Táxi!
Nathan deixa a câmara holográfica e
caminha para fora do recinto. Vendo as demais câmaras no corredor, ele ouve os
outros clientes se lá dentro se divertindo. Aquelas pessoas – sobretudo homens
– pagam para ter suas fantasias sexuais realizadas pela ilusão holográfica. O
rapaz se difere delas, pois apesar de frequentar aquele ambiente tão obsceno,
ele não se compara àqueles pervertidos.
Saindo pelo túnel, ele vê cafetões e
prostitutas pela calçada. Um deles, vendo que Nathan acabara de sair de uma casa
de hologramas, se aproxima do rapaz e diz:
- Ei, garoto, você parece desanimado.
Os hologramas não conseguiram te satisfazer?
Ainda caminhando, o rapaz responde
sem olha-lo nos olhos:
- Não foi para isso que eu vim.
- Não seja igual a esses perdedores,
cara. Venha para a minha casa noturna, ela está no 54° andar desta mesma
megatorre. Lá você encontrará as melhores mulheres – ou homens se você preferir
– que você já viu e, principalmente, todos de verdade como eu e você.
- Não estou interessado.
Ao dizer isso, outro cafetão ouve sua
resposta e vem promover seus serviços a Nathan também.
- Eu já entendi, você tem gostos
peculiares não é? Ou é demasiado inseguro ao se relacionar com uma mulher? O
que aconteceu? Sua mãe te bateu muito quando era criança?
Então Nathan se irrita.
- Me deixe em paz.
- Não precisa ser tímido. O tipo de
mulher que você gosta está entre a real e a holográfica. Eu tenho o que você
precisa: androides! – exclama ele, como se tivesse feito uma tremenda
descoberta – Elas são demais, não reclamam, não têm dor de cabeça, não pedem
filhos, não confiscam salários, não te dão um chute no saco ao se fazer uma
investida... Minha casa noturna está no 49°. Eu te levo lá, você vai gostar do
que vai ver.
O túnel inteiro tinha esses profissionais
do prazer, cada um com uma propaganda mais indiscreta que a outra. Nathan se
desanima ao ver que há cafetões na entrada do aerometrô também. Prevendo que
sua viagem de volta será muito desagradável, ele desiste de pegar o trem e
decide chamar um táxi.
Desviando-se de seu caminho, ele
deixa aquela parte conturbada do distrito Skyline e entra em uma cabine
telefônica. Ao digitar o número, a tela do vidphone se acende. Um homem aparece
na tela, olhando para frente enquanto dirige.
- Taxista, pode me pegar no Skyline,
por favor?
O homem então olha para a tela e
responde:
- É claro, amigo. Encontre-me no
ponto de aero-ônibus à beira da megatorre.
Encerrando a chamada, a tela se
escurece.
§
Na plataforma ao lado da megatorre,
ele espera pelo táxi. Pessoas se aglomeram na plataforma, esperando para pegar
os aero-ônibus que passam ali. Os aerocarros voam de um lado ao outro em Sonata,
passando por entre as torres em vários níveis, nunca perdendo seu senso de
direção. De repente um aerocarro amarelo surge entre eles e buzina para a
plataforma. Nathan rapidamente adentra o veículo e se senta no banco de trás.
Ele ia dizer o destino quando vê outro homem sentado ao seu lado.
- O que é isso? Eu estou no táxi
errado?
- Desculpe-me, senhor. Estamos com poucos
aerocarros no trânsito. Com esses atentados terroristas, muitos estão com medo
de trabalhar.
Guardando para si o incômodo, ele
assente e então diz:
- Leve-me ao distrito residencial
Verdun, ao lado de Autremont.
- Sim, senhor. Mas antes deixarei este
cidadão no distrito industrial Phalanx, se não se incomodar.
Nathan responde:
- Não pode me deixar primeiro?
- Desculpe-me, senhor. Este
passageiro estava aqui antes.
Não existe mais privacidade em
Sonata, não existe mais paz. Os que se isolam ficam em seus apartamentos,
escondidos e a salvo do mundo caótico lá fora.
O táxi se movimenta e se alinha às
vias virtuais do espaço aéreo urbano. Contrariado, Nathan se cala e pretende
ficar em silêncio o tempo todo. Então o outro passageiro ao seu lado pergunta:
- Você trabalha nas corporações?
