Encarando-o de
cima a baixo, o homem pergunta:
- Você é da
Bushido?
O runner se
refere às roupas que Nathan recebeu na sede dos japoneses. Imediatamente ele
responde:
- Não.
- E quanto a esse
uniforme? Vai dizer que o achou na lata de lixo? – pergunta a mulher, mascando
seu chiclete.
- Eles me deram o
uniforme, mas eu não faço parte dessa facção.
Então de qual
facção faz parte? – pergunta o homem.
- De nenhuma.
- Então você é um
espião?
- Eu não sou
nenhum espião.
- Será mesmo? –
pergunta a mulher, manuseando uma faca.
Ignorando sua
tentativa de intimidá-lo, o rapaz ousadamente diz:
- Desculpem se eu
não estou participando direito, mas eu não tenho tempo para brincadeiras
imbecis. Aqui é a superfície, não é? Eu preciso encontrar um homem, seu
codinome é Database. Me disseram que ele vive aqui e eu preciso muito falar com
ele.
Os runners se entreolham.
- Como você
conhece o Database? – pergunta o homem.
- Eu não o
conheço, apenas me disseram para procura-lo aqui. Escute, eu fui infectado com
um vírus e tenho poucas horas de vida...
- Vírus?
Os runners se
assustam, temendo que o rapaz possa infecta-los também.
- Como você
contraiu esse vírus?
- É uma longa
história. Por favor, vocês precisam me levar ao Database.
Confusos, seus
captores conversam entre si. Ninguém parece acreditar em Nathan. O homem olha
para ele e pergunta:
- Você está
mentindo para a gente?
- Eu nunca fui
tão honesto em toda minha vida.
A mulher
responde:
- É melhor não
enganar a gente, cara. Você pode se arrepender.
- Eu estou
morrendo e preciso salvar minha vida! Por que eu enganaria vocês?
Novamente os
runners não sabem o que fazer.
Interrogar o
rapaz estava deixando-os entediados. Ainda com os rifles apontados para o seu
rosto, Nathan vê o homem se afastar e ativar um painel na parede. A tela se acende
e ele disca alguns números no vidphone. A chamada é efetuada e então alguém aparece
no pequeno monitor.
O runner conversa
pelo aparelho. Após alguns segundos, Nathan ouve uma voz dizer: “traga-o até
mim”. A ligação é encerrada. O homem se aproxima da mulher e diz:
- Vamos leva-lo
ao Database.
O rapaz se alegra.
Aqueles estranhos de fato conheciam o Database, o mesmo que ele esteve
procurando por todo esse tempo. Não querendo suscitar mais perguntas, ele
sabiamente se mantém em silêncio.
Levando-o pelo
estranho ambiente, Nathan percorre túneis e galerias escuras até chegar a uma
estação de trem. A estação denota abandono e podridão, mas os runners ainda
usam suas linhas para se locomover pela superfície. Colocando-o em uma pequena
locomotiva, Nathan se deixa levar por aqueles desconhecidos.
Enquanto a
locomotiva avança, o rapaz vê a deprimente paisagem da superfície. Há muitas
pilhas de lixo, aerocarros enferrujados e tubulações industriais pelo ambiente.
Pontes cruzam os córregos e rios. Nathan sente medo, pois tanto as pontes
quanto a própria locomotiva estalavam como a podridão.
De repente a
linha para abruptamente. À frente o rapaz vê uma enorme parede de concreto
atravessando a linha. Era a base de uma megatorre, elevando-se centenas de
metros para o céu. Descendo da locomotiva, os runners o levam por sinuosos
caminhos entre outras megatorres.
Os
runners abrem os portões de uma fábrica abandonada e Nathan consegue ouvir a
música alta e as pessoas conversando ao fundo. Levando-o para uma sala no andar
superior, os runners sobem por uma escada e batem à porta. Alguém lá dentro
diz:
- Entrem.
Em seu escritório,
Nathan vê um homem sentado com os pés sobre a mesa. Agarrando-o pelos braços, os
runners o empurram para dentro.
- Database,
encontramos esse cara no Setor D. Ele disse que te conhecia e que precisava
vê-lo.
Database o
observa em silêncio. Com sua mão robótica, ele pega um copo e bebe um gole de
seu uísque.
- Podem deixa-lo
comigo. – responde ele, finalmente.
Os runners
perguntam:
- Deseja mais
alguma coisa, senhor?
“Senhor?” pensa
Nathan. “Por acaso esse homem hediondo é alguma autoridade aqui?”
- Não, obrigado.
Dando-lhe as
costas, os runners saem.
- Pegando outro
copo, o homem robótico joga duas pedras de gelo e derrama um pouco do líquido
marrom.
- Me acompanha nesse
maravilho uísque? – pergunta ele.
- Não, obrigado.
Inclinando-se,
ele diz:
- Eu insisto.
