terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Sonata - Parte 3 - Laura



Laura

Poças de óleo, fumaça tóxica e carcaças de aerocarros estão espalhados pelo canal. As placas de aviso nos arames farpados informam: “Biocontaminação”.
A garota se esgueira pelos entulhos, seus óculos infravermelhos lhe revelam o caminho há muito tempo privado da luz diurna. Os sons de máquinas industriais operando ao longe, do vapor liberado pelos dutos e da corrente de água contaminada descendo pelo canal lhe são familiares, mas ela está em alerta.
Ela leva consigo uma pistola e uma bolsa contendo um frasco cilíndrico. Vestindo um surrado sobretudo marrom, ela se camufla no agressivo ambiente. Debaixo da camuflagem ela veste uma pequena blusa e um shorts, deixando visíveis sua barriga e suas coxas para transpirar melhor e resistir ao calor. Ela também veste longas botas até os joelhos, protegendo-se dos nocivos componentes químicos no chão.
Enquanto caminha, ela sente algo pingar em seus cabelos e imediatamente lhe causar ardência. Sentindo dor, a garota olha para cima e ouve o som das comportas industriais se abrindo.
- Chuva ácida...!
O líquido amarelo e de cheiro forte escorre pelas comportas e ela corre desesperadamente pelo canal poluído. As gotas caem sobre ela queimando lentamente seu sobretudo, mas sua intenção é proteger sua bolsa a qualquer custo. As poças de óleo se espirram com seus passos e a chuva ácida corrói ainda mais as carcaças dos aerocarros.
Logo a frente ela vê uma cerca com arame farpado. Com grande habilidade ela pula sobre um aerocarro e, no impulso, salta sobre a cerca em uma pirueta. A entrada do túnel de serviço da Bio Prótesis tem uma enorme placa dizendo: “Proibida a entrada”. Ela está prestes a entrar quando uma viatura de polícia desce do ar e mira o ofuscante holofote em seu rosto.
- Parada! Você está invadindo uma área restrita. Identifique-se agora ou usaremos força letal.
Dentro da aerocarro, o policial diz ao seu parceiro:
- Acabei de fazer o escaneamento de retina. Essa mulher não consta no banco de dados da metrópole.
- Ela deve ser uma espiã industrial ou uma terrorista.
- Vá se ferrar! – Grita ela e então atira no para-brisa, assustando os policiais.
Em seguida a garota entra no túnel e corre pela escuridão.

- Ela está armada e fugiu! Vamos atrás dela?
- A viatura não cabe lá dentro. – Responde o motorista.
- Então vamos a pé?
- Está louco? Estamos em uma área altamente contaminada no meio de uma chuva ácida!
- E quanto aos Securitrons? Devemos contatá-los?
- Os cabeças de lata? Aqueles robôs só sabem fazer cadáveres por aí.
- O que devemos fazer então? A segurança e o bem-estar da metrópole estão em jogo aqui!
O outro policial ri.
- Ah! Você é novo na polícia, tem muito o que aprender... Vamos embora. Esse lugar me dá arrepios.

§

A garota corre pelo túnel habitado por ratos, insetos e fortes despejos químicos. Conhecendo bem o caminho, ela abrevia boa parte do trajeto pela superfície e chega ao seu destino. As galerias e câmaras industriais raramente eram inspecionadas e hoje em dia serviam de rotas para pessoas como ela, os Runners.
Sob uma infinidade de passarelas, linhas ferroviárias e tubulações industriais está a infame superfície de Sonata. A superfície tem vários centros urbanos clandestinos espalhados, situados em locais de difícil acesso e protegidos pela contaminação que as corporações ajudaram a espalhar. Repudiados pelas autoridades, a superfície é uma incômoda consequência à sociedade perfeita que controla a informação, detém a alta tecnologia e trata sua população como ferramentas de trabalho.
A garota caminha pelas ruas iluminadas por neons brilhantes. Alguns neons formam letras japonesas e chinesas. Nas calçadas é possível ver o lixo se acumulando pelos cantos. Aquele ambiente colorido de azul e púrpura lhe era familiar.
Na entrada da casa noturna há um letreiro escrito “Mystique”. Ao abrir a porta, imediatamente o som alto irrita seus ouvidos. O salão principal está repleto de pessoas dançando, bebendo e se divertindo. A garota passa por eles sorrindo por dentro, ela sobreviveu a outra missão, a bolsa em seu ombro significa outra entrega bem-sucedida.
Aproximando-se do balcão, ela vê o barman preparando várias bebidas coloridas ao ritmo da música. Ela pergunta:
- Cadê o Database?
O barman se surpreende ao vê-la. Ele a conduz ao mezanino onde um homem de braços biomecânicos e olho esquerdo robótico está sentado em um confortável sofá.

