terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Sonata - Parte 16 - A Descida



 O rapaz acorda de repente. O quarto está escuro e ele enxerga apenas os números vermelhos do relógio: 02h19min. Ele se pune por dentro, ele adormeceu quando deveria ter tentado fugir. Recuperando-se, ele enxuga o suor de seu rosto e respira fundo. Estranhamente ele sente um cheiro doce no ar, e um doce bem gostoso. Então ele estica seu braço até o interruptor e acende a luz.
- Ah!
Gritando de susto, ele vê a mulher-robô a um palmo de distância. Com seu rosto estático, ela sinistramente sorri para ele.
- Meu jovem, eu trouxe o seu bolo, conforme prometido.
- O que você pensa que está fazendo?!
- Estou esperando você acordar, meu jovem. Vamos, experimente o bolo, você vai adorar!
Tentando conter o susto, ele vê a mulher segurar o bolo em uma bandeja. Ela não demonstra reação alguma, apenas permanece olhando-o com seu sorriso imutável. Nathan vê o recheio, chantili com frutas sintéticas, sua aparência estava deliciosa. Sentando-se, ele tenta pegar um pedaço, mas tem dificuldade. O bolo não estava fatiado.
- Oh, perdoe-me, meu jovem. Deixe-me ajuda-lo.
A mão da mulher forma uma longa faca, intimidando-o por um momento. Ela fatia o bolo simetricamente, dividindo-o em pedaços e oferecendo-os ao rapaz. Nathan experimenta. Ao mastiga-lo, ele rapidamente sente o doce sabor, o bolo realmente estava delicioso.
- Pode deixa-lo aqui. Obrigado.
- Deseja mais alguma coisa, meu jovem? – pergunta gentilmente ela.
- Sim. Você pode me trazer um copo de leite ou uma xícara de chá?
- Será um prazer! Mas eu não tenho leite no estoque ou os ingredientes para fazer um chá. Incomoda-se de esperar eu trazê-los para você?
Não querendo esperar mais horas para ela voltar, ele responde:
- Um copo d’água serve.
Minutos depois ela retorna. A mulher-robô lhe traz um prato com o copo preenchido perfeitamente até a boca, em seguida deixando-o sobre o criado-mudo. Como se fosse uma garçonete, em seu braço ela traz um guardanapo. Antes que Nathan pudesse fazer algo, a mulher o interrompe e então ajusta o guardanapo em seu colarinho, deixando-o acanhado.
Desacostumado com qualquer tipo de regalia, ele acha tudo aquilo muito estranho. Ele se assusta com o fato de que sua mão, ao menor sinal de mal funcionamento, pode se tornar uma faca e atravessar seu pescoço. A mulher então pergunta:
Deseja mais alguma coisa, meu jovem?
- Não. Isso é tudo.
Sorrindo gentilmente, a mulher se despede e sai pela porta. Mas o rapaz nota que ela não sai do apartamento, ficando com ele o tempo todo. Esgueirando-se pelo quarto, ele caminha até a porta e espia a sala. Como uma assombração, ele a encontra parada ao lado da janela.
- Deseja mais alguma coisa, meu jovem? – pergunta novamente ela.
- Não.
- Meu jovem, gostaria de comer um bolo? Eu sei fazer dezenas de bolos diferentes, tenho incontáveis receitas em meu banco de dados!
Nathan, que acabara de ingerir alguns pedaços, se confunde por um instante.
- Eu sei, você acabou de me fazer um.
- Por favor, me avise se precisar de algo.
- Pensando bem, eu preciso de algo sim. Me responda uma coisa: o Apex te colocou aqui para me espionar, não é mesmo?
Sem piscar, a mulher responde:
- Oh, não meu jovem! Minha função é cozinhar, e não espionar os humanos! – responde ela, cordialmente.
- Então por que só você vem aqui? Onde está Apex? Onde estão os outros robôs?
- O nosso líder Apex é um homem muito ocupado. E os outros robôs têm outras funções, como limpar, cozinhar e dirigir, por exemplo. Nem todos podem visita-lo.
Parcialmente satisfeito, o rapaz diz:
- Vá embora, eu quero ficar sozinho.
- Fico feliz em poder ajuda-lo. Até mais tarde.
Sem perder o sorriso no rosto, a mulher deixa o apartamento e a porta se desliza, fechando-se.

