sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Sonata - Parte 20 - Antivírus


A transição de governos em uma sociedade causa mudanças significativas no espaço geográfico. Com o novo governo vem suas novas formas de manter a ordem e principalmente o poder. A opressão é a principal ferramenta para consolidá-lo, principalmente se os cidadãos do antigo governo estavam acostumados a serem livres. Em Sonata a opressão tem um nome: Polícia Corporativa.
Diferente das nobres instituições de segurança pública do século 20, a Polícia Corporativa é uma instituição privada que age exclusivamente sob os interesses das corporações. É composta de diferentes batalhões de mercenários, forças particulares e tropas de choque. A segurança pública é posta em segundo plano enquanto que a segurança patrimonial é sua prioridade. Se as corporações são as bases sólidas da nova metrópole, a polícia são seus braços que a tudo alcançam.
Leis são um detalhe jurídico feito para os cidadãos comuns. Abuso e arbitrariedade são comuns sob o pretexto da manutenção da ordem.
Em uma sociedade onde a tecnologia finalmente atravessou as fronteiras da biologia humana, o sistema social é o Sistema Operacional e a Polícia Corporativa é seu Antivírus. As fábricas e comércios são softwares, e os trabalhadores e clientes são dados que – à medida em que envelhecem – transformam-se de bytes em Kbytes, de Kbytes em Megabytes e de Megabytes em Gigabytes, obedecendo à natural tendência humana de evoluir. Em uma cadeia incontável de servidores e hard-disks, esses “dados” são inspecionados pelo Antivírus.
A função do Antivírus é prevenir, detectar e destruir os programas que ameaçam o sistema. Mas quem em Sonata questionaria a confiabilidade da polícia, o principal instrumento corporativo da metrópole? Se o Antivírus caça o vírus para eliminá-los, assim a polícia procede quando caça as ameaças à ordem, agindo diretamente em seu foco antes que se tornem problemas maiores. Tudo está sob vigilância.

Na plataforma virtual entre o sistema social e o sistema operacional chamado de Ciberespaço, os hackers habilidosos driblam as mais complexas barreiras – os firewalls – e disseminam seus vírus nas redes corporativas. Se adolescentes desocupados e entusiastas são capazes de ameaçar a rede metropolitana, quanto mais os insatisfeitos, os oprimidos e os sonhadores, ousados o bastante para ameaçarem a ordem social com seu ativismo.
Talvez haja esperança para os ativistas, mas seu sonho poderá nunca se realizar se a Polícia, agindo como um Antivírus social, aparecer de repente e eliminá-los da metrópole como um mero vírus de computador.

§

O vídeo de Nathan relatando sua incursão no Setor L e o hediondo Projeto Gemini está há uma semana reproduzindo-se no ciberespaço. Database foi genial, ele hackeou todas as redes de notícias, suspendeu o sinal corporativo e transferiu o relato de Nathan, reproduzindo-o 24 horas por dia em um interminável loop.
O resultado foi o caos geral. As massas se rebelaram, os ataques terroristas se multiplicaram, a violência das polícias se intensificaram, mas, como todo governo podre e parasítico que se recusa a deixar o poder, as corporações permaneceram intactas e sem o risco de perderem sua hegemonia.
A rebelião, a despeito do que as facções e os runners pensaram, não conseguiu depor o governo, servindo apenas para extravasar a ira dos explorados e dos descontentes. A ameaça do Protótipo #8 e do fantasma do extermínio não foram o suficiente para mobiliza-los em uma única e sólida força contra as corporações. Apesar da revelação da verdade, muitos ainda decidiram ir trabalhar, pois sabiam que não conseguiriam sobreviver sem os amparos do sistema corporativo.
Mas ainda assim muitos aderiram à luta.
Sentado no parapeito de uma megatorre, Vertigo assiste ao vídeo de Nathan sendo exibido pela milésima vez em um telão na fachada do edifício. Laura então diz:
- Vertigo, precisamos ir.
Estava amanhecendo na metrópole. O movimento contagiante, o ambiente alegre e a descontração nas passarelas não existiam mais. Com o novo dia, os espaços públicos eram substituídos por um mar de faces preocupadas e sérias à caminho do trabalho.

