Laura
Poças de óleo,
fumaça tóxica e carcaças de aerocarros estão espalhados pelo canal. As placas
de aviso nos arames farpados informam: “Biocontaminação”.
A garota se
esgueira pelos entulhos, seus óculos infravermelhos lhe revelam o caminho há
muito tempo privado da luz diurna. Os sons de máquinas industriais operando ao
longe, do vapor liberado pelos dutos e da corrente de água contaminada descendo
pelo canal lhe são familiares, mas ela está em alerta.
Ela leva consigo
uma pistola e uma bolsa contendo um frasco cilíndrico. Vestindo um surrado
sobretudo marrom, ela se camufla no agressivo ambiente. Debaixo da camuflagem
ela veste uma pequena blusa e um shorts, deixando visíveis sua barriga e suas
coxas para transpirar melhor e resistir ao calor. Ela também veste longas botas
até os joelhos, protegendo-se dos nocivos componentes químicos no chão.
Enquanto caminha,
ela sente algo pingar em seus cabelos e imediatamente lhe causar ardência.
Sentindo dor, a garota olha para cima e ouve o som das comportas industriais se
abrindo.
- Chuva ácida...!
O líquido amarelo
e de cheiro forte escorre pelas comportas e ela corre desesperadamente pelo
canal poluído. As gotas caem sobre ela queimando lentamente seu sobretudo, mas
sua intenção é proteger sua bolsa a qualquer custo. As poças de óleo se
espirram com seus passos e a chuva ácida corrói ainda mais as carcaças dos
aerocarros.
Logo a frente ela
vê uma cerca com arame farpado. Com grande habilidade ela pula sobre um
aerocarro e, no impulso, salta sobre a cerca em uma pirueta. A entrada do túnel
de serviço da Bio Prótesis tem uma enorme placa dizendo: “Proibida a entrada”.
Ela está prestes a entrar quando uma viatura de polícia desce do ar e mira o
ofuscante holofote em seu rosto.
- Parada! Você
está invadindo uma área restrita. Identifique-se agora ou usaremos força letal.
Dentro da
aerocarro, o policial diz ao seu parceiro:
- Acabei de fazer
o escaneamento de retina. Essa mulher não consta no banco de dados da
metrópole.
- Ela deve ser
uma espiã industrial ou uma terrorista.
- Vá se ferrar! –
Grita ela e então atira no para-brisa, assustando os policiais.
Em seguida a
garota entra no túnel e corre pela escuridão.
- A viatura não
cabe lá dentro. – Responde o motorista.
- Então vamos a
pé?
- Está louco?
Estamos em uma área altamente contaminada no meio de uma chuva ácida!
- E quanto aos
Securitrons? Devemos contatá-los?
- Os cabeças de
lata? Aqueles robôs só sabem fazer cadáveres por aí.
- O que devemos
fazer então? A segurança e o bem-estar da metrópole estão em jogo aqui!
O outro policial
ri.
- Ah! Você é novo
na polícia, tem muito o que aprender... Vamos embora. Esse lugar me dá
arrepios.
§
A garota corre
pelo túnel habitado por ratos, insetos e fortes despejos químicos. Conhecendo
bem o caminho, ela abrevia boa parte do trajeto pela superfície e chega ao seu
destino. As galerias e câmaras industriais raramente eram inspecionadas e hoje em
dia serviam de rotas para pessoas como ela, os Runners.
Sob uma
infinidade de passarelas, linhas ferroviárias e tubulações industriais está a
infame superfície de Sonata. A superfície tem vários centros urbanos
clandestinos espalhados, situados em locais de difícil acesso e protegidos pela
contaminação que as corporações ajudaram a espalhar. Repudiados pelas
autoridades, a superfície é uma incômoda consequência à sociedade perfeita que
controla a informação, detém a alta tecnologia e trata sua população como
ferramentas de trabalho.