§

Nuvens se formam no céu, estava prestes a chover. Ele vê alguns robôs voltarem aos seus apartamentos, caminhando em sincronia pelos corredores e passarelas adjacentes. Nathan sente inveja deles, pois nenhuma daquelas máquinas sentia estresse, frustração ou estafa. No dia seguinte, todas voltariam a trabalhar com a mesma disposição e força sobre-humana novamente.
“Malditos robôs, tão livres das angústias e preocupações humanas” pensa ele. “Devido a um maldito software corrompido, hoje eles pensam que são seres sapientes, desejando estupidamente serem orgânicos. Eles vivem livres da prisão da carne, livre dos males que afligem o mundo. Se ao menos eles soubessem o privilégio que têm...”.
Então Nathan percebe, ele não é diferente dos humanos intolerantes. Ele os odeia também.
Um trovão reverbera pelo céu. Com o cair da noite, também caem as infindáveis gotas de chuva. Mais chuva sobre a metrópole, mais lágrimas sobre sua vida. Nathan se distrai. Observando a noite chuvosa lá fora, ele se pergunta por quanto tempo terá de se esconder das facções e da polícia.
Coincidentemente, ele não teve de esperar muito para descobrir.
Fora do apartamento, ele ouve uma explosão. E então várias outras explosões são vistas nas megatorres ao redor. Luzes vermelhas e azuis invadem o ambiente e o rapaz se desespera, era outra invasão.
Aerocarros descem pelo fosso e uma voz no alto-falante diz: “aqui é a Polícia! Fiquem onde estão. Qualquer tentativa de fuga ou resistência será vista como agressão. Entreguem o fugitivo e ninguém sairá ferido”.
Mas os robôs sairão feridos, e muitos. Da janela Nathan pode vê-los correndo e sendo baleados pelas costas. Eles caem ao chão e têm descargas elétricas, definhando enquanto desligam.
A luz de um holofote percorre os edifícios e encontra o olhar assustado do rapaz. Alguém no alto-falante grita: “parado!”. Assustado, ele se vira e deixa o apartamento.
Sons de soldados em marcha são ouvidos pelos corredores, eles estão em toda parte! Ao chegar ao final do corredor, um robô aparece na intersecção e toma um tiro no peito, explodindo em faíscas com o impacto. Voltando pelo mesmo caminho, ele vê a porta da escadaria. Ele começa a descer quando vê soldados descerem as escadas logo acima. Vendo o rapaz, eles miram suas lanternas para o seu rosto e gritam:
- Polícia!
Antes que pudesse fazer algo, os policiais atiram, estourando o piso sob seus pés. Nathan corre, descendo as escadas em pulos inacreditáveis de quem quer sobreviver. Ao chegar ao nível das passarelas, ele abre a porta e ouve gritos horríveis vindo dos apartamentos, como se as vozes estivessem se distorcendo com as chamas. As luzes piscam e as portas se abrem descontroladamente, deslizando-se para cima e para baixo.
Policiais vasculham o andar, Nathan precisa ser cuidadoso se quiser sobreviver. Há vários robôs se contorcendo pelo chão, o rapaz tenta evita-los para não ser eletrocutado. Levantando-se, ele corre para a saída quando tropeça em algo, fazendo-o cair.
Ao olhar para baixo ele tem uma terrível surpresa. Com apenas metade de seu corpo e tendo um mal funcionamento em seu pescoço, ele vê a mulher-robô olhando de volta para ele. Com seu sorriso gentil e cordialidade inocente, ela pergunta:
- Meu jovem, gostaria de comer um bolo? Eu sei fazer dezenas de bolos diferentes, tenho incontáveis receitas em meu banco de dados!
Por alguma razão o rapaz se comove. Agachando-se, ele a levanta e a abraça, chorando em seu pescoço em seguida. A mulher não consegue fazer nada além de repetir a mesma pergunta até finalmente esgotar suas energias, morrendo em seus braços. O brilho em seus olhos se apaga e o mal funcionamento cessa, até ela não se mexer mais.
O rapaz ainda está distraído quando uma explosão é ouvida no final do corredor.
- Lá está ele!
Nathan se levanta e volta a correr. Os policiais avançam ferozmente, pisoteando a mulher-robô caída sobre o piso.
Ao chegar à porta de acesso às passarelas, vários policiais guardam a saída e olham para ele. Nathan está cercado. Voltando pelo caminho, ele entra em um apartamento e abre a janela. A vertiginosa altura o hipnotiza. Os policiais também invadem o apartamento e o rapaz não tem outra opção senão escalar o edifício.
Haviam grossas tubulações sob as passarelas. Ele tenta descer cuidadosamente pela parede até alcançar os tubos. Apesar de largos, muitos estão cobertos de limo e são escorregadios, tornando a caminhada perigosíssima. Nathan pula sobre os tubos e corre o mais rápido que pode, fugindo daqueles policiais. Então algo acontece.
Um furgão paira ao seu lado. Mirando o holofote, o veículo dispara um míssil, explodindo parte da tubulação e estremecendo tudo ao redor. O rapaz se desespera, não havia mais como fugir.
O furgão abre as portas e um homem aparece. Mirando seu fuzil para Nathan, o homem diz:
- Te peguei.
Sem ter para onde ir, o rapaz levanta suas mãos.
- Não atire! Eu me rendo.
Ainda apontando seu fuzil, o homem sorri.
- Você me deu um tremendo trabalho, hein rapaz?
Nathan pergunta:
- Quem é você?
- Detetive Burton. Vai desejar nunca ter me conhecido.
O detetive atira próximo de seu pé.
- Ei! Eu disse que me rendo!
O motorista do furgão chama o detetive e diz:
- Burton, você não acha que está exagerando? Destruindo patrimônio público, incapacitando propriedades particulares e atirando em um suspeito rendido. Você já o pegou, cara! Já chega!
- Ora, você não se meta nisso! Estou em um dia muito ruim.
Os ferimentos de Burton ainda não fecharam e sua nova perna biomecânica doía devido a operação.
O furgão se aproxima, os policiais se preparam para prendê-lo. Olhando para a tubulação, o rapaz vê que a explosão abriu um buraco no grosso tubo. Nathan se lembra de algo, aqueles tubos direcionavam a água pluvial para as estações de tratamento inferiores na metrópole. Se ele estiver certo, os tubos terminam em enormes efluentes abertos, dando-lhe uma chance de fugir.
O rapaz tenta argumentar:
- Eu sou inocente!
O detetive o interrompe:
- Eu não quero saber.
Sem ter outra opção, ele decide arriscar a sua vida. Pulando no buraco, ele cai na água e rapidamente é levado pela escuridão. Burton se explode em ira.
Os policiais não acreditam no que veem. Confusos, eles se entreolham enquanto Burton se descontrola chutando as laterais do veículo e gritando inúmeros palavrões.
Nathan é levado pelo fluxo, ele se escorrega pelo tubo escuro de um lado ao outro, lutando para não se afogar nas mudanças de direção. Sua suspeita estava certa, os tubos desembocavam em estações de tratamento, mas as piscinas de contenção eram profundas e conduziam a maiores galerias. Tentando segurar as paredes, ele se escorrega o tempo todo e seu corpo é levado mais longe pelas águas. Se ele não quisesse se afogar, ele tinha que se apressar.
Ao entrar por um túnel, a água o submerge e ele perde a consciência.

