quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Sonata - Parte 4 - Táxi!



Táxi!

          Nathan deixa a câmara holográfica e caminha para fora do recinto. Vendo as demais câmaras no corredor, ele ouve os outros clientes se lá dentro se divertindo. Aquelas pessoas – sobretudo homens – pagam para ter suas fantasias sexuais realizadas pela ilusão holográfica. O rapaz se difere delas, pois apesar de frequentar aquele ambiente tão obsceno, ele não se compara àqueles pervertidos. 
          Saindo pelo túnel, ele vê cafetões e prostitutas pela calçada. Um deles, vendo que Nathan acabara de sair de uma casa de hologramas, se aproxima do rapaz e diz:
          - Ei, garoto, você parece desanimado. Os hologramas não conseguiram te satisfazer?
          Ainda caminhando, o rapaz responde sem olha-lo nos olhos:
          - Não foi para isso que eu vim.
          - Não seja igual a esses perdedores, cara. Venha para a minha casa noturna, ela está no 54° andar desta mesma megatorre. Lá você encontrará as melhores mulheres – ou homens se você preferir – que você já viu e, principalmente, todos de verdade como eu e você.
          - Não estou interessado.
          Ao dizer isso, outro cafetão ouve sua resposta e vem promover seus serviços a Nathan também.
          - Eu já entendi, você tem gostos peculiares não é? Ou é demasiado inseguro ao se relacionar com uma mulher? O que aconteceu? Sua mãe te bateu muito quando era criança?
          Então Nathan se irrita.
          - Me deixe em paz.
          - Não precisa ser tímido. O tipo de mulher que você gosta está entre a real e a holográfica. Eu tenho o que você precisa: androides! – exclama ele, como se tivesse feito uma tremenda descoberta – Elas são demais, não reclamam, não têm dor de cabeça, não pedem filhos, não confiscam salários, não te dão um chute no saco ao se fazer uma investida... Minha casa noturna está no 49°. Eu te levo lá, você vai gostar do que vai ver.
           O túnel inteiro tinha esses profissionais do prazer, cada um com uma propaganda mais indiscreta que a outra. Nathan se desanima ao ver que há cafetões na entrada do aerometrô também. Prevendo que sua viagem de volta será muito desagradável, ele desiste de pegar o trem e decide chamar um táxi.
           Desviando-se de seu caminho, ele deixa aquela parte conturbada do distrito Skyline e entra em uma cabine telefônica. Ao digitar o número, a tela do vidphone se acende. Um homem aparece na tela, olhando para frente enquanto dirige.
           - Taxista, pode me pegar no Skyline, por favor?
          O homem então olha para a tela e responde:
          - É claro, amigo. Encontre-me no ponto de aero-ônibus à beira da megatorre.
          Encerrando a chamada, a tela se escurece.

