domingo, 6 de janeiro de 2019

Sonata - Parte 17 - A Chegada à Superfície



Encarando-o de cima a baixo, o homem pergunta:
- Você é da Bushido?
O runner se refere às roupas que Nathan recebeu na sede dos japoneses. Imediatamente ele responde:
- Não.
- E quanto a esse uniforme? Vai dizer que o achou na lata de lixo? – pergunta a mulher, mascando seu chiclete.
- Eles me deram o uniforme, mas eu não faço parte dessa facção.
Então de qual facção faz parte? – pergunta o homem.
- De nenhuma.
- Então você é um espião?
- Eu não sou nenhum espião.
- Será mesmo? – pergunta a mulher, manuseando uma faca.
Ignorando sua tentativa de intimidá-lo, o rapaz ousadamente diz:
- Desculpem se eu não estou participando direito, mas eu não tenho tempo para brincadeiras imbecis. Aqui é a superfície, não é? Eu preciso encontrar um homem, seu codinome é Database. Me disseram que ele vive aqui e eu preciso muito falar com ele.
Os runners se entreolham.
- Como você conhece o Database? – pergunta o homem.
- Eu não o conheço, apenas me disseram para procura-lo aqui. Escute, eu fui infectado com um vírus e tenho poucas horas de vida...
- Vírus?
Os runners se assustam, temendo que o rapaz possa infecta-los também. 
- Como você contraiu esse vírus?
- É uma longa história. Por favor, vocês precisam me levar ao Database.
Confusos, seus captores conversam entre si. Ninguém parece acreditar em Nathan. O homem olha para ele e pergunta:
- Você está mentindo para a gente?
- Eu nunca fui tão honesto em toda minha vida.
A mulher responde:
- É melhor não enganar a gente, cara. Você pode se arrepender.
- Eu estou morrendo e preciso salvar minha vida! Por que eu enganaria vocês?  
Novamente os runners não sabem o que fazer.
Interrogar o rapaz estava deixando-os entediados. Ainda com os rifles apontados para o seu rosto, Nathan vê o homem se afastar e ativar um painel na parede. A tela se acende e ele disca alguns números no vidphone. A chamada é efetuada e então alguém aparece no pequeno monitor.
O runner conversa pelo aparelho. Após alguns segundos, Nathan ouve uma voz dizer: “traga-o até mim”. A ligação é encerrada. O homem se aproxima da mulher e diz:
- Vamos leva-lo ao Database.
O rapaz se alegra. Aqueles estranhos de fato conheciam o Database, o mesmo que ele esteve procurando por todo esse tempo. Não querendo suscitar mais perguntas, ele sabiamente se mantém em silêncio.
Levando-o pelo estranho ambiente, Nathan percorre túneis e galerias escuras até chegar a uma estação de trem. A estação denota abandono e podridão, mas os runners ainda usam suas linhas para se locomover pela superfície. Colocando-o em uma pequena locomotiva, Nathan se deixa levar por aqueles desconhecidos.
Enquanto a locomotiva avança, o rapaz vê a deprimente paisagem da superfície. Há muitas pilhas de lixo, aerocarros enferrujados e tubulações industriais pelo ambiente. Pontes cruzam os córregos e rios. Nathan sente medo, pois tanto as pontes quanto a própria locomotiva estalavam como a podridão.
De repente a linha para abruptamente. À frente o rapaz vê uma enorme parede de concreto atravessando a linha. Era a base de uma megatorre, elevando-se centenas de metros para o céu. Descendo da locomotiva, os runners o levam por sinuosos caminhos entre outras megatorres.
Os runners abrem os portões de uma fábrica abandonada e Nathan consegue ouvir a música alta e as pessoas conversando ao fundo. Levando-o para uma sala no andar superior, os runners sobem por uma escada e batem à porta. Alguém lá dentro diz:
- Entrem.
Em seu escritório, Nathan vê um homem sentado com os pés sobre a mesa. Agarrando-o pelos braços, os runners o empurram para dentro.
- Database, encontramos esse cara no Setor D. Ele disse que te conhecia e que precisava vê-lo.
Database o observa em silêncio. Com sua mão robótica, ele pega um copo e bebe um gole de seu uísque.
- Podem deixa-lo comigo. – responde ele, finalmente.
Os runners perguntam:
- Deseja mais alguma coisa, senhor?
“Senhor?” pensa Nathan. “Por acaso esse homem hediondo é alguma autoridade aqui?”
- Não, obrigado.
Dando-lhe as costas, os runners saem.
- Pegando outro copo, o homem robótico joga duas pedras de gelo e derrama um pouco do líquido marrom.
- Me acompanha nesse maravilho uísque? – pergunta ele.
- Não, obrigado.
Inclinando-se, ele diz:
- Eu insisto.
Encarando-o, o homem arrasta o pequeno copo pela mesa, obrigando-o a aceitar. O primeiro gole é horrível, o uísque queima em sua garganta como se fosse ácido. O homem apenas olha para ele, observando suas expressões de dor enquanto bebe tranquilamente sem incômodo algum.
Por fim ele pergunta:
- Então, você queria me ver?
Ainda irritado com a bebida, o rapaz responde:
- Sim.
- E posso saber o porquê, senhor Nathan?
- Eu fui infectado com um vírus e se você não me der uma cura eu vou morrer...
Sorrindo, o chefe se encosta em sua poltrona e novamente pergunta:
- Por acaso você acredita em destino?
Confuso com a inesperada pergunta, o rapaz responde:
- Não.
