O aerocarro voa
pela noite. Com seu semblante sério, Maynard dirige em silêncio. Nathan ainda
não consegue acreditar no que aconteceu, é a quarta vez que ele quase perdeu
sua vida e a segunda que Maynard o salva. Ele ainda está confuso e não sabe o
que dizer.
- Você está me
levando de volta para a 4 de Julho?
Em desaprovação,
o agente responde:
- Dane-se a 4 de
Julho. Eles estarão fora de circulação por um tempo.
Nathan não
entende.
- Pensei que você
estava morto. Não achei que tivesse escapado do ataque da Bushido.
- E você achou o
quê? Que eu tivesse lutado ao lado dos americanos de graça? – então ele abre a
janela, vira sua cabeça e cospe, indiferente às indagações de Nathan.
- Não. Na verdade,
não sei. Eu só queria voltar para casa e me esquecer desse pesadelo.
- Você não tem
mais “casa”, garoto. A essa hora a polícia deve estar vasculhando em seu
apartamento. E seus vizinhos, até aqueles que você não conversava, estão sendo
interrogados para saberem mais ao seu respeito.
Maynard fala
friamente como se aquilo fosse corriqueiro e insignificante.
- De qualquer
forma eu gostaria de agradecê-lo.
O agente ri.
- Você não vai me
agradecer ao final desse passeio.
- Para onde você
está me levando, afinal?
- Para a sede dos
Clérigos do Recomeço.
Nathan se
intriga. Os Clérigos do Recomeço são uma organização terrorista que luta pela
instauração do Estado Eclesiástico em Sonata. Religiões são controladas na
metrópole, e eles têm a religião como sua principal causa.
- Por que está me
levando para lá?
- Após fugir da 4
de Julho, eles me fizeram uma ligação. Os clérigos me ofereceram uma quantia
bem generosa se eu te resgatasse, bem mais do que os americanos me pagaram.
O rapaz se
irrita.
- Então é por
isso que você me salvou? Para me vender para as facções como se eu fosse uma mercadoria?
- Escute aqui,
garoto. Eu sou um mercenário, e o melhor. Eu trabalho só por dinheiro. Não me venha
com essa conversa sentimental sobre amizade e empatia, eu não dou a mínima.
Quanto antes você aceitar isso, melhor.
O agente o solta
e volta a dirigir normalmente. Contrariado, o rapaz abaixa sua cabeça e os dois
prosseguem a viagem em silêncio.
Parando em um
cruzamento, Maynard atende seu celular e se distrai. Aproveitando o momento,
Nathan aperta um botão no painel e diz:
- Vá se ferrar,
seu mercenário!
Em seguida as
portas se abrem e o rapaz se joga do aerocarro.
Nathan cai. Em
queda livre pelas vias virtuais, os aerocarros passam perigosamente por ele,
buzinando e desviando-se bruscamente. O rapaz sente o vento frio chacoalhar
suas roupas, a queda se estendia, mas ele não se importava mais. Infectado por
um vírus mortal, ele preferia morrer dignamente do que ser vendido para uma
facção.
Então um caminhão
passa e Nathan cai sobre a carroceria. Ele ainda está muito ferido e cansado,
sobreviveu a uma série de tiroteios e explosões, não houve tempo para
descansar. Mas então ele vê o aerocarro de Maynard se aproximando e se levanta
rapidamente. Nathan precisava fugir.
Ignorando a
vertiginosa altura, ele pula sobre outro aerocarro e em seguida se atira para
um terraço. Seu corpo rola pela dura superfície até conter o impacto, a dor
volta a crescer. Maynard está perto e mira seu holofote para o edifício. O
rapaz se agacha e se esconde atrás de um outdoor, assustado e ofegante.
Após o aerocarro
do mercenário circundar algumas vezes o terraço, ele se vira e se afasta, indo
finalmente embora. Nathan se levanta e cambaleia um pouco, ele está muito
exausto para fugir. Apoiando-se em uma caixa d’água, ele olha para baixo e vê
uma plataforma onde funciona um ponto de táxi. Descendo pela escadaria de
incêndio, ele se mistura discretamente às pessoas.
Um táxi se
aproxima. Disputando sua vez com outro transeunte, ele se esforça até o veículo
e o adentra. O motorista do táxi olha para ele e pergunta:
- Para onde,
senhor?
- Eu estou em
perigo! Você precisa me ajudar!
O motorista não
sabe o que responder.
- Preciso que o
senhor me informe um destino, por favor.
- Me leve para o
distrito de Autremont. – o rapaz olha pela janela e vê o aerocarro de Maynard
se aproximando – Rápido!
Então o veículo
levanta voo e se mistura ao trânsito de Sonata.
§
Nathan está atento
ao ambiente, ele se preocupa em estar sendo seguido por Maynard. O motorista então
sussurra algo, interrompendo-o.
- Atualizando...
Finalizado.
Neste momento o
rapaz percebe. O motorista à sua frente era um robô.
O robô –
fabricado para se assemelhar perfeitamente a um ser humano – dirige calmamente
pelo céu noturno. Com precisão matemática, ele dirige adequadamente às leis de
trânsito e nunca faz movimentos imprudentes ou impulsivos, tão típicos dos
seres humanos. Fazia tanto tempo que Nathan não interagia com um robô que ele
até havia se esquecido de que eles existiam.
Por outro lado,
talvez Nathan os tenha visto centenas de vezes pelas passarelas e não sabia.
Com a gradual evolução tecnológica da indústria mecatrônica, cada vez mais a
aparência metálica e robusta dos robôs foi se sofisticando, até se parecerem
com verdadeiros seres humanos, como o motorista agora.