O rapaz olha para
o homem. Ele tem um rosto pálido e bem barbeado. Seus olhos são negros, como se
demonstrassem vigilância. Estranhamente ele veste um casaco volumoso demais
para um dia quente como aquele.
- Sim.
- Bio Prótesis...?
- Electro Core.
- Sua escolaridade é de nível
superior?
- Sim.
- Meus parabéns. Nem todos têm
condições ou aptidões para estudar em uma faculdade hoje em dia. E esses que
não conseguem – como posso chamá-los... inaptos e desafortunados... – acabam
trabalhando o resto de suas vidas em serviços braçais pesados, obrigados a
implantarem membros bioprotéticos em seus corpos, braço por braço, perna por
perna, até sua verdadeira essência orgânica desaparecer em degradantes linhas
industriais de produção, corroídos pelo estresse e pela dor até o dia em que
morrerem.
Com a estranha reposta Nathan vira
sua cabeça, terminando a conversa.
- Muito prazer. – diz o homem,
estendendo sua mão.
Nathan estende sua mão, exibindo seu
braço biomecânico. O homem o vê e faz uma expressão de repugnância.
- Você é jovem, e por trabalhar nas
corporações devo deduzir que é inteligente também. A organização da qual faço
parte se beneficiaria muito de novos recrutas como você.
- Recruta? De que organização está
falando?
- Nossa organização acredita que o
uso prolongado de próteses e implantes causam um efeito neural nocivo no
usuário, lhe enfraquecendo a razão. Esses chips destroem o usuário. O corpo e a
mente se acostumam com sua presença cada vez mais obrigatória e fundamental. O
organismo não mais os rejeita, ao contrário, os aceita mais ainda. É um
processo lento e silencioso de simbiose, muito mais forte do que qualquer
droga.
- Está dizendo que implantes
bioprotéticos que curam pessoas e salvam vidas são... simbióticos...?
- A fusão neural e corpórea funciona
melhor se o usuário acreditar que, de fato, os implantes possam ajudá-lo. Deste
modo, a manipulação estará completa.
- A escravidão é um preço justo a se
pagar?
- Somos escravos?
- Você trabalha em uma corporação,
não trabalha?
Então Nathan se cala.
O táxi voa pela metrópole, até as
bonitas torres urbanas mudarem para as robustas tubulações da paisagem
industrial.
- Você conhece o distrito industrial
Phalanx do qual estou indo?
- Não.
O rapaz conhece. Fica no Setor K, ao
lado do famoso muro de Contenção que rodeia a metrópole.
- Neste setor estão alguns daqueles
que te falei, os trabalhadores braçais robóticos, meio máquina, meio humano,
condenados a morrer aqui.
- Acho que você está exagerando.
- E também estão... – prossegue ele,
ignorando o rapaz – ...aqueles manipulados, expostos a tempo demais à lavagem
cerebral dos implantes. Estes são a escória, o câncer do novo mundo, a última
ameaça a ser destruída.
- Destruir os trabalhadores? Essa
discriminação realmente lhe faz sentido?
- Ah não, meu jovem. Acho que não fui
claro. O trabalho destes não é produzir bens de consumo para essa podre
sociedade corporativa. Estes não veem o dano que os implantes cibernéticos
produzem... Estes o defendem.
Então o homem abre seu casaco e
retira uma pistola de sua cintura. Nathan se apavora, o homem tem um cinturão
de bombas ao redor de seu corpo.
Apontando a arma para a cabeça do motorista,
ele diz:
- Desça o aerocarro ao galpão dos
Trans-humanistas!
Assustado, o motorista responde:
- O quê?! Que galpão dos
Trans-humanistas? Eu não sei do que está falando!
- Então eu mesmo dirijo até lá... – o
homem destrava sua arma.
- Espere! Está bem, eu faço o que
quiser, mas não atire!
O motorista conduz o aerocarro pelas
tubulações e chaminés. Há alguns galpões nas megaestruturas de concreto, mas o
motorista não faz ideia aonde está indo.
- Depressa! – grita o homem.
Nathan está
paralisado. Agora ele consegue ver bem o terrorista. O homem não tem nenhum
membro bioprotético aparente, como se seu corpo fosse puramente feito de carne
e ossos, uma raridade hoje em dia. É então que Nathan percebe. O homem ao seu
lado definitivamente é membro de uma facção radical e violenta de Sonata, a
sanguinária Resistência Purista.