- Quando eu era jovem – começa ele – eu também não acreditava. Como todo jovem arrogante e inexperiente, eu acreditava que podia fazer tudo sozinho, que minha vida podia ser moldada por minhas próprias decisões, que tudo o que eu fizesse tivesse a consequência única e exclusiva de minha própria liberdade... Mas então eu envelheci, e com a sabedoria adquirida com a idade, aprendi que existem forças que estão além de nossa compreensão. Estamos em um caminho confuso, inconstante, espiralado e entrelaçado onde planos, sonhos e metas se distanciam e eventualmente se encontram na longa e infinita linha do incompreensível e imutável Destino.
Nathan olha para o homem e se espanta. Como uma paródia de ser humano, metade carne, metade robô, podia ter um conhecimento tão profundo?
- Admiro o seu ponto de vista.
- Mas – interrompe ele, não se interessando pela opinião do rapaz – eu ainda não estava pronto para enxergar algo ainda maior. O destino pelo destino não é o suficiente. A lógica existencial humana não pode ser explicada por um bando de teóricos amadores que usam o destino como um mero pretexto para suas mais variadas frustrações. – ele então mira sua lente vermelha à Nathan e pergunta – O senhor sabe o que é Fatalismo?
O rapaz nunca ouviu essa palavra antes.
- Não.
O chefe bebe um gole de seu uísque e explica:
- Imagine que a vida seja um jogo de escolhas certas e erradas que, dependendo de nossas ações, arcaremos com as responsabilidades antes de nossa morte. Entretanto, imagine que, independente de nossas escolhas e ações, tudo está preestabelecido e destinado a acontecer em uma sequência inquebrável de eventos acima de nossa compreensão. Eis o Fatalismo, uma teoria que se contrapõe ao Predeterminismo, mas que também não se alinha ao Livre-Arbítrio. Uma teoria ambivalente que equilibra o imutável com o poder de escolha. – pausando por um momento, ele continua – Não existe o poder de escolha, mas a escolha existe. Então quem decide? Quem define todas as aparências? Estamos nós à deriva neste buraco no tempo inútil em direção a um futuro desconhecido?
Passados alguns segundos, Database continua:
- O Predeterminismo não é novidade aos otimistas e pessimistas, o Livre-Arbítrio é velho, mas Fatalismo é a resposta metafísica clara e objetiva às aflições da Alma. Os fatores influenciáveis da vida, como a religião, a política e a ciência, são como talhadeiras que moldam nossa personalidade individual e indivisível, mas são como nuvens que não podem lhe fazer mal algum. Você vive do que escolhe sem saber que o destino o escolheu. Todo Homem fará as perguntas e todo Homem sofrerá no final. A Escolha depende dos humanos, havendo ao mesmo tempo alguém que decide acima de nossas escolhas. O Fatalismo acredita na existência de uma Entidade Universal onisciente e infinita, criadora dos poderes ambivalentes conflitantes, mas harmoniosos do Predeterminismo e do Livre-Arbítrio. Temos o poder de escolha em um universo paradoxal onde todas as escolhas e ações chegam a um mesmo fim.
Nathan fica sem palavras e não consegue comentar nada sem parecer um ignorante. Um pouco confuso, ele pergunta:
- Por que está me dizendo isso?
Levantando-se, ele caminha até a janela e pede para Nathan acompanha-lo. Olhando pela persiana, o homem lhe aponta um prédio colorido em meio a uma paisagem suburbana cheia de vapor.
- Está vendo aquele prédio? É minha casa noturna, o Mystique. Assim como as facções controlam certos distritos de Sonata, de lá eu comando toda essa parte da superfície. Nada acontece aqui sem que eu saiba, e tudo acontece com minha permissão. Podemos dizer que aqui eu sou um deus, embora um deus caído. – olhando para o rapaz, ele pergunta – Você pensa que foi um acidente você ter caído fora da Contençao, não é mesmo?
O rapaz responde com plena convicção.
- Eu tenho certeza, eu não deveria estar aqui!
- Pois eu acho que não. Tudo acontece por uma razão e absolutamente nada é por acaso. – voltando a olhar para o seu clube, Database continua – Desde que o mercenário te tirou da prisão, você se tornou um Inimigo de Estado. Nada do que fizer mudará sua situação. Caso se entregue à polícia, há duas opções possíveis para você: a execução ou o banimento. O que você escolhe?
Assustado, Nathan responde:
- Eu escolho viver.
Database sorri novamente.
- E você sabe o que isso significa?
O rapaz não o entende.
- Não.
- Significa que, independente do que te aconteceu for um acidente ou não, o seu destino você acaba de escolher, e o que vier a seguir você não poderá mais alegar inocência.  
Voltando à sua poltrona, Database lhe pede para se sentar também.
- Diga-me Nathan, o que te aconteceu no Setor L?
O rapaz lhe relata tudo. Ele fala sobre o atentado terrorista, seu encontro com Copérnico e a infecção do vírus. Database ouve atentamente, demonstrando grande interesse. Nathan fala sobre seu tempo de vida e pede para que o homem à sua frente o ajude. O chefe aperta um botão sobre a mesa e os runners retornam à sua sala.
- Pois não, senhor Database?
- Preciso que levem o rapaz para o Mystique. Eu já estou a caminho.
Assentindo, os runners seguram o rapaz pelos braços e o tiram dali.

