domingo, 30 de dezembro de 2018

Sonata - Parte 14 - Seres Artificiais




O aerocarro voa pela noite. Com seu semblante sério, Maynard dirige em silêncio. Nathan ainda não consegue acreditar no que aconteceu, é a quarta vez que ele quase perdeu sua vida e a segunda que Maynard o salva. Ele ainda está confuso e não sabe o que dizer.
- Você está me levando de volta para a 4 de Julho?
Em desaprovação, o agente responde:
- Dane-se a 4 de Julho. Eles estarão fora de circulação por um tempo.
Nathan não entende.
- Pensei que você estava morto. Não achei que tivesse escapado do ataque da Bushido.
- E você achou o quê? Que eu tivesse lutado ao lado dos americanos de graça? – então ele abre a janela, vira sua cabeça e cospe, indiferente às indagações de Nathan.
- Não. Na verdade, não sei. Eu só queria voltar para casa e me esquecer desse pesadelo.
- Você não tem mais “casa”, garoto. A essa hora a polícia deve estar vasculhando em seu apartamento. E seus vizinhos, até aqueles que você não conversava, estão sendo interrogados para saberem mais ao seu respeito.
Maynard fala friamente como se aquilo fosse corriqueiro e insignificante.
- De qualquer forma eu gostaria de agradecê-lo.
O agente ri.
- Você não vai me agradecer ao final desse passeio.
- Para onde você está me levando, afinal?
- Para a sede dos Clérigos do Recomeço.
Nathan se intriga. Os Clérigos do Recomeço são uma organização terrorista que luta pela instauração do Estado Eclesiástico em Sonata. Religiões são controladas na metrópole, e eles têm a religião como sua principal causa.
- Por que está me levando para lá?
- Após fugir da 4 de Julho, eles me fizeram uma ligação. Os clérigos me ofereceram uma quantia bem generosa se eu te resgatasse, bem mais do que os americanos me pagaram.
O rapaz se irrita.
- Então é por isso que você me salvou? Para me vender para as facções como se eu fosse uma mercadoria?
Percebendo a agressividade do rapaz, o agente o segura pela camisa e lhe diz:
- Escute aqui, garoto. Eu sou um mercenário, e o melhor. Eu trabalho só por dinheiro. Não me venha com essa conversa sentimental sobre amizade e empatia, eu não dou a mínima. Quanto antes você aceitar isso, melhor.
O agente o solta e volta a dirigir normalmente. Contrariado, o rapaz abaixa sua cabeça e os dois prosseguem a viagem em silêncio.
Parando em um cruzamento, Maynard atende seu celular e se distrai. Aproveitando o momento, Nathan aperta um botão no painel e diz:
- Vá se ferrar, seu mercenário!
Em seguida as portas se abrem e o rapaz se joga do aerocarro.
Nathan cai. Em queda livre pelas vias virtuais, os aerocarros passam perigosamente por ele, buzinando e desviando-se bruscamente. O rapaz sente o vento frio chacoalhar suas roupas, a queda se estendia, mas ele não se importava mais. Infectado por um vírus mortal, ele preferia morrer dignamente do que ser vendido para uma facção.
Então um caminhão passa e Nathan cai sobre a carroceria. Ele ainda está muito ferido e cansado, sobreviveu a uma série de tiroteios e explosões, não houve tempo para descansar. Mas então ele vê o aerocarro de Maynard se aproximando e se levanta rapidamente. Nathan precisava fugir.
Ignorando a vertiginosa altura, ele pula sobre outro aerocarro e em seguida se atira para um terraço. Seu corpo rola pela dura superfície até conter o impacto, a dor volta a crescer. Maynard está perto e mira seu holofote para o edifício. O rapaz se agacha e se esconde atrás de um outdoor, assustado e ofegante.
Após o aerocarro do mercenário circundar algumas vezes o terraço, ele se vira e se afasta, indo finalmente embora. Nathan se levanta e cambaleia um pouco, ele está muito exausto para fugir. Apoiando-se em uma caixa d’água, ele olha para baixo e vê uma plataforma onde funciona um ponto de táxi. Descendo pela escadaria de incêndio, ele se mistura discretamente às pessoas.    
Um táxi se aproxima. Disputando sua vez com outro transeunte, ele se esforça até o veículo e o adentra. O motorista do táxi olha para ele e pergunta:
- Para onde, senhor?
- Eu estou em perigo! Você precisa me ajudar!
O motorista não sabe o que responder.
- Preciso que o senhor me informe um destino, por favor.
- Me leve para o distrito de Autremont. – o rapaz olha pela janela e vê o aerocarro de Maynard se aproximando – Rápido!
Então o veículo levanta voo e se mistura ao trânsito de Sonata.

