domingo, 16 de dezembro de 2018

Sonata - Parte 9 - VHS Nightclub



Voando pelo distrito industrial, Nathan olha para as chaminés expelindo rajadas de fogo e se distrai. Ele agora percebe que sua situação piorou e não há mais nada que pode fazer para voltar atrás. A qualquer momento a polícia de Sonata inteira estará à sua procura. Sua fuga induzida causará uma Lei Marcial, as autoridades terão a aval para invadir os apartamentos dos cidadãos e permissão para executar sumariamente os desordeiros.
Em uma metrópole onde a informação é restrita, nunca ninguém ouviu falar de alguém que fugiu da prisão, nem mesmo sabiam que isso era possível. Se Nathan é o primeiro, é melhor a população não saber que a culpa é sua por suas vidas ficarem bem desagradáveis de agora em diante.

§

O distrito comercial Titan é bastante exótico. Ele tem centenas de neons e passarelas movimentadas ligando as modernas megatorres. Os velozes e caríssimos aerocarros passam frequentemente entre os edifícios, atraindo o público apaixonado por motores potentes. A música alta, com batidas divertidas, empolga os clientes, deixando-os mais à vontade. Os túneis dentro dos edifícios são limpos, organizados e iluminados por diversas luzes coloridas. Restaurantes elegantes têm mesas com vista panorâmica para a bela paisagem comercial, e as lanchonetes servem comidas mais casuais, como o fast-food tão popular entre os mais jovens.
Vendo o movimento intenso, Nathan se contagia com a felicidade daquele ambiente, tornando aquele distrito de Sonata muito agradável.
Obedecendo ao trajeto no GPS, o aerocarro cruza o setor e começa a subir para o topo das megatorres. No terraço de um edifício Nathan vê um letreiro escrito “VHS Nightclub”, uma casa noturna localizada à beira da vertiginosa altura do terraço com plataformas de aço em sua entrada. O aerocarro pousa no terraço e a voz do computador de bordo diz: “você chegou ao seu destino”.
Em Sonata, para escapar da rotina estressante e da longa jornada de trabalho, as casas noturnas se tornaram uma excelente opção para se descontrair. Como uma febre, elas rapidamente se espalharam, havendo pelo menos uma em cada distrito comercial e outras centenas abertas clandestinamente nos distritos residenciais. As casas noturnas são bastante populares e fazem parte do estilo de vida metropolitano.
Atendendo ao celular, Maynard sai do veículo antes. O rapaz abre a porta e se pergunta porque aquele desconhecido o trouxe à um lugar tão incomum.
- Sr. Nathan, há opções melhores para se divertir.
- O quê?
- O VHS Nightclub tem uma dúzia de notificações no Ministério da Saúde, e três ordens oficiais de fechamento.
- Você está falando comigo... E sem eu pedir? Como?
- Inteligência artificial. Atualização aprovada pelo Ministério dos Transportes instalada nos últimos veículos desde 01/08/2278 pela corporação Hoverdrive.
Nathan se intriga.
- Por que o VHS Nightclub recebeu tantas notificações?
- Alimentos estragados, bebidas tóxicas, falta de higiene, venda de cigarros clandestinos, instalações precárias, sonegação de impostos e venda ilegal de substâncias químicas alucinógenas.
- Meu Deus...
- Neste distrito há outros bares e restaurantes que correspondem ao seu padrão de conforto. Aceita uma sugestão?
- Conforto...? – Nathan não terá mais conforto, pois um caos irremediável arrasou com sua vida. Se ao menos a máquina pudesse avaliar a crescente angústia que ele sente em seu peito... – Não obrigado. Na verdade, eu não vim aqui para me divertir.
Descendo os degraus da plataforma, ele se aproxima da entrada da casa noturna. Os seguranças o encaram. Por suas aparências, Nathan percebe que está em um antro de marginais.
Ao verem o mercenário, eles o reconhecem:
- Maynard?
Os seguranças sorriem, exibindo seus dentes de aço. Eles abrem passagem e o rapaz entra, muito confuso com tudo aquilo.
A primeira impressão que se tem no VHS é que se está em um ambiente ilícito, frenético, onde tudo é permitido. O ambiente escuro, a música alta, a nuvem de fumaça e os alegres dançarinos de fim de semana compõem o interior da casa. Nathan vê homens vestindo jaquetas com ombreiras, camisetas vinil e óculos coloridos. As mulheres vestem roupas com a estampa de pele de animais, como leopardos, panteras e tigres. De fato, aquele era uma casa noturna com um estilo bastante retrô.