Encarando-o, o
homem arrasta o pequeno copo pela mesa, obrigando-o a aceitar. O primeiro gole
é horrível, o uísque queima em sua garganta como se fosse ácido. O homem apenas
olha para ele, observando suas expressões de dor enquanto bebe tranquilamente
sem incômodo algum.
Por fim ele
pergunta:
- Então, você
queria me ver?
Ainda irritado
com a bebida, o rapaz responde:
- Sim.
- E posso saber o
porquê, senhor Nathan?
- Eu fui
infectado com um vírus e se você não me der uma cura eu vou morrer...
Sorrindo, o chefe
se encosta em sua poltrona e novamente pergunta:
- Por acaso você
acredita em destino?
Confuso com a
inesperada pergunta, o rapaz responde:
- Não.
- Quando eu era
jovem – começa ele – eu também não acreditava. Como todo jovem arrogante e
inexperiente, eu acreditava que podia fazer tudo sozinho, que minha vida podia
ser moldada por minhas próprias decisões, que tudo o que eu
fizesse tivesse a consequência única e exclusiva de minha própria liberdade...
Mas então eu envelheci, e com a sabedoria adquirida com a idade, aprendi que
existem forças que estão além de nossa compreensão. Estamos em um caminho
confuso, inconstante, espiralado e entrelaçado onde planos, sonhos e metas se
distanciam e eventualmente se encontram na longa e infinita linha do
incompreensível e imutável Destino.
Nathan olha para
o homem e se espanta. Como uma paródia de ser humano, metade carne, metade
robô, podia ter um conhecimento tão profundo?
- Admiro o seu
ponto de vista.
- Mas –
interrompe ele, não se interessando pela opinião do rapaz – eu ainda não estava
pronto para enxergar algo ainda maior. O destino pelo destino não é o suficiente.
A lógica existencial humana não pode ser explicada por um bando de teóricos
amadores que usam o destino como um mero pretexto para suas mais variadas
frustrações. – ele então mira sua lente vermelha à Nathan e pergunta – O senhor
sabe o que é Fatalismo?
O rapaz nunca
ouviu essa palavra antes.
- Não.
O chefe bebe um
gole de seu uísque e explica:
- Imagine que a
vida seja um jogo de escolhas certas e erradas que, dependendo de nossas ações,
arcaremos com as responsabilidades antes de nossa morte. Entretanto, imagine
que, independente de nossas escolhas e ações, tudo está preestabelecido e
destinado a acontecer em uma sequência inquebrável de eventos acima de nossa
compreensão. Eis o Fatalismo, uma teoria que se contrapõe ao Predeterminismo,
mas que também não se alinha ao Livre-Arbítrio. Uma teoria ambivalente que
equilibra o imutável com o poder de escolha. – pausando por um momento, ele
continua – Não existe o poder de escolha, mas a escolha existe. Então quem
decide? Quem define todas as aparências? Estamos nós à deriva neste buraco no
tempo inútil em direção a um futuro desconhecido?
Passados alguns
segundos, Database continua:
- O
Predeterminismo não é novidade aos otimistas e pessimistas, o Livre-Arbítrio é
velho, mas Fatalismo é a resposta metafísica clara e objetiva às aflições da
Alma. Os fatores influenciáveis da vida, como a religião, a política e a
ciência, são como talhadeiras que moldam nossa personalidade individual e
indivisível, mas são como nuvens que não podem lhe fazer mal algum. Você vive
do que escolhe sem saber que o destino o escolheu. Todo Homem fará as perguntas
e todo Homem sofrerá no final. A Escolha depende dos humanos, havendo ao mesmo
tempo alguém que decide acima de nossas escolhas. O Fatalismo acredita na
existência de uma Entidade Universal onisciente e infinita, criadora dos poderes ambivalentes conflitantes, mas harmoniosos do
Predeterminismo e do Livre-Arbítrio. Temos o poder de escolha em um universo
paradoxal onde todas as escolhas e ações chegam a um mesmo fim.
Nathan fica sem
palavras e não consegue comentar nada sem parecer um ignorante. Um pouco confuso,
ele pergunta:
- Por que está me
dizendo isso?
Levantando-se,
ele caminha até a janela e pede para Nathan acompanha-lo. Olhando pela
persiana, o homem lhe aponta um prédio colorido em meio a uma paisagem
suburbana cheia de vapor.
- Está vendo
aquele prédio? É minha casa noturna, o Mystique. Assim como as facções controlam
certos distritos de Sonata, de lá eu comando toda essa parte da superfície.
Nada acontece aqui sem que eu saiba, e tudo acontece com minha permissão.
Podemos dizer que aqui eu sou um deus, embora um deus caído. – olhando para o
rapaz, ele pergunta – Você pensa que foi um acidente você ter caído fora da
Contençao, não é mesmo?
O rapaz responde
com plena convicção.
- Eu tenho
certeza, eu não deveria estar aqui!