§

           Na plataforma ao lado da megatorre, ele espera pelo táxi. Pessoas se aglomeram na plataforma, esperando para pegar os aero-ônibus que passam ali. Os aerocarros voam de um lado ao outro em Sonata, passando por entre as torres em vários níveis, nunca perdendo seu senso de direção. De repente um aerocarro amarelo surge entre eles e buzina para a plataforma. Nathan rapidamente adentra o veículo e se senta no banco de trás. Ele ia dizer o destino quando vê outro homem sentado ao seu lado.
          - O que é isso? Eu estou no táxi errado?
          - Desculpe-me, senhor. Estamos com poucos aerocarros no trânsito. Com esses atentados terroristas, muitos estão com medo de trabalhar.
          Guardando para si o incômodo, ele assente e então diz:
          - Leve-me ao distrito residencial Verdun, ao lado de Autremont.
          - Sim, senhor. Mas antes deixarei este cidadão no distrito industrial Phalanx, se não se incomodar.
          Nathan responde:
          - Não pode me deixar primeiro?
          - Desculpe-me, senhor. Este passageiro estava aqui antes.
          Não existe mais privacidade em Sonata, não existe mais paz. Os que se isolam ficam em seus apartamentos, escondidos e a salvo do mundo caótico lá fora.
          O táxi se movimenta e se alinha às vias virtuais do espaço aéreo urbano. Contrariado, Nathan se cala e pretende ficar em silêncio o tempo todo. Então o outro passageiro ao seu lado pergunta:
          - Você trabalha nas corporações?
          O rapaz olha para o homem. Ele tem um rosto pálido e bem barbeado. Seus olhos são negros, como se demonstrassem vigilância. Estranhamente ele veste um casaco volumoso demais para um dia quente como aquele.
          - Sim.
          - Bio Prótesis...?
          - Electro Core.
          - Sua escolaridade é de nível superior?
           - Sim.
           - Meus parabéns. Nem todos têm condições ou aptidões para estudar em uma faculdade hoje em dia. E esses que não conseguem – como posso chamá-los... inaptos e desafortunados... – acabam trabalhando o resto de suas vidas em serviços braçais pesados, obrigados a implantarem membros bioprotéticos em seus corpos, braço por braço, perna por perna, até sua verdadeira essência orgânica desaparecer em degradantes linhas industriais de produção, corroídos pelo estresse e pela dor até o dia em que morrerem.
          Com a estranha reposta Nathan vira sua cabeça, terminando a conversa.
          - Muito prazer. – diz o homem, estendendo sua mão.
Nathan estende sua mão, exibindo seu braço biomecânico. O homem o vê e faz uma expressão de repugnância.
          - Você é jovem, e por trabalhar nas corporações devo deduzir que é inteligente também. A organização da qual faço parte se beneficiaria muito de novos recrutas como você.
          - Recruta? De que organização está falando?
          - Nossa organização acredita que o uso prolongado de próteses e implantes causam um efeito neural nocivo no usuário, lhe enfraquecendo a razão. Esses chips destroem o usuário. O corpo e a mente se acostumam com sua presença cada vez mais obrigatória e fundamental. O organismo não mais os rejeita, ao contrário, os aceita mais ainda. É um processo lento e silencioso de simbiose, muito mais forte do que qualquer droga.
           - Está dizendo que implantes bioprotéticos que curam pessoas e salvam vidas são... simbióticos...?
          - A fusão neural e corpórea funciona melhor se o usuário acreditar que, de fato, os implantes possam ajudá-lo. Deste modo, a manipulação estará completa.
          - Cegos enxergarem, surdos ouvirem e cadeirantes andarem é prejudicial para sua organização?
          - A escravidão é um preço justo a se pagar?
          - Somos escravos?
          - Você trabalha em uma corporação, não trabalha?
          Então Nathan se cala.
          O táxi voa pela metrópole, até as bonitas torres urbanas mudarem para as robustas tubulações da paisagem industrial.
          - Você conhece o distrito industrial Phalanx do qual estou indo?
          - Não.
          O rapaz conhece. Fica no Setor K, ao lado do famoso muro de Contenção que rodeia a metrópole.
          - Neste setor estão alguns daqueles que te falei, os trabalhadores braçais robóticos, meio máquina, meio humano, condenados a morrer aqui.
          - Acho que você está exagerando.
          - E também estão... – prossegue ele, ignorando o rapaz – ...aqueles manipulados, expostos a tempo demais à lavagem cerebral dos implantes. Estes são a escória, o câncer do novo mundo, a última ameaça a ser destruída.
          - Destruir os trabalhadores? Essa discriminação realmente lhe faz sentido?
          - Ah não, meu jovem. Acho que não fui claro. O trabalho destes não é produzir bens de consumo para essa podre sociedade corporativa. Estes não veem o dano que os implantes cibernéticos produzem... Estes o defendem.
          Então o homem abre seu casaco e retira uma pistola de sua cintura. Nathan se apavora, o homem tem um cinturão de bombas ao redor de seu corpo.