O rapaz se sente incomodado, demonstrando incompatibilidade e certa repugnância ao lugar.
- O que você pensa que está fazendo? – pergunta alguém atrás dele.
Ele se vira e vê uma mulher de mais ou menos quarenta anos com os olhos pintados, cabelo roxo e forte maquiagem no rosto. Suas roupas são extravagantes e ela segura um cigarro na ponta dos dedos, soltando fumaça enquanto o encara com olhar entediado.
- O quê?
- Você não viu o aviso “proibido a entrada de idiotas” lá fora?
- Não...
- Não seja estúpido. – interrompe ela – Do jeito que você entrou aqui e a maneira que se comporta é como se tivesse escrito “eu sou um imbecil” na sua testa. Você está perdido? Veio pedir informação para achar a casa da sua mãe?
- Bem, eu...
- Relaxe. Aqui é o VHS Nightclub, uma casa noturna oitentista. Você não precisa chegar aqui bancando o cidadão decente e bom demais para esse lugar. Aqui você pode ser o que quiser, fazer o que quiser e se vestir como quiser, como nos velhos tempos do séculos 20. Você não engana ninguém, qualquer um aqui sabe que você não é nenhum certinho só de olhar para sua cara. O que você esconde? Que modificação ilegal você tem em suas próteses biomecânicas? Tem algum implante neural em seu crânio?
Nathan se surpreende. Como ela adivinhou o que ele escondeu durante anos? Ele fica sem saber o que responder.
Atrás deles, alguém sentado à mesa a chama:
- Ei, garçonete! Eu ainda não recebi minha cerveja!
Ela se vira e volta ao bar, respondendo com a mesma grosseria como se aquilo fosse normal ali. “Garçonete?” pensa ele, uma simples garçonete foi capaz de desmascará-lo em poucos minutos. É tão óbvio assim que ele não é tão inocente quanto aparenta?
Ao lado da parede há uma mesa com bancos almofadados iluminada por um belo lustre. Maynard está ali e o convida para se sentar. Nathan se aproxima lentamente, sob os olhares intimidadores dos frequentadores do local.
Sentando-se, o rapaz observa o homem à sua frente. A jaqueta de couro, os cabelos castanhos, a calça jeans e as botas marrons são inconfundíveis. É uma aparência bem antiquada.
- Quer um drink? – pergunta ele e antes do rapaz responder, Maynard chama a garçonete de cabelo roxo e diz – Por favor, traga duas doses de vodca.
Os dois ficam em silêncio por alguns minutos. A garçonete volta com os drinks e então Nathan pergunta:
- Por que você me ajudou?
- Não quer saber quem eu sou primeiro? – ele lhe devolve a pergunta – Gostei de você, você é objetivo, prático, diferente do paspalho inseguro que pensei que fosse. Vai direto ao ponto... Formidável. E primeiramente quer saber por que eu te ajudei? – ele bebe um pouco da vodca antes de responder – Por dinheiro, é claro.
- Por dinheiro?
- Mas é claro, eu fui contratado para isso. Você chamou a atenção de alguém que quer muito informação, e nessa cidade informação é poder.
- Quem exatamente?
- Já ouviu falar da facção “4 de Julho”?
O rapaz se intriga.
- Aquele grupo paramilitar político que defende a soberania dos Estados Unidos? A polícia ainda não os desmantelou?
- Certamente não.
- Que tipo de informação eles querem comigo?
O mercenário limpa os dentes frontais com a língua antes de responder.
- Você esteve fora da Contenção, não é? O que quer que tenha visto lá fora chegou ao conhecimento deles e agora eles querem vê-lo. Eles planejavam sabotar as redes corporativas quando souberam ao seu respeito. Parece que você virou uma celebridade entre os hackers, espiões e ativistas em Sonata. No ciberespaço não se fala em outra coisa.
- Não acredito que um grupo terrorista se interessou por mim a esse ponto.
- Bem, terrorista ou não eles têm muitos recursos. Meus serviços não são baratos. – responde ele, sem se importar – Mas, mudando de assunto, o que aconteceu no exterior da metrópole?
Nathan não sabe por onde começar.