A garota caminha
pelas ruas iluminadas por neons brilhantes. Alguns neons formam letras
japonesas e chinesas. Nas calçadas é possível ver o lixo se acumulando pelos
cantos. Aquele ambiente colorido de azul e púrpura lhe era familiar.
Na entrada da
casa noturna há um letreiro escrito “Mystique”. Ao abrir a porta, imediatamente
o som alto irrita seus ouvidos. O salão principal está repleto de pessoas
dançando, bebendo e se divertindo. A garota passa por eles sorrindo por dentro,
ela sobreviveu a outra missão, a bolsa em seu ombro significa outra entrega
bem-sucedida.
Aproximando-se do
balcão, ela vê o barman preparando várias bebidas coloridas ao ritmo da música.
Ela pergunta:
- Cadê o
Database?
O barman se
surpreende ao vê-la. Ele a conduz ao mezanino onde um homem de braços
biomecânicos e olho esquerdo robótico está sentado em um confortável sofá.
Database
é o dono da casa noturna. Ele é um homem sério e perspicaz, sempre atento aos
seus negócios e colaboradores. Seu passado é misterioso, mas sabe-se que não
nasceu na superfície. Ele veio de cima, dos níveis superiores da metrópole. É
curioso pensar que agora ele é dono de uma casa noturna na superfície, um lugar
sujo e caótico tão diferente das habitações luxuosas e limpas de cima.
- É bom vê-la de
novo, Lótus.
- Eu não uso mais
codinome, Database. Lótus é passado.
Database é
indiferente às palavras da garota.
- Trouxe o
pacote?
Ela abre sua
bolsa e retira o cilindro. É uma cápsula criogênica contendo um feto humano
conectado por fios.
- Não sei o que
está fazendo, mas não gosto disso, Database.
- O que faço não
é problema seu.
- Somos da
superfície e agora você também. Voltar aos níveis superiores é uma ilusão, um
sonho.
- E você prefere
viver aqui para sempre? Enterrada com os nossos sonhos nesse fosso úmido de
esgoto e detritos?
- Seu egoísmo
está deixando-o descuidoso. Da última vez quase fomos descobertos pelas redes
de segurança pública.
Database a
interrompe dizendo:
- Você não tem
moral para falar de egoísmo. Pelo o que sei, é você quem não se importa com
ninguém.
Calando-se por um
segundo, ela então responde:
- O que faço não
é problema seu.
- Teve problemas
para adquirir esse frasco? – pergunta ele, dando continuidade ao assunto.
- Você quer dizer
roubar esse frasco?
- Apenas responda
à pergunta.
Laura invadiu as
câmaras criogênicas da Bio Prótesis, atravessou canais com biocontaminação,
correu da chuva ácida e enfrentou as autoridades pelo caminho. Mantendo sua
postura de mulher durona que sabe se cuidar sozinha, ela responde:
- Não, não tive
nenhum.
- Sim... É
claro... – Database retira de seu bolso um gordo envelope e o entrega a ela – Aqui
está, três mil créditos, como prometido. Foi um prazer fazer negócios com você.
Em
silêncio, Laura dá as costas e retorna ao salão principal, passando pela pista
de dança e dirigindo-se até a saída.
De volta às ruas movimentadas,
Laura caminha pela subsociedade que ela chama de lar. Mendigos dormem pelos
cantos, comerciantes atraem clientes e pessoas bebem em volta de fogueiras. A
superfície abriga os rejeitados, fracassados e deprimidos, pessoas que não se
adaptaram à nova sociedade e buscaram ali um lugar para morrerem em paz.
Em seu minúsculo
quarto, Laura se deita em sua cama e mexe em seu notebook. Usando softwares de
inibição de rastreamento, ela entra na rede sem fio da metrópole e acessa o
site de notícias corporativas. Lá ela encontra o que está procurando, Toque de
Recolher.