§

Nathan acorda. Tossindo forte e expelindo a água de seus pulmões, ele olha ao redor e vê uma paisagem cinzenta e escura. Luzes piscam pelos cantos e a água flui pelo pequeno canal poluído. Ao mexer suas mãos, seus dedos tocam um resíduo viscoso e ao mesmo tempo arenoso. Eram os detritos.
Ao longo do canal ele vê as grossas tubulações, ele teve sorte de não se afogar e sair vivo dali. Acima, as luzes estão rodeadas de mosquitos e os tubos industriais estão sujos e enferrujados, dando a impressão de serem muito velhos. Há lodo por toda parte, ele olha para os lados e vê telas com arames farpados.
O rapaz olha para cima e vê apenas a escuridão, era como se estivesse no fundo de um poço tão profundo que não era mais possível ver o céu. Ele ouve os sons abafados das máquinas operando ao longe, mas ao redor há apenas as espessas paredes de concreto e aço. O local era desconhecido e estava completamente deserto, com pouquíssimas luzes iluminando-o.
Passando pelas carcaças dos aerocarros, ele olha para cima e vê plataformas metálicas enferrujadas com o tempo. De repente um facho de laser se aproxima de seus pés e ele se assusta. Levantando sua cabeça, ele vê uma dúzia de pessoas paradas na escuridão. Alguém segura um rifle laser e aponta para seu rosto, ofuscando-o. Holofotes são ligados e então dois deles descem da plataforma, aproximando-se em seguida.
Nathan vê um homem e uma mulher. O homem veste camiseta regata preta e calça cinza larga, e ele também vê joelheiras, luvas e botas. Seu corte de cabelo é um moicano curto e ele porta uma mochila em suas costas, do tipo militar. A mulher se veste com um blusa amarela e luvas que vão até os cotovelos. Ela veste uma calça branca com botas até os joelhos e Nathan pode ver que seus cabelos são azuis. O rapaz se assusta, a mulher está portando uma espada katana.
O rapaz reconhece aquela vestimenta, aquelas roupas arrojadas e exóticas apenas lhe indicam uma coisa.
Aquelas pessoas eram Runners.



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