O motorista vira bruscamente o
volante, fazendo o terrorista se desequilibrar. Em um piscar de olhos, o
motorista o ataca e tenta arduamente desarmá-lo. Nathan está apavorado e não
sabe o que fazer. O aerocarro está desgovernado e voa perigosamente entre as
vias e os prédios próximos. A arma do homem dispara, fazendo vários buracos na
lataria do veículo. Como se tudo aquilo fosse um pesadelo ou um filme ruim, o
motorista agarra as mãos do terrorista e tenta apontar a arma para o seu
queixo. O aerocarro bate em alguma coisa e o desconcentra. Agora o terrorista
força suas mãos e tenta mirá-la de volta ao motorista.
O aerocarro bate novamente. Nathan
ouve um disparo. O motorista é baleado no peito e cai no banco da frente. O
terrorista se inclina sobre o banco e tenta pegar o volante. As bombas em sua
cintura balançam, Nathan vê que são dezenas de granadas de mão. Sangue escorre
para os pés do rapaz quando ele ouve:
- Ei, babaca.
O terrorista olha para baixo e vê o
motorista segurando um pino. O homem se desespera. Enquanto ele está distraído,
Nathan aperta um botão no painel do aerocarro e as portas se abrem. Em um
momento muito improvável de coragem de quem quer sobreviver, Nathan empurra o
terrorista com os pés, chutando-o para fora do veículo. O homem é lançado para
fora, mas consegue se segurar na abertura da porta. Nathan se surpreende, os
segundos antes da explosão estavam demorando demais!
Reunindo suas forças, o motorista se
levanta e pisa na mão do homem, esmagando seus dedos. O terrorista grita e
solta, caindo descontroladamente pelo elevado céu de Sonata. Nathan olha para
fora e vê o homem caindo, estranhamente ele parece sorrir. De repente vem a
explosão, reverberando o ar e desmembrando seu corpo “puro e imaculado pela
simbiose das máquinas” em milhares de pedaços.
Respirando aliviado, ele sente algo
incomodar seu joelho. Nathan olha para o banco e vê outra granada, o pino
estava ausente. Pulando para o banco do motorista, ele grita:
- Proteja-se!
O impacto da explosão é fascinante,
quase alucinógeno. O rapaz perde a audição, o tempo parece desacelerar-se.
Entre longos e confusos segundos, ele vê o fogo queimar o estofado e parte da
lataria se soltar do resto do veículo. E paradoxalmente tudo isso parece tão...
pacífico.
A audição e o
tempo voltam ao normal lentamente, acompanhados de uma terrível dor física.
Nathan olha para o que sobrou do para-brisa e vê o colossal muro de Contenção
se aproximando. No muro está escrito: “Limite da cidade. Volte”. Puxando
firmemente o volante, o aerocarro começa a subir, aproxima-se perigosamente da
muralha. Nathan tem a impressão de estar escalando a barragem de uma usina
hidroelétrica, algo extinto nos dias atuais.
O aerocarro chega ao topo, mas
esgotado após o esforço, começa a cair novamente, desta vez no outro lado da
Contenção. Acima do muro ele vê uma avenida estreita e deserta, com arame
farpado em seu entorno. Nathan treme. Seu corpo está inundado de adrenalina e
surpresa, o que ele vê diante de seus olhos é inacreditável!
O mundo exterior é real!
A fronteira entre mundos, o abismo
entre a vida e a morte, Nathan se sente um deus vendo o inferno abaixo de si,
sentado em seu trono flutuante no Paraíso. A cidade cinzenta, arruinada e morta,
os restos da antiga metrópole que pulsava vida séculos atrás. A mesma cidade
rica e populosa que hoje carrega na escuridão memórias amargas de um passado glorioso.
O aerocarro desce rapidamente. A
paisagem vai se definindo quando ele vê enormes prédios em ruínas envolvidos
por uma fina camada de neblina. Nathan sente medo ao ver que todos os lugares
são escuros e vazios, nada convidativo naquele lugar tão inóspito.
Caindo em uma rua, o impacto
reverbera o veículo e, batendo sua cabeça, Nathan desmaia.
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