- Eu fui capturado por uma organização obscura, composta de banidos e aberrações cibernéticas. Eles me infectaram com um vírus, o mesmo de 2057, e agora tenho 72 horas de vida.
Olhando para o relógio, o mercenário diz:
- Tecnicamente você tem apenas 52 horas agora.
Não entendendo se aquilo foi um alerta ou uma piada, o rapaz prefere continuar acreditando que Maynard podia ajuda-lo.
- Para me curar preciso encontrar um homem que vive na superfície, um tal de Database...
Ao dizer esse nome, o mercenário interrompe seu drink e lhe encara de outra forma. Mudando rapidamente seu semblante, Maynard ergue as sobrancelhas, respira fundo e então responde:
- Parece que você está bem enrascado, hein garoto.
O homem então volta a beber tranquilamente.
- Você não vai me ajudar?
Maynard se sente ultrajado.
- Eu te tirei da prisão, não tirei?
- Eu fui infectado por um vírus. Se eu não me curar a tempo eu vou morrer!
- Percebi mesmo que você está meio pálido.
- Você precisa me ajudar a encontrar a cura...
- Ouça, garoto. Meu negócio não é curar e sim atirar nas pessoas. Me procure se precisar desse tipo de serviço.
Maynard se mostra intransponível. Irritado com a tremenda insensibilidade e frieza do homem, Nathan pergunta:
- Você é algum dissidente da elite policial que aderiu à causa ideológica dos terroristas?
Maynard ri.
- Você é idiota ou o quê?
O rapaz se irrita.
- Não sou nenhum idiota.
- Eu era de uma elite militar sim, mas não da polícia. Sou o ex-agente Maynard Cuisset da Agência de Vigilância Internacional, a AVI. – responde ele.
- Eu nunca ouvi falar dessa agência.
- É claro que não. Ela foi extinta nos anos cinquenta do século 21.
- Extinta? 
- Sim, junto com tudo o que existia até a catástrofe de 2057. Após uma missão espacial fracassada, estive em sono criogênico em uma nave à deriva durante anos. Quando me acharam, acordei e vi que o mundo... – nesse momento ele hesita – não era mais o mesmo.
Nathan tenta conter o riso. Os ambiciosos programas espaciais foram suspensos desde o fim da Guerra Fria no século 20.
- Como assim?
- Eu retornei e encontrei o planeta destruído. As nações foram esquecidas, as fronteiras apagadas e toda a soberania política se extinguiu. O mundo se tornou um imenso deserto desolado e o que sobrou – a autoritária e tecnocrata Sonata – passou a ser conhecida como o último oásis habitável sobre a Terra.
- Então estamos sozinhos no mundo, confinados a essa mega jaula para sempre? – lamenta-se ele.
Sem dar muita importância, Maynard bebe um gole de vodca e responde:
- Provavelmente. Aliás, esta é uma característica que percebi nessa nova metrópole: alta tecnologia e baixa qualidade de vida. As corporações disfarçam o totalitarismo com “sobrevivência da raça humana” e “ordem sobre o caos a qualquer custo”, mas sua motivação é mais obscura do que se pensa. Eles seguem uma agenda secreta. Suas intenções malignas se revelaram com a nova sociedade. Aparentemente o que não era permitido antes, hoje é liberado neste novo mundo de novas leis.
- Novas leis sociais?
- Novas leis morais. – responde Maynard, com ar obscuro – Hoje a ciência avança em campos em que a antiga sociedade se recusava em considerar. Clones humanos, implantes bioprotéticos, nanotecnologia genética, células-tronco, disciplina industrial, mecanização do homem, cobaias cientificas, robótica... – ele bebe outro gole de seu drink e conclui – Tecnologia destronando Deus.
Nathan já ouviu aquele discurso antes, quando estava cativo de uma misteriosa organização e foi infectado por um vírus mortífero. Acreditando ser tudo aquilo uma paranoia de gente desequilibrada e sociopata, ele sorri.
- Acho que você anda assistindo a filmes de ficção científica demais.
Percebendo o sarcasmo, Maynard responde:
- Pensei que o neurótico frequentador de casas de hologramas pornográficos aqui fosse você. Aliás, o que o holograma disse mesmo? Síndrome de Adão e Eva?
O rapaz se espanta.
- Como você sabe disso?
Terminando seu drink, Maynard olha para ele e então responde:
- Eu não me enganei a seu respeito. Você é realmente um paspalho como eu pensei que fosse.

  

Nenhum comentário:

Postar um comentário