
que está fazendo? – pergunta alguém atrás dele.
Ele se vira e vê
uma mulher de mais ou menos quarenta anos com os olhos pintados, cabelo roxo e
forte maquiagem no rosto. Suas roupas são extravagantes e ela segura um cigarro
na ponta dos dedos, soltando fumaça enquanto o encara com olhar entediado.
- O quê?
- Você não viu o
aviso “proibido a entrada de idiotas” lá fora?
- Não...
- Não seja
estúpido. – interrompe ela – Do jeito que você entrou aqui e a maneira que se
comporta é como se tivesse escrito “eu sou um imbecil” na sua testa. Você está
perdido? Veio pedir informação para achar a casa da sua mãe?
- Bem, eu...
- Relaxe. Aqui é
o VHS Nightclub, uma casa noturna oitentista. Você não precisa chegar aqui
bancando o cidadão decente e bom demais para esse lugar. Aqui você pode ser o
que quiser, fazer o que quiser e se vestir como quiser, como nos velhos tempos
do séculos 20. Você não engana ninguém, qualquer um aqui sabe que você não é
nenhum certinho só de olhar para sua cara. O que você esconde? Que modificação
ilegal você tem em suas próteses biomecânicas? Tem algum implante neural em seu
crânio?
Nathan se
surpreende. Como ela adivinhou o que ele escondeu durante anos? Ele fica sem
saber o que responder.
Atrás deles,
alguém sentado à mesa a chama:
- Ei, garçonete!
Eu ainda não recebi minha cerveja!
Ela
se vira e volta ao bar, respondendo com a mesma grosseria como se aquilo fosse
normal ali. “Garçonete?” pensa ele, uma simples garçonete foi capaz de
desmascará-lo em poucos minutos. É tão óbvio assim que ele não é tão inocente
quanto aparenta?
Ao lado da parede
há uma mesa com bancos almofadados iluminada por um belo lustre. Maynard está
ali e o convida para se sentar. Nathan se aproxima lentamente, sob os olhares
intimidadores dos frequentadores do local.
Sentando-se, o
rapaz observa o homem à sua frente. A jaqueta de couro, os cabelos castanhos, a
calça jeans e as botas marrons são inconfundíveis. É uma aparência bem
antiquada.
- Quer um drink?
– pergunta ele e antes do rapaz responder, Maynard chama a garçonete de cabelo
roxo e diz – Por favor, traga duas doses de vodca.
Os dois ficam em
silêncio por alguns minutos. A garçonete volta com os drinks e então Nathan
pergunta:
- Por que você me
ajudou?
- Não quer saber
quem eu sou primeiro? – ele lhe devolve a pergunta – Gostei de você, você é
objetivo, prático, diferente do paspalho inseguro que pensei que fosse. Vai
direto ao ponto... Formidável. E primeiramente quer saber por que eu te ajudei?
– ele bebe um pouco da vodca antes de responder – Por dinheiro, é claro.
- Por dinheiro?
- Mas é claro, eu
fui contratado para isso. Você chamou a atenção de alguém que quer muito
informação, e nessa cidade informação é poder.
- Quem
exatamente?
- Já ouviu falar
da facção “4 de Julho”?
O rapaz se
intriga.
- Aquele grupo
paramilitar político que defende a soberania dos Estados Unidos? A polícia
ainda não os desmantelou?
- Certamente não.
- Que tipo de
informação eles querem comigo?
O mercenário
limpa os dentes frontais com a língua antes de responder.
- Você esteve
fora da Contenção, não é? O que quer que tenha visto lá fora chegou ao
conhecimento deles e agora eles querem vê-lo. Eles planejavam sabotar as redes
corporativas quando souberam ao seu respeito. Parece que você virou uma
celebridade entre os hackers, espiões e ativistas em Sonata. No ciberespaço não
se fala em outra coisa.
- Não acredito
que um grupo terrorista se interessou por mim a esse ponto.
- Bem, terrorista
ou não eles têm muitos recursos. Meus serviços não são baratos. – responde ele,
sem se importar – Mas, mudando de assunto, o que aconteceu no exterior da
metrópole?
Nathan não sabe
por onde começar.
- Eu fui
capturado por uma organização obscura, composta de banidos e aberrações
cibernéticas. Eles me infectaram com um vírus, o mesmo de 2057, e agora tenho
72 horas de vida.
