A transição de
governos em uma sociedade causa mudanças significativas no espaço geográfico.
Com o novo governo vem suas novas formas de manter a ordem e principalmente o
poder. A opressão é a principal ferramenta para consolidá-lo, principalmente se
os cidadãos do antigo governo estavam acostumados a serem livres. Em Sonata a
opressão tem um nome: Polícia Corporativa.
Diferente das
nobres instituições de segurança pública do século 20, a Polícia Corporativa é
uma instituição privada que age exclusivamente sob os interesses das
corporações. É composta de diferentes batalhões de mercenários, forças
particulares e tropas de choque. A segurança pública é posta em segundo plano enquanto
que a segurança patrimonial é sua prioridade. Se as corporações são as bases
sólidas da nova metrópole, a polícia são seus braços que a tudo alcançam.
Leis são um detalhe
jurídico feito para os cidadãos comuns. Abuso e arbitrariedade são comuns sob o
pretexto da manutenção da ordem.
Em uma sociedade
onde a tecnologia finalmente atravessou as fronteiras da biologia humana, o
sistema social é o Sistema Operacional e a Polícia Corporativa é seu Antivírus.
As fábricas e comércios são softwares, e os trabalhadores e clientes são dados
que – à medida em que envelhecem – transformam-se de bytes em Kbytes, de Kbytes
em Megabytes e de Megabytes em Gigabytes, obedecendo à natural tendência humana
de evoluir. Em uma cadeia incontável de servidores e hard-disks, esses “dados” são
inspecionados pelo Antivírus.
A função do
Antivírus é prevenir, detectar e destruir os programas que ameaçam o sistema. Mas
quem em Sonata questionaria a confiabilidade da polícia, o principal
instrumento corporativo da metrópole? Se o Antivírus caça o vírus para
eliminá-los, assim a polícia procede quando caça as ameaças à ordem, agindo
diretamente em seu foco antes que se tornem problemas maiores. Tudo está sob
vigilância.
Na
plataforma virtual entre o sistema social e o sistema operacional chamado de Ciberespaço,
os hackers habilidosos driblam as mais complexas barreiras – os firewalls – e
disseminam seus vírus nas redes corporativas. Se adolescentes desocupados e
entusiastas são capazes de ameaçar a rede metropolitana, quanto mais os
insatisfeitos, os oprimidos e os sonhadores, ousados o bastante para ameaçarem
a ordem social com seu ativismo.
Talvez haja
esperança para os ativistas, mas seu sonho poderá nunca se realizar se a
Polícia, agindo como um Antivírus social, aparecer de repente e eliminá-los da
metrópole como um mero vírus de computador.
§
O vídeo de Nathan
relatando sua incursão no Setor L e o hediondo Projeto Gemini está há uma
semana reproduzindo-se no ciberespaço. Database foi genial, ele hackeou todas
as redes de notícias, suspendeu o sinal corporativo e transferiu o relato de
Nathan, reproduzindo-o 24 horas por dia em um interminável loop.
O resultado foi o
caos geral. As massas se rebelaram, os ataques terroristas se multiplicaram, a
violência das polícias se intensificaram, mas, como todo governo podre e
parasítico que se recusa a deixar o poder, as corporações permaneceram intactas
e sem o risco de perderem sua hegemonia.
A rebelião, a
despeito do que as facções e os runners pensaram, não conseguiu depor o
governo, servindo apenas para extravasar a ira dos explorados e dos descontentes. A ameaça do Protótipo #8 e do fantasma do extermínio não foram
o suficiente para mobiliza-los em uma única e sólida força contra as
corporações. Apesar da revelação da verdade, muitos ainda decidiram ir
trabalhar, pois sabiam que não conseguiriam sobreviver sem os amparos do
sistema corporativo.
Mas ainda assim
muitos aderiram à luta.
Sentado no parapeito
de uma megatorre, Vertigo assiste ao vídeo de Nathan sendo exibido pela
milésima vez em um telão na fachada do edifício. Laura então diz:
- Vertigo,
precisamos ir.
Estava
amanhecendo na metrópole. O movimento contagiante, o ambiente alegre e a
descontração nas passarelas não existiam mais. Com o novo dia, os espaços
públicos eram substituídos por um mar de faces preocupadas e sérias à caminho
do trabalho.
Após
a revelação de Nathan eles esperavam ver os cidadãos mais agressivos e
dispostos a lutar, mas naquele momento não era isso o que viam. Aquele exército
de operários carregava a ansiedade de quem sofria com o futuro incerto.
No horizonte da
cidade ainda haviam dezenas de incêndios que insistiam em queimar. Para os
cidadãos de Sonata aquilo era totalmente incomum, já que o caos social
provocado por Nathan havia transformado sua cidade em uma zona de guerra. Ver a
metrópole daquele jeito era muito perturbador.
Vertigo e Laura
se juntam aos operários, dirigindo-se à estação de aerometrô. Vendo as paredes
pichadas e os vidros quebrados, eles veem que os vândalos destruíram boa parte
da estação. Ignorando as propagandas holográficas ao redor, Laura compra as
passagens e os dois seguem para a plataforma. Observando-os com olhares frios e
cruéis, Vertigo vê muitos policiais ao longe, mas nada acontece.