          Apontando a arma para a cabeça do motorista, ele diz:
          - Desça o aerocarro ao galpão dos Trans-humanistas!
           Assustado, o motorista responde:
           - O quê?! Que galpão dos Trans-humanistas? Eu não sei do que está falando!
           - Então eu mesmo dirijo até lá... – o homem destrava sua arma.
          - Espere! Está bem, eu faço o que quiser, mas não atire!
          O motorista conduz o aerocarro pelas tubulações e chaminés. Há alguns galpões nas megaestruturas de concreto, mas o motorista não faz ideia aonde está indo.
           - Depressa! – grita o homem.
           Nathan está paralisado. Agora ele consegue ver bem o terrorista. O homem não tem nenhum membro bioprotético aparente, como se seu corpo fosse puramente feito de carne e ossos, uma raridade hoje em dia. É então que Nathan percebe. O homem ao seu lado definitivamente é membro de uma facção radical e violenta de Sonata, a sanguinária Resistência Purista.
          O motorista vira bruscamente o volante, fazendo o terrorista se desequilibrar. Em um piscar de olhos, o motorista o ataca e tenta arduamente desarmá-lo. Nathan está apavorado e não sabe o que fazer. O aerocarro está desgovernado e voa perigosamente entre as vias e os prédios próximos. A arma do homem dispara, fazendo vários buracos na lataria do veículo. Como se tudo aquilo fosse um pesadelo ou um filme ruim, o motorista agarra as mãos do terrorista e tenta apontar a arma para o seu queixo. O aerocarro bate em alguma coisa e o desconcentra. Agora o terrorista força suas mãos e tenta mirá-la de volta ao motorista.
          O aerocarro bate novamente. Nathan ouve um disparo. O motorista é baleado no peito e cai no banco da frente. O terrorista se inclina sobre o banco e tenta pegar o volante. As bombas em sua cintura balançam, Nathan vê que são dezenas de granadas de mão. Sangue escorre para os pés do rapaz quando ele ouve:
          - Ei, babaca.
          O terrorista olha para baixo e vê o motorista segurando um pino. O homem se desespera. Enquanto ele está distraído, Nathan aperta um botão no painel do aerocarro e as portas se abrem. Em um momento muito improvável de coragem de quem quer sobreviver, Nathan empurra o terrorista com os pés, chutando-o para fora do veículo. O homem é lançado para fora, mas consegue se segurar na abertura da porta. Nathan se surpreende, os segundos antes da explosão estavam demorando demais!
          Reunindo suas forças, o motorista se levanta e pisa na mão do homem, esmagando seus dedos. O terrorista grita e solta, caindo descontroladamente pelo elevado céu de Sonata. Nathan olha para fora e vê o homem caindo, estranhamente ele parece sorrir. De repente vem a explosão, reverberando o ar e desmembrando seu corpo “puro e imaculado pela simbiose das máquinas” em milhares de pedaços.
          Respirando aliviado, ele sente algo incomodar seu joelho. Nathan olha para o banco e vê outra granada, o pino estava ausente. Pulando para o banco do motorista, ele grita:
          - Proteja-se!
           O impacto da explosão é fascinante, quase alucinógeno. O rapaz perde a audição, o tempo parece desacelerar-se. Entre longos e confusos segundos, ele vê o fogo queimar o estofado e parte da lataria se soltar do resto do veículo. E paradoxalmente tudo isso parece tão... pacífico.
          A audição e o tempo voltam ao normal lentamente, acompanhados de uma terrível dor física. Nathan olha para o que sobrou do para-brisa e vê o colossal muro de Contenção se aproximando. No muro está escrito: “Limite da cidade. Volte”. Puxando firmemente o volante, o aerocarro começa a subir, aproxima-se perigosamente da muralha. Nathan tem a impressão de estar escalando a barragem de uma usina hidroelétrica, algo extinto nos dias atuais.
          O aerocarro chega ao topo, mas esgotado após o esforço, começa a cair novamente, desta vez no outro lado da Contenção. Acima do muro ele vê uma avenida estreita e deserta, com arame farpado em seu entorno. Nathan treme. Seu corpo está inundado de adrenalina e surpresa, o que ele vê diante de seus olhos é inacreditável!
          O mundo exterior é real!
           A fronteira entre mundos, o abismo entre a vida e a morte, Nathan se sente um deus vendo o inferno abaixo de si, sentado em seu trono flutuante no Paraíso. A cidade cinzenta, arruinada e morta, os restos da antiga metrópole que pulsava vida séculos atrás. A mesma cidade rica e populosa que hoje carrega na escuridão memórias amargas de um passado glorioso.
           O aerocarro desce rapidamente. A paisagem vai se definindo quando ele vê enormes prédios em ruínas envolvidos por uma fina camada de neblina. Nathan sente medo ao ver que todos os lugares são escuros e vazios, nada convidativo naquele lugar tão inóspito.
          Caindo em uma rua, o impacto reverbera o veículo e, batendo sua cabeça, Nathan desmaia.



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