Após a revelação de Nathan eles esperavam ver os cidadãos mais agressivos e dispostos a lutar, mas naquele momento não era isso o que viam. Aquele exército de operários carregava a ansiedade de quem sofria com o futuro incerto.
No horizonte da cidade ainda haviam dezenas de incêndios que insistiam em queimar. Para os cidadãos de Sonata aquilo era totalmente incomum, já que o caos social provocado por Nathan havia transformado sua cidade em uma zona de guerra. Ver a metrópole daquele jeito era muito perturbador.
Vertigo e Laura se juntam aos operários, dirigindo-se à estação de aerometrô. Vendo as paredes pichadas e os vidros quebrados, eles veem que os vândalos destruíram boa parte da estação. Ignorando as propagandas holográficas ao redor, Laura compra as passagens e os dois seguem para a plataforma. Observando-os com olhares frios e cruéis, Vertigo vê muitos policiais ao longe, mas nada acontece.
- Onde vamos descer? – Pergunta Laura.
- Vamos para o Terminal Cellgenesis e de lá pegamos outro trem para o Terminal Electro Core.
O trem chega e eles o veem todo vandalizado também. As portas se abrem, mas não muito devido ao mal funcionamento. Então o trem prossegue viagem, passando por mais estações vandalizadas antes de chegar ao terminal.
Eles descem no Terminal Cellgenesis junto com a multidão. Dentro do salão pichado e com buracos de bala nas paredes, eles veem os gigantescos elevadores de operários recebendo os trabalhadores e carregando-os aos níveis industriais da poderosa corporação.
Na linha para o Terminal Electro Core eles pegam outro trem. Entre os dois terminais há vários distritos comerciais com os magníficos prédios espelhados e circulares, o que deixa a paisagem mais agradável. Os runners ficam felizes ao ver que nem tudo foi destruído com a rebelião. O sol subindo no horizonte ofusca seus olhos. Aquela era uma nova paisagem para um novo mundo, onde as belezas naturais foram substituídas pelas belezas artificiais. De certa forma, era uma compensação uma vez que as belezas naturais foram destruídas pelo próprio Homem.
Os dois desembarcam no Terminal Electro Core. A polícia está presente observando o movimento, mas Vertigo preocupa-se com as metralhadoras de segurança acopladas no teto. Elas viram de um lado ao outro procurando terroristas e criminosos. Se o hacker for detectado, as metralhadoras automaticamente atirarão.
Na plataforma há um enorme painel touchscreen, mas sua tela está toda trincada devido a golpes de bastão. O hacker então lê o mapa ferroviário. Percorrendo-o com a ponta de seu dedo, ele encontra o próximo destino.
O trem chega à plataforma e eles adentram o vagão. Avançando pela linha, a paisagem altamente tecnológica dos distritos comerciais é deixada para trás. Mais à frente aparecem as densas torres residenciais, revelando novamente as consequências da rebelião. Haviam muitos incêndios e aerocarros destruídos, e barricadas bloqueavam a passagem nas passarelas. Mas as áreas habitacionais ainda eram os espaços de descanso entre os turnos de produção, ao tempo que naqueles mesmos cubículos abrigavam o produto final e o consumo.
- Laura – chama Vertigo – você acha que eu fiz certo apoiando o Database?
- Do que está falando?
- Veja essas pessoas. Elas carregam em seus olhares a dor. Você acha que a informação de Nathan poderá, em algum momento, ajuda-las em sua situação?
Sem pensar a respeito, ela responde:
- Talvez. Eu procuro não pensar nisso.
- Mas e se o plano do Database funcionar e realmente houver uma revolução, você acha que a população se libertará do sofrimento e todos poderão ser, ultimamente, felizes?
- É provável.
- Eu tenho medo que o plano não funcione. Tenho medo de que estejamos conduzindo toda essa gente a um genocídio.
- Isso vai depender de quem quiser lutar e quem quiser obedecer. – responde ela, friamente.
- O que você acha, Laura?
O hacker insiste, tentando extrair dela um pouco de humanidade. Laura, porém, é incisiva ao responder:
- O que acontece aqui em cima não me interessa. Eu sou uma Runner, Vertigo. Isso é tudo o que eu tenho a dizer.
Então os dois ficam em silêncio.
Enquanto a paisagem muda de aspecto, várias viaturas passam pelo trem, sempre vigiando os passageiros. Os policiais estão afoitos, esta foi uma semana difícil para eles, pois após a revelação de Nathan muitos morreram com o alto índice de atentados terroristas pela cidade. Ponderando a respeito da polícia, ele comenta:
- Sabe com o que essa cidade se parece? Com um macro sistema de programas, antivírus e internet. Por serem funcionais, os programas são os cidadãos, o antivírus é a polícia e a internet são as corporações. Um pouco estranho, porém, é que os programas maliciosos, ou seja, os vírus, vêm da própria internet...
Tentando parecer amigável com seu querido amigo, a runner pergunta:
- O que quer dizer?
- Quero dizer que os Runners, a superfície e as facções são subprodutos das próprias corporações, sendo nós a consequência de sua própria opressão. Mas – continua ele, falando empolgadamente – com a revelação de Nathan os jogadores trocaram de papeis, estando nós agora dispostos a uma nova condição.
Intrigada, a runner pergunta:
- Qual condição?
- Se Sonata é o sistema e as corporações são o vírus, nós – os runners – somos o Antivírus.
Laura ri. O hacker é bastante inteligente e criativo, imaginativo como uma criança. Então, com olhar amigável, ela responde:
- Vertigo, você deveria escrever um livro.


Nenhum comentário:

Postar um comentário