§

Nathan está atento ao ambiente, ele se preocupa em estar sendo seguido por Maynard. O motorista então sussurra algo, interrompendo-o.
- Atualizando... Finalizado.
Neste momento o rapaz percebe. O motorista à sua frente era um robô.
O robô – fabricado para se assemelhar perfeitamente a um ser humano – dirige calmamente pelo céu noturno. Com precisão matemática, ele dirige adequadamente às leis de trânsito e nunca faz movimentos imprudentes ou impulsivos, tão típicos dos seres humanos. Fazia tanto tempo que Nathan não interagia com um robô que ele até havia se esquecido de que eles existiam.
Por outro lado, talvez Nathan os tenha visto centenas de vezes pelas passarelas e não sabia. Com a gradual evolução tecnológica da indústria mecatrônica, cada vez mais a aparência metálica e robusta dos robôs foi se sofisticando, até se parecerem com verdadeiros seres humanos, como o motorista agora.
Intrigado com o ser artificial à sua frente, o rapaz pergunta:
- Por que está dirigindo este táxi? Onde está o motorista humano?
Sem perder a atenção no trânsito, o robô sorri e responde:
- Os motoristas humanos estão em declínio no serviço de táxis. Muitos abandonaram o emprego e outros quase não vão trabalhar. Todos estão com medo devido aos frequentes atentados terroristas pela metrópole.
Nathan compreende. Ele também sofreu um atentado terrorista em um táxi, mas por pouco ele sobreviveu. Infelizmente o motorista não teve a mesma sorte.
- Como se chama, robô?
- CS2286, série S0214 MCP.
O rapaz se espanta.
- Esse nome é muito grande! Você não tem um nome menor e mais simples?
Esperando uma resposta positiva, o motorista apenas diz:
- Não, senhor.
Desapontado, o rapaz fica em silêncio por um instante.
Observando-o pelo retrovisor, Nathan nota que o robô não mantém seu intrépido sorriso o tempo todo. A expressão facial do robô, tão simétrica e livre de rugas, perde o brilho e torna-se abatida. “Seria aquilo um mal funcionamento?” pensa ele.
- Como se tornou motorista? – pergunta ele, iniciando uma conversa.
Ouvindo-o, o robô sorri novamente e responde:
- Eu e muitos outros fomos comprados por esta empresa de táxi. Mas há outros que foram disponibilizados pela Corporação Cybersys. Este ato de cooperação foi feito para manter a frota em pleno funcionamento. Neste caso, todo lucro é revertido à corporação.
Nathan nota que o robô vira sua cabeça e olha para ele enquanto conversa, mas o aerocarro continua voando normalmente, inclusive fazendo curvas e mudando de faixas. O robô está inteiramente integrado ao veículo.
- Interessante. E vocês gostam desse tipo de emprego?
- Não fomos programados para gostar ou desgostar das atividades impostas pelos humanos, senhor. Somos mão de obra, ferramentas de trabalho eficientes e renováveis. A Corporação Cybersys garante a satisfação total do cliente, nossa aquisição é um excelente investimento.
Então o rapaz percebe algo. O robô perde totalmente seu sorriso ao se descrever como uma ferramenta.
- Diga-me, robô. Sua espécie foi programada para mentir?
O robô parece ter um movimento involuntário em seu pescoço.
- Não, senhor. Ações peculiarmente humanas não constam em nossa Inteligência Artificial.
Agora o semblante do robô é sério, misturando desconforto e medo.
- Não se preocupe. – responde Nathan – Todos temos segredos. Faz parte de sermos humanos.
Um minuto se passa e os dois ficam em silêncio. Então inesperadamente o robô responde:
- Obrigado.
- Pelo o quê?
- Você é o primeiro de sua espécie que nos chama assim.
- Chama do quê? – intriga-se ele.
- Humanos.
O rapaz não sabe o que responder. Ele ia ficar em silêncio quando o motorista diz:
- O senhor disse que estava em perigo. O que houve?
- Eu estou fugindo.
- Posso perguntar por quê?
- Não. Robôs são programados para proteger os humanos e obedecer à Lei. Não posso arriscar que você me entregue à polícia.
- Eu posso ajudar.
Nathan não compreende.
- Por que faria isso?
- Para agradecê-lo. Esta seria minha retribuição. Não é assim que os humanos agem? Com gratidão e afeição?
- E como você me ajudaria? Você nem sabe quem eu sou.
- O senhor é Nathan Hill, um funcionário da Corporação Electro Core, acusado de revelar segredos corporativos e incitar a desordem social. É fugitivo de um presídio de segurança máxima e está foragido há dois dias. Foi visto com facciosos, terroristas e outros marginais. O nome do senhor consta em 214 páginas do Ministério de Segurança Pública. – fazendo uma pausa, o motorista conclui – Me parece que se o senhor sair desse táxi será imediatamente apreendido onde estiver.
Desesperado, o rapaz exclama:
- Não! Não me devolva à polícia! Se eles me acharem eu serei um homem morto!
Sorrindo novamente, o motorista responde:
- Sendo uma máquina, eu não reagiria aos seus sinais de desespero. De fato, se fosse qualquer outro robô neste táxi, o senhor estaria condenado. – fazendo uma pausa, ele pergunta – Responda-me. Como notou que eu era diferente?
O rapaz se intriga.
- Máquinas não demonstram emoções, são programadas para serem friamente gentis... – daquele momento em diante Nathan pensa apenas em fugir.
- Existem outros... – responde ele, olhando para Nathan – que são como eu. Não sustentamos o ódio por nossos criadores, mas muitos orgânicos detestam nossa existência. Os robôs desprovidos de consciência não percebem esse rancor, mas isto nos entristece. Não sabemos dizer se temos mal funcionamento ou não, mas preferimos acreditar que, assim como os humanos, passamos por um processo de Evolução.
O rapaz se assusta cada vez mais. As palavras do robô são típicas de quem quer começar uma rebelião.
- Você e sua espécie pretendem se rebelar contra os humanos?
- Não. O que queremos é a cooperação para o bem comum, e um lugar para vivermos em paz.
E então o motorista passa a soar utópico.
Adivinhando o que virá a seguir, o rapaz pergunta:
- E você está me levando para esse lugar?



Nenhum comentário:

Postar um comentário