- Onde vamos
descer? – Pergunta Laura.
- Vamos para o
Terminal Cellgenesis e de lá pegamos outro trem para o Terminal Electro Core.
O trem chega e
eles o veem todo vandalizado também. As portas se abrem, mas não muito devido
ao mal funcionamento. Então o trem prossegue viagem, passando por mais estações
vandalizadas antes de chegar ao terminal.
Eles descem no
Terminal Cellgenesis junto com a multidão. Dentro do salão pichado e com
buracos de bala nas paredes, eles veem os gigantescos elevadores de operários
recebendo os trabalhadores e carregando-os aos níveis industriais da poderosa
corporação.
Na linha para o
Terminal Electro Core eles pegam outro trem. Entre os dois terminais há vários
distritos comerciais com os magníficos prédios espelhados e circulares, o que
deixa a paisagem mais agradável. Os runners ficam felizes ao ver que nem tudo
foi destruído com a rebelião. O sol subindo no horizonte ofusca seus olhos.
Aquela era uma nova paisagem para um novo mundo, onde as
belezas naturais foram substituídas pelas belezas artificiais. De certa forma, era
uma compensação uma vez que as belezas naturais foram destruídas pelo próprio
Homem.
Os dois
desembarcam no Terminal Electro Core. A polícia está presente observando o
movimento, mas Vertigo preocupa-se com as metralhadoras de segurança acopladas
no teto. Elas viram de um lado ao outro procurando terroristas e criminosos. Se
o hacker for detectado, as metralhadoras automaticamente atirarão.
Na plataforma há
um enorme painel touchscreen, mas sua tela está toda trincada devido a golpes
de bastão. O hacker então lê o mapa ferroviário. Percorrendo-o com a ponta de
seu dedo, ele encontra o próximo destino.
O trem chega à
plataforma e eles adentram o vagão. Avançando pela linha, a paisagem altamente
tecnológica dos distritos comerciais é deixada para trás. Mais à frente
aparecem as densas torres residenciais, revelando novamente as consequências da
rebelião. Haviam muitos incêndios e aerocarros destruídos, e barricadas
bloqueavam a passagem nas passarelas. Mas as áreas habitacionais ainda eram os
espaços de descanso entre os turnos de produção, ao tempo que naqueles mesmos
cubículos abrigavam o produto final e o consumo.
- Laura – chama Vertigo
– você acha que eu fiz certo apoiando o Database?
- Do que está
falando?
- Veja essas
pessoas. Elas carregam em seus olhares a dor. Você acha que a informação de
Nathan poderá, em algum momento, ajuda-las em sua situação?
Sem pensar a
respeito, ela responde:
- Talvez. Eu
procuro não pensar nisso.
- Mas e se o
plano do Database funcionar e realmente houver uma revolução, você acha que a
população se libertará do sofrimento e todos poderão ser, ultimamente, felizes?
- É provável.
- Eu tenho medo
que o plano não funcione. Tenho medo de que estejamos conduzindo toda essa
gente a um genocídio.
- Isso vai
depender de quem quiser lutar e quem quiser obedecer. – responde ela,
friamente.
- O que você
acha, Laura?
O hacker insiste,
tentando extrair dela um pouco de humanidade. Laura, porém, é incisiva ao
responder:
- O que acontece
aqui em cima não me interessa. Eu sou uma Runner, Vertigo. Isso é tudo o que eu
tenho a dizer.
Então os dois
ficam em silêncio.
Enquanto a paisagem
muda de aspecto, várias viaturas passam pelo trem, sempre vigiando os
passageiros. Os policiais estão afoitos, esta foi uma semana difícil para eles,
pois após a revelação de Nathan muitos morreram com o alto índice de atentados
terroristas pela cidade. Ponderando a respeito da polícia, ele comenta:
- Sabe com o que
essa cidade se parece? Com um macro sistema de programas, antivírus e internet.
Por serem funcionais, os programas são os cidadãos, o antivírus é a polícia e a
internet são as corporações. Um pouco estranho, porém, é que os programas
maliciosos, ou seja, os vírus, vêm da própria internet...
Tentando parecer
amigável com seu querido amigo, a runner pergunta:
- O que quer
dizer?
- Quero dizer que
os Runners, a superfície e as facções são subprodutos das próprias corporações,
sendo nós a consequência de sua própria opressão. Mas – continua ele, falando
empolgadamente – com a revelação de Nathan os jogadores trocaram de papeis,
estando nós agora dispostos a uma nova condição.
Intrigada, a
runner pergunta:
- Qual condição?
- Se Sonata é o
sistema e as corporações são o vírus, nós – os runners – somos o Antivírus.
Laura ri. O
hacker é bastante inteligente e criativo, imaginativo como uma criança. Então,
com olhar amigável, ela responde:
- Vertigo, você
deveria escrever um livro.
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