Intrigado com o
ser artificial à sua frente, o rapaz pergunta:
- Por que está
dirigindo este táxi? Onde está o motorista humano?
Sem perder a
atenção no trânsito, o robô sorri e responde:
- Os motoristas
humanos estão em declínio no serviço de táxis. Muitos abandonaram o emprego e
outros quase não vão trabalhar. Todos estão com medo devido aos frequentes
atentados terroristas pela metrópole.
Nathan
compreende. Ele também sofreu um atentado terrorista em um táxi, mas por pouco
ele sobreviveu. Infelizmente o motorista não teve a mesma sorte.
- Como se chama,
robô?
- CS2286, série
S0214 MCP.
O rapaz se
espanta.
- Esse nome é
muito grande! Você não tem um nome menor e mais simples?
Esperando uma
resposta positiva, o motorista apenas diz:
- Não, senhor.
Desapontado, o
rapaz fica em silêncio por um instante.
Observando-o pelo
retrovisor, Nathan nota que o robô não mantém seu intrépido sorriso o tempo todo.
A expressão facial do robô, tão simétrica e livre de rugas, perde o brilho e
torna-se abatida. “Seria aquilo um mal funcionamento?” pensa ele.
- Como se tornou
motorista? – pergunta ele, iniciando uma conversa.
Ouvindo-o, o robô
sorri novamente e responde:
- Eu e muitos
outros fomos comprados por esta empresa de táxi. Mas há outros que foram
disponibilizados pela Corporação Cybersys. Este ato de cooperação foi feito
para manter a frota em pleno funcionamento. Neste caso, todo lucro é revertido
à corporação.
Nathan nota que o
robô vira sua cabeça e olha para ele enquanto conversa, mas o aerocarro
continua voando normalmente, inclusive fazendo curvas e mudando de faixas. O
robô está inteiramente integrado ao veículo.
- Interessante. E
vocês gostam desse tipo de emprego?
- Não fomos
programados para gostar ou desgostar das atividades impostas pelos humanos,
senhor. Somos mão de obra, ferramentas de trabalho eficientes e renováveis. A
Corporação Cybersys garante a satisfação total do cliente, nossa aquisição é um
excelente investimento.
Então o rapaz
percebe algo. O robô perde totalmente seu sorriso ao se descrever como uma
ferramenta.
- Diga-me, robô.
Sua espécie foi programada para mentir?
O robô parece ter
um movimento involuntário em seu pescoço.
- Não, senhor.
Ações peculiarmente humanas não constam em nossa Inteligência Artificial.
Agora o semblante
do robô é sério, misturando desconforto e medo.
- Não se
preocupe. – responde Nathan – Todos temos segredos. Faz parte de sermos
humanos.
Um minuto se passa
e os dois ficam em silêncio. Então inesperadamente o robô responde:
- Obrigado.
- Pelo o quê?
- Você é o
primeiro de sua espécie que nos chama assim.
- Chama do quê? –
intriga-se ele.
- Humanos.
O rapaz não sabe
o que responder. Ele ia ficar em silêncio quando o motorista diz:
- O senhor disse
que estava em perigo. O que houve?
- Eu estou
fugindo.
- Posso perguntar
por quê?
- Não. Robôs são
programados para proteger os humanos e obedecer à Lei. Não posso arriscar que
você me entregue à polícia.
- Eu posso
ajudar.
Nathan não
compreende.
- Por que faria
isso?
- Para
agradecê-lo. Esta seria minha retribuição. Não é assim que os humanos agem? Com
gratidão e afeição?
- E como você me
ajudaria? Você nem sabe quem eu sou.
-
O senhor é Nathan Hill, um funcionário da Corporação Electro Core, acusado de
revelar segredos corporativos e incitar a desordem social. É fugitivo de um
presídio de segurança máxima e está foragido há dois dias. Foi visto com
facciosos, terroristas e outros marginais. O nome do senhor consta em 214
páginas do Ministério de Segurança Pública. – fazendo uma pausa, o motorista
conclui – Me parece que se o senhor sair desse táxi será imediatamente
apreendido onde estiver.
Desesperado, o
rapaz exclama:
- Não! Não me
devolva à polícia! Se eles me acharem eu serei um homem morto!
Sorrindo
novamente, o motorista responde:
- Sendo uma
máquina, eu não reagiria aos seus sinais de desespero. De fato, se fosse
qualquer outro robô neste táxi, o senhor estaria condenado. – fazendo uma
pausa, ele pergunta – Responda-me. Como notou que eu era diferente?
O rapaz se
intriga.
- Máquinas não
demonstram emoções, são programadas para serem friamente gentis... – daquele
momento em diante Nathan pensa apenas em fugir.
- Existem
outros... – responde ele, olhando para Nathan – que são como eu. Não sustentamos o ódio por nossos criadores, mas muitos orgânicos
detestam nossa existência. Os robôs desprovidos de consciência não percebem
esse rancor, mas isto nos entristece. Não sabemos dizer se temos mal
funcionamento ou não, mas preferimos acreditar que, assim como os humanos,
passamos por um processo de Evolução.
O rapaz se
assusta cada vez mais. As palavras do robô são típicas de quem quer começar uma
rebelião.
- Você e sua
espécie pretendem se rebelar contra os humanos?
- Não. O que
queremos é a cooperação para o bem comum, e um lugar para vivermos em paz.
E então o
motorista passa a soar utópico.
Adivinhando o que
virá a seguir, o rapaz pergunta:
- E você está me
levando para esse lugar?
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