Olhando para o
relógio, o mercenário diz:
- Tecnicamente
você tem apenas 52 horas agora.
Não entendendo se
aquilo foi um alerta ou uma piada, o rapaz prefere continuar acreditando que
Maynard podia ajuda-lo.
- Para me curar
preciso encontrar um homem que vive na superfície, um tal de Database...
Ao dizer esse
nome, o mercenário interrompe seu drink e lhe encara de outra forma. Mudando
rapidamente seu semblante, Maynard ergue as sobrancelhas, respira fundo e então
responde:
- Parece que você
está bem enrascado, hein garoto.
O homem então volta
a beber tranquilamente.
- Você não vai me
ajudar?
Maynard se sente
ultrajado.
- Eu te tirei da
prisão, não tirei?
- Eu fui
infectado por um vírus. Se eu não me curar a tempo eu vou morrer!
- Percebi mesmo
que você está meio pálido.
- Você precisa me
ajudar a encontrar a cura...
- Ouça, garoto.
Meu negócio não é curar e sim atirar nas pessoas. Me procure se precisar desse
tipo de serviço.
Maynard se mostra
intransponível. Irritado com a tremenda insensibilidade e frieza do homem,
Nathan pergunta:
Maynard ri.
- Você é idiota
ou o quê?
O rapaz se
irrita.
- Não sou nenhum
idiota.
- Eu era de uma
elite militar sim, mas não da polícia. Sou o ex-agente Maynard Cuisset da
Agência de Vigilância Internacional, a AVI. – responde ele.
- Eu nunca ouvi
falar dessa agência.
- É claro que
não. Ela foi extinta nos anos cinquenta do século 21.
- Extinta?
- Sim, junto com
tudo o que existia até a catástrofe de 2057. Após uma missão espacial
fracassada, estive em sono criogênico em uma nave à deriva durante anos. Quando
me acharam, acordei e vi que o mundo... – nesse momento ele hesita – não era mais
o mesmo.
Nathan tenta
conter o riso. Os ambiciosos programas espaciais foram suspensos desde o fim da
Guerra Fria no século 20.
- Como assim?
- Eu retornei e
encontrei o planeta destruído. As nações foram esquecidas, as fronteiras
apagadas e toda a soberania política se extinguiu. O mundo se tornou um imenso
deserto desolado e o que sobrou – a autoritária e tecnocrata Sonata – passou a
ser conhecida como o último oásis habitável sobre a Terra.
- Então estamos
sozinhos no mundo, confinados a essa mega jaula para sempre? – lamenta-se ele.
Sem dar muita
importância, Maynard bebe um gole de vodca e responde:
- Provavelmente.
Aliás, esta é uma característica que percebi nessa nova metrópole: alta
tecnologia e baixa qualidade de vida. As corporações disfarçam o totalitarismo
com “sobrevivência da raça humana” e “ordem sobre o caos a qualquer custo”, mas
sua motivação é mais obscura do que se pensa. Eles seguem uma agenda secreta.
Suas intenções malignas se revelaram com a nova sociedade. Aparentemente o que
não era permitido antes, hoje é liberado neste novo mundo de novas leis.
- Novas leis
sociais?
- Novas leis
morais. – responde Maynard, com ar obscuro – Hoje a ciência avança em campos em
que a antiga sociedade se recusava em considerar. Clones humanos, implantes
bioprotéticos, nanotecnologia genética, células-tronco, disciplina industrial,
mecanização do homem, cobaias cientificas, robótica... – ele bebe outro gole de
seu drink e conclui – Tecnologia destronando Deus.
Nathan já ouviu
aquele discurso antes, quando estava cativo de uma misteriosa organização e foi
infectado por um vírus mortífero. Acreditando ser tudo aquilo uma paranoia de
gente desequilibrada e sociopata, ele sorri.
- Acho que você
anda assistindo a filmes de ficção científica demais.
Percebendo o
sarcasmo, Maynard responde:
-
Pensei que o neurótico frequentador de casas de hologramas pornográficos aqui
fosse você. Aliás, o que o holograma disse mesmo? Síndrome de Adão e Eva?
O rapaz se
espanta.
- Como você sabe
disso?
Terminando seu
drink, Maynard olha para ele e então responde:
- Eu não me
enganei a seu respeito. Você é realmente um paspalho como eu pensei que fosse.
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