- Pois eu acho
que não. Tudo acontece por uma razão e absolutamente nada é por acaso. –
voltando a olhar para o seu clube, Database continua – Desde que o mercenário
te tirou da prisão, você se tornou um Inimigo de Estado. Nada do que fizer
mudará sua situação. Caso se entregue à polícia, há duas opções possíveis para você:
a execução ou o banimento. O que você escolhe?
Assustado, Nathan
responde:
- Eu escolho
viver.
Database sorri
novamente.
- E você sabe o
que isso significa?
O rapaz não o
entende.
- Não.
- Significa que, independente
do que te aconteceu for um acidente ou não, o seu destino você acaba de
escolher, e o que vier a seguir você não poderá mais alegar inocência.
Voltando à sua
poltrona, Database lhe pede para se sentar também.
- Diga-me Nathan,
o que te aconteceu no Setor L?
O rapaz lhe
relata tudo. Ele fala sobre o atentado terrorista, seu encontro com Copérnico e
a infecção do vírus. Database ouve atentamente, demonstrando grande interesse. Nathan
fala sobre seu tempo de vida e pede para que o homem à sua frente o ajude. O
chefe aperta um botão sobre a mesa e os runners retornam à sua sala.
- Pois não,
senhor Database?
- Preciso que
levem o rapaz para o Mystique. Eu já estou a caminho.
Assentindo, os
runners seguram o rapaz pelos braços e o tiram dali.
§
As ruas da
superfície são sujas e movimentadas. Olhando ao redor, Nathan vê seus
habitantes dividindo o curto espaço com improvisadas tendas, comércios e
habitações. As pessoas têm uma aparência distinta, quase de indigência, apesar
do rapaz nunca ter visto um mendigo antes.
A paisagem era
conhecida, ele já a viu no exterior da metrópole. Diferente dos modernos
megaedifícios dos níveis superiores, na superfície existem os antigos prédios
do século 20, os poucos que ainda restaram após a reconstrução de Sonata. Os prédios
eram verdadeiras relíquias do passado mas, para a funcionalidade plena da
tecnológica metrópole, as velhas partes da cidade foram apagadas e abandonadas
ao esquecimento.
O casal de
runners entrega o rapaz para os capangas de Database. Adiante o rapaz vê o
Mystique com sua música alta e uma fila de pessoas no lado de fora esperando
para entrar. Os capangas pegam uma rota alternativa e o conduzem por uma
passagem sinuosa rumo a outra entrada mais discreta.
Caminhando por
becos escuros e úmidos, os dois passam por mendigos e latas de lixo
flamejantes. Os corredores ficam mais desertos e o rapaz vê janelas trancadas,
pregadas com tábuas de madeira. Há uma porta na lateral de um edifício, um dos
capangas bate e uma pequena fresta se abre, o suficiente para se ver apenas os
olhos de alguém lá dentro.
- Quem é?
O homem se identifica
e então o sentinela a abre.
Nathan
está muito confuso, ele não sabe o que fazer. Os capangas os conduzem por salas
com outros runners conversando. Ao chegarem ao fundo, o rapaz vê um cômodo
cheio de computadores e cabos pelo chão.
Indicando-lhe um sofá,
o homem pede para ele se sentar. Um runner aparece e, olhando para ele, lhe pergunta:
- Então você é o Nathan,
o Inimigo de Estado?
Olhando para o
seu rosto, o rapaz vê outro jovem com cabelos negros e roupas exóticas.
- Acho que sim.
- Muito prazer. Pode
me chamar de Vertigo.
Oferecendo-lhe a
mão, Nathan vê o braço biomecânico do runner.
- O que você quer
comigo?
- Vim descobrir o
que o Database pretende revelando sua informação. Instaurar o caos nos níveis
superiores atrairá atenção indesejada para a superfície. Não queremos isso, se a
superfície cair muitos morrerão, inclusive nós. – conclui ele, referindo-se aos
runners.
- Do que é que você
está falando? Eu não vim aqui para provocar rebelião alguma.
Vertigo ri.
- É por que você não
conhece o Database como nós o conhecemos. Ele nunca dá nada sem ganhar algo em
troca. A informação que você tem provocará uma rebelião e é por isso que as
autoridades se apressaram a lhe classificar como um Inimigo de Estado. Você já deve
ter ouvido isso das facções, não é?
Nathan se lembra
que sim.
- Esse Database parece
ter muito poder aqui. Ele deixou isso bem claro com seu exército particular de
capangas tratando-o como um rei.
- O Database
controla a todos com seu dinheiro, e isso ele sabe ganhar muito bem. Se não
fosse pela venda de drogas, bebidas e próteses ilegais, ele não teria nada.
Preocupado, o
rapaz diz:
- Eu também não confio
nele, mas preciso dele para me dar a cura.
- Não se
preocupe. Apenas faça o que tiver que fazer e você ficará bem. Eu estarei por
perto se lhe acontecer algo.
O rapaz não se
convence.
- Como saber se
eu posso acreditar em você?
Virando-se, o
runner responde:
- Confie em mim.
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