§

As ruas da superfície são sujas e movimentadas. Olhando ao redor, Nathan vê seus habitantes dividindo o curto espaço com improvisadas tendas, comércios e habitações. As pessoas têm uma aparência distinta, quase de indigência, apesar do rapaz nunca ter visto um mendigo antes.
A paisagem era conhecida, ele já a viu no exterior da metrópole. Diferente dos modernos megaedifícios dos níveis superiores, na superfície existem os antigos prédios do século 20, os poucos que ainda restaram após a reconstrução de Sonata. Os prédios eram verdadeiras relíquias do passado mas, para a funcionalidade plena da tecnológica metrópole, as velhas partes da cidade foram apagadas e abandonadas ao esquecimento.
O casal de runners entrega o rapaz para os capangas de Database. Adiante o rapaz vê o Mystique com sua música alta e uma fila de pessoas no lado de fora esperando para entrar. Os capangas pegam uma rota alternativa e o conduzem por uma passagem sinuosa rumo a outra entrada mais discreta.
Caminhando por becos escuros e úmidos, os dois passam por mendigos e latas de lixo flamejantes. Os corredores ficam mais desertos e o rapaz vê janelas trancadas, pregadas com tábuas de madeira. Há uma porta na lateral de um edifício, um dos capangas bate e uma pequena fresta se abre, o suficiente para se ver apenas os olhos de alguém lá dentro.
- Quem é?
O homem se identifica e então o sentinela a abre.
Nathan está muito confuso, ele não sabe o que fazer. Os capangas os conduzem por salas com outros runners conversando. Ao chegarem ao fundo, o rapaz vê um cômodo cheio de computadores e cabos pelo chão.
Indicando-lhe um sofá, o homem pede para ele se sentar. Um runner aparece e, olhando para ele, lhe pergunta:
- Então você é o Nathan, o Inimigo de Estado?
Olhando para o seu rosto, o rapaz vê outro jovem com cabelos negros e roupas exóticas.
- Acho que sim.
- Muito prazer. Pode me chamar de Vertigo.
Oferecendo-lhe a mão, Nathan vê o braço biomecânico do runner.
- O que você quer comigo?
- Vim descobrir o que o Database pretende revelando sua informação. Instaurar o caos nos níveis superiores atrairá atenção indesejada para a superfície. Não queremos isso, se a superfície cair muitos morrerão, inclusive nós. – conclui ele, referindo-se aos runners.
- Do que é que você está falando? Eu não vim aqui para provocar rebelião alguma.
Vertigo ri.
- É por que você não conhece o Database como nós o conhecemos. Ele nunca dá nada sem ganhar algo em troca. A informação que você tem provocará uma rebelião e é por isso que as autoridades se apressaram a lhe classificar como um Inimigo de Estado. Você já deve ter ouvido isso das facções, não é?
Nathan se lembra que sim.
- Esse Database parece ter muito poder aqui. Ele deixou isso bem claro com seu exército particular de capangas tratando-o como um rei.
- O Database controla a todos com seu dinheiro, e isso ele sabe ganhar muito bem. Se não fosse pela venda de drogas, bebidas e próteses ilegais, ele não teria nada.
Preocupado, o rapaz diz:
- Eu também não confio nele, mas preciso dele para me dar a cura.
- Não se preocupe. Apenas faça o que tiver que fazer e você ficará bem. Eu estarei por perto se lhe acontecer algo.
O rapaz não se convence.
- Como saber se eu posso acreditar em você?
Virando-se, o runner responde:
- Confie em mim.


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