As notícias
informam o de sempre. Devido a um atentado terrorista, outro toque de recolher
foi instaurado e os cidadãos devem obedece-lo durante a noite. Aparentemente
uma facção paramilitar atacou uma instalação da Cybersys no terraço de uma
megatorre. A lei autoriza a polícia a entrar e vasculhar qualquer residência em
busca de evidências e atividades suspeitas, algo muito comum nos dias atuais.
Como é de se esperar, não há muitos detalhes sobre o atentado.
- Estariam as
facções por trás desse atentado? – Pergunta ela, sabendo que tamanha ousadia
seria obra de um mercenário.
Cansada demais
para pensar no assunto, a garota adormece, decidindo investigar mais no dia
seguinte.
§
Laura está
tomando um banho quando seu celular emite um ruído. Fechando a válvula do
chuveiro, ela caminha até o aparelho e vê que havia recebido uma mensagem. Nela
está escrito: “Encontre-me no terraço. Remetente desconhecido”. Vestindo-se, ela
guarda seu celular no bolso e deixa seu quarto.
Passando pelos
corredores, ela vê várias pessoas com implantes robóticos fumando e
conversando. Ela sobe as escadarias e abre a porta do terraço, encontrando-o
escuro e vazio como sempre.
- Laura, por
aqui. – diz alguém.
Passando pelos
dutos e cabos espalhados pelo telhado, ela se depara com um homem sentado no
parapeito. Aproximando-se, a garota pergunta:
- Qual o motivo
para tanto suspense, Vertigo?
Um homem de
óculos amarelos, roupas verdes e cabelo escuro sorri.
- Você sabe que
eu não gosto de me expor.
Vertigo e Laura
são velhos amigos. Uma runner e um hacker da superfície, várias vezes eles sobreviveram
às suas perigosas e emocionantes missões nas profundezas de Sonata.
- Há algo errado?
– pergunta ela.
- Não exatamente.
Você recebeu a mensagem do Database?
Laura estranha a
pergunta e responde:
- Não, por quê?
Vertigo lhe
mostra seu celular. Na tela, ela lê a seguinte mensagem: “Vertigo, venha ao
Mystique, tenho trabalho para você. E traga a Lótus também”.
- O Database tem
outra missão, e está chamando a nós dois.
- Deve ser muito
importante para ele precisar de um hacker e uma runner no mesmo serviço. – afirma
ela.
Raramente dois ou
mais runners trabalhavam juntos. Devido à agilidade e eficiência de cada um,
eles preferiam trabalhar sozinhos.
Laura deve ter
dormido o dia inteiro, porque ao olhar seu relógio ela nota que falta apenas uma
hora para o encontro. Não é fácil distinguir o dia da noite no superfície, pois
as megatorres há muitos anos encobriram o sol. Respirando fundo, ela em seguida
responde:
- Então é melhor
a gente se apressar.
Com extrema
habilidade física, os dois saltam do terraço e correm pelas plataformas
adjacentes, pulando de telhado em telhado até chegarem ao solo. Com a ajuda de
um gancho, Vertigo pendura-se em um cabo e desliza-se sobre a movimentada rua.
Deslizando-se por uma marquise, Laura salta sobre um carro e, em uma sequência
de rolamentos, aterrissa-se no asfalto, agachada como um gato. Então os dois
correm pelas ruas até chegarem ao seu destino.
Em frente ao Mystique,
o segurança – um enorme ciborgue com braços biônicos – diz:
- Database está
esperando-os no porão.
Os dois entram e
atravessam o agitado salão principal. Descendo as escadas para o porão, eles
veem uma porta escrito “Laboratório”. Ao tocar o painel digital, a porta se
abre e revela o grotesco ambiente onde Database passa a maior parte do tempo.
O laboratório é
um porão vasto e gelado, cheio de tubos de nitrogênio líquido e cápsulas
criogênicas. Os painéis eletrônicos monitoram as atividades dos bizarros
experimentos científicos de Database, registrando os dados em seu improvisado
laboratório de biomedicina.