Database é o dono da casa noturna. Ele é um homem sério e perspicaz, sempre atento aos seus negócios e colaboradores. Seu passado é misterioso, mas sabe-se que não nasceu na superfície. Ele veio de cima, dos níveis superiores da metrópole. É curioso pensar que agora ele é dono de uma casa noturna na superfície, um lugar sujo e caótico tão diferente das habitações luxuosas e limpas de cima.
- É bom vê-la de novo, Lótus.
- Eu não uso mais codinome, Database. Lótus é passado.
Database é indiferente às palavras da garota.
- Trouxe o pacote?
Ela abre sua bolsa e retira o cilindro. É uma cápsula criogênica contendo um feto humano conectado por fios.
- Não sei o que está fazendo, mas não gosto disso, Database.
- O que faço não é problema seu.
- Somos da superfície e agora você também. Voltar aos níveis superiores é uma ilusão, um sonho.
- E você prefere viver aqui para sempre? Enterrada com os nossos sonhos nesse fosso úmido de esgoto e detritos?
- Seu egoísmo está deixando-o descuidoso. Da última vez quase fomos descobertos pelas redes de segurança pública.
Database a interrompe dizendo:
- Você não tem moral para falar de egoísmo. Pelo o que sei, é você quem não se importa com ninguém.
Calando-se por um segundo, ela então responde:
- O que faço não é problema seu.
- Teve problemas para adquirir esse frasco? – pergunta ele, dando continuidade ao assunto.
- Você quer dizer roubar esse frasco?
- Apenas responda à pergunta.
Laura invadiu as câmaras criogênicas da Bio Prótesis, atravessou canais com biocontaminação, correu da chuva ácida e enfrentou as autoridades pelo caminho. Mantendo sua postura de mulher durona que sabe se cuidar sozinha, ela responde:
- Não, não tive nenhum.
- Sim... É claro... – Database retira de seu bolso um gordo envelope e o entrega a ela – Aqui está, três mil créditos, como prometido. Foi um prazer fazer negócios com você.

Em silêncio, Laura dá as costas e retorna ao salão principal, passando pela pista de dança e dirigindo-se até a saída.
De volta às ruas movimentadas, Laura caminha pela subsociedade que ela chama de lar. Mendigos dormem pelos cantos, comerciantes atraem clientes e pessoas bebem em volta de fogueiras. A superfície abriga os rejeitados, fracassados e deprimidos, pessoas que não se adaptaram à nova sociedade e buscaram ali um lugar para morrerem em paz.
Em seu minúsculo quarto, Laura se deita em sua cama e mexe em seu notebook. Usando softwares de inibição de rastreamento, ela entra na rede sem fio da metrópole e acessa o site de notícias corporativas. Lá ela encontra o que está procurando, Toque de Recolher.
As notícias informam o de sempre. Devido a um atentado terrorista, outro toque de recolher foi instaurado e os cidadãos devem obedece-lo durante a noite. Aparentemente uma facção paramilitar atacou uma instalação da Cybersys no terraço de uma megatorre. A lei autoriza a polícia a entrar e vasculhar qualquer residência em busca de evidências e atividades suspeitas, algo muito comum nos dias atuais. Como é de se esperar, não há muitos detalhes sobre o atentado.
- Estariam as facções por trás desse atentado? – Pergunta ela, sabendo que tamanha ousadia seria obra de um mercenário.
Cansada demais para pensar no assunto, a garota adormece, decidindo investigar mais no dia seguinte.

§

Laura está tomando um banho quando seu celular emite um ruído. Fechando a válvula do chuveiro, ela caminha até o aparelho e vê que havia recebido uma mensagem. Nela está escrito: “Encontre-me no terraço. Remetente desconhecido”. Vestindo-se, ela guarda seu celular no bolso e deixa seu quarto.
Passando pelos corredores, ela vê várias pessoas com implantes robóticos fumando e conversando. Ela sobe as escadarias e abre a porta do terraço, encontrando-o escuro e vazio como sempre.
- Laura, por aqui. – diz alguém.
Passando pelos dutos e cabos espalhados pelo telhado, ela se depara com um homem sentado no parapeito. Aproximando-se, a garota pergunta:
- Qual o motivo para tanto suspense, Vertigo?
Um homem de óculos amarelos, roupas verdes e cabelo escuro sorri.
- Você sabe que eu não gosto de me expor.
Vertigo e Laura são velhos amigos. Uma runner e um hacker da superfície, várias vezes eles sobreviveram às suas perigosas e emocionantes missões nas profundezas de Sonata.
- Há algo errado? – pergunta ela.
- Não exatamente. Você recebeu a mensagem do Database?
Laura estranha a pergunta e responde:
- Não, por quê?
Vertigo lhe mostra seu celular. Na tela, ela lê a seguinte mensagem: “Vertigo, venha ao Mystique, tenho trabalho para você. E traga a Lótus também”.
- O Database tem outra missão, e está chamando a nós dois.
- Deve ser muito importante para ele precisar de um hacker e uma runner no mesmo serviço. – afirma ela.
Raramente dois ou mais runners trabalhavam juntos. Devido à agilidade e eficiência de cada um, eles preferiam trabalhar sozinhos.