Confinado em um
tanque, a garota vê o feto criogênico que ela trouxe na noite anterior.
Database faz experiências nele, o que lhe causa repulsão.
- Boa noite,
Database. Você nos chamou? – Pergunta Vertigo.
- Sim. Tenho um
trabalho para vocês.
- Por que nós
dois? Você nunca manda dois runners em um único trabalho.
Database assente.
- Este não será
um trabalho fácil. Eu precisarei dos meus melhores runners, sobretudo você, Lótus.
- Já disse para
não me chamar assim.
- E do que se
trata esse trabalho?
Disfarçando seu
olhar cínico, o homem responde:
- O de sempre.
Infiltração, decodificação, extração, roubo... E, se necessário, assassinato.
Os dois se
irritam.
- Esse não é o
nosso estilo, Database.
- Talvez não o
seu, mas já foi o de Laura.
A runner faz um
olhar de quem esconde algo no passado.
- Se quiser matar
alguém, chame um Mercenário.
Entre os runners,
os mercenários são conhecidos como aqueles cuja função é espionar, matar e
destruir tudo pelo caminho. Estes profissionais diferem-se dos runners, pois
são agressivos e pouco escrupulosos. Eles se diferem de Vertigo, um habilidoso e
prudente hacker, e de Laura, especialista em roubos e entregas de encomendas.
- Não, eu não
quero chamar a atenção. Preciso de discrição nesse serviço, mas pelo elevado
risco, talvez vocês precisem improvisar. – Database refere-se à necessidade de
se abater no processo.
- Precisamos de
mais informações se tivermos de aceitar o serviço. Do que se trata, exatamente?
– pergunta a garota.
Database explica:
- Enquanto eu
navegava pelo ciberespaço, encontrei um arquivo corporativo altamente secreto.
Eu não deveria tê-lo encontrado, mas uma falha geral na transmissão de rede o
deixou exposto. Acredito que essa falha seja devido àquela nova antena da
Cybersys que explodiu. Antes que eu pudesse apanhar os arquivos, a rede
corporativa o bloqueou novamente, mas eu consegui rastrear o servidor e sei
onde as corporações o guardaram. Preciso que vocês vão até lá e o tragam à mim.
- Mas por que
vocês os quer tanto? O que é tão importante assim?
Database não é do
tipo que revela seus objetivos. Ele então responde de maneira evasiva:
- Precisarei
deles para concluir minha pesquisa.
Não surpresos com
aquele tipo de serviço – uma vez que aquilo era bem casual aos dois – Vertigo e
Laura perguntam:
- E onde estão
esses arquivos?
Novamente disfarçando
seu olhar cínico, Database responde:
- Na subsede do
Ministério da Informação.
Então os dois protestam.
- Você vai nos
mandar invadir um prédio ministerial, altamente guardado pela polícia, para
roubar um arquivo que você nem mesmo sabe do que se trata? É melhor você nos pagar
muito bem para isso. – responde o hacker.
- Não se
preocupem, eu pagarei bem.
- Bem quanto?
- Vinte.
- Vinte?
- Vinte mil
créditos.
- Você quer dizer
dez mil créditos para cada um? – a garota se intriga.
Database sorri.
- Eu quis dizer vinte
mil créditos para cada um.
Então os runners
se assustam. Nenhum serviço foi tão bem remunerado na superfície antes.
-
Database, não me importo com o que você faça em sua “Casa de Horrores”, mas é
melhor estar falando sério quanto ao pagamento. – a garota refere-se ao seu
bizarro laboratório.
- Eu estou.
Preciso destes arquivos o quanto antes. Eles serão vitais em minha nova
pesquisa. – responde ele olhando para o feto criogênico trazido por Laura – E
tomem cuidado lá em cima, principalmente você, Lótus.
A garota se
irrita, mas antes que se manifestasse o hacker responde:
- Considere
feito.
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