- Devemos encontra-lo em sua casa noturna hoje à noite.
Laura deve ter dormido o dia inteiro, porque ao olhar seu relógio ela nota que falta apenas uma hora para o encontro. Não é fácil distinguir o dia da noite no superfície, pois as megatorres há muitos anos encobriram o sol. Respirando fundo, ela em seguida responde:
- Então é melhor a gente se apressar.
Com extrema habilidade física, os dois saltam do terraço e correm pelas plataformas adjacentes, pulando de telhado em telhado até chegarem ao solo. Com a ajuda de um gancho, Vertigo pendura-se em um cabo e desliza-se sobre a movimentada rua. Deslizando-se por uma marquise, Laura salta sobre um carro e, em uma sequência de rolamentos, aterrissa-se no asfalto, agachada como um gato. Então os dois correm pelas ruas até chegarem ao seu destino.
Em frente ao Mystique, o segurança – um enorme ciborgue com braços biônicos – diz:
- Database está esperando-os no porão.
Os dois entram e atravessam o agitado salão principal. Descendo as escadas para o porão, eles veem uma porta escrito “Laboratório”. Ao tocar o painel digital, a porta se abre e revela o grotesco ambiente onde Database passa a maior parte do tempo.
O laboratório é um porão vasto e gelado, cheio de tubos de nitrogênio líquido e cápsulas criogênicas. Os painéis eletrônicos monitoram as atividades dos bizarros experimentos científicos de Database, registrando os dados em seu improvisado laboratório de biomedicina.
Confinado em um tanque, a garota vê o feto criogênico que ela trouxe na noite anterior. Database faz experiências nele, o que lhe causa repulsão.
- Boa noite, Database. Você nos chamou? – Pergunta Vertigo.
- Sim. Tenho um trabalho para vocês.
- Por que nós dois? Você nunca manda dois runners em um único trabalho.
Database assente.
- Este não será um trabalho fácil. Eu precisarei dos meus melhores runners, sobretudo você, Lótus.
- Já disse para não me chamar assim.
- E do que se trata esse trabalho?
Disfarçando seu olhar cínico, o homem responde:
- O de sempre. Infiltração, decodificação, extração, roubo... E, se necessário, assassinato.
Os dois se irritam.
- Esse não é o nosso estilo, Database.
- Talvez não o seu, mas já foi o de Laura.
A runner faz um olhar de quem esconde algo no passado.
- Se quiser matar alguém, chame um Mercenário.
Entre os runners, os mercenários são conhecidos como aqueles cuja função é espionar, matar e destruir tudo pelo caminho. Estes profissionais diferem-se dos runners, pois são agressivos e pouco escrupulosos. Eles se diferem de Vertigo, um habilidoso e prudente hacker, e de Laura, especialista em roubos e entregas de encomendas.
- Não, eu não quero chamar a atenção. Preciso de discrição nesse serviço, mas pelo elevado risco, talvez vocês precisem improvisar. – Database refere-se à necessidade de se abater no processo.
- Precisamos de mais informações se tivermos de aceitar o serviço. Do que se trata, exatamente? – pergunta a garota.
Database explica:
- Enquanto eu navegava pelo ciberespaço, encontrei um arquivo corporativo altamente secreto. Eu não deveria tê-lo encontrado, mas uma falha geral na transmissão de rede o deixou exposto. Acredito que essa falha seja devido àquela nova antena da Cybersys que explodiu. Antes que eu pudesse apanhar os arquivos, a rede corporativa o bloqueou novamente, mas eu consegui rastrear o servidor e sei onde as corporações o guardaram. Preciso que vocês vão até lá e o tragam à mim.
- Mas por que vocês os quer tanto? O que é tão importante assim?
Database não é do tipo que revela seus objetivos. Ele então responde de maneira evasiva:
- Precisarei deles para concluir minha pesquisa.
Não surpresos com aquele tipo de serviço – uma vez que aquilo era bem casual aos dois – Vertigo e Laura perguntam:
- E onde estão esses arquivos?
Novamente disfarçando seu olhar cínico, Database responde:
- Na subsede do Ministério da Informação. 
Então os dois protestam.
- Você vai nos mandar invadir um prédio ministerial, altamente guardado pela polícia, para roubar um arquivo que você nem mesmo sabe do que se trata? É melhor você nos pagar muito bem para isso. – responde o hacker.
- Não se preocupem, eu pagarei bem.
- Bem quanto?
- Vinte.
- Vinte?
- Vinte mil créditos.
- Você quer dizer dez mil créditos para cada um? – a garota se intriga.
Database sorri.
- Eu quis dizer vinte mil créditos para cada um.
Então os runners se assustam. Nenhum serviço foi tão bem remunerado na superfície antes.
- Database, não me importo com o que você faça em sua “Casa de Horrores”, mas é melhor estar falando sério quanto ao pagamento. – a garota refere-se ao seu bizarro laboratório.
- Eu estou. Preciso destes arquivos o quanto antes. Eles serão vitais em minha nova pesquisa. – responde ele olhando para o feto criogênico trazido por Laura – E tomem cuidado lá em cima, principalmente você, Lótus.
A garota se irrita, mas antes que se manifestasse o hacker responde:
- Considere feito.




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