CAPÍTULO I
Sonata. Ano 2279.
Maynard abre os
olhos. A noite quente lá fora dificulta seu sono, mas não foi isso que o fez
acordar. Os aerocarros passam próximo à sua janela, produzindo zunidos e
iluminando timidamente o ambiente. Levantando-se de sua cama retrátil, ele
passa por caixas e mais caixas contendo poderosos materiais bélicos e se dirige
ao banheiro.
Algo chama sua
atenção. Ao olhar no reflexo ele vê riscos feitos por alguma ferramenta
pontuda. Os riscos são legíveis e formam uma palavra. “Meia-noite”.
Um recado. Alguém
entrou em seu apartamento e lhe deixou um recado. Maynard não se surpreende,
ele já sabe do que se trata. Alguém está requisitando seu trabalho.
Uma hora se
passa. Maynard, agora revigorado após o descanso, espera por seus empregadores.
Os aerocarros
voam ao longe, zunindo e soprando o ar quente da metrópole. Algo se move
calmamente atrás dele, calmo até demais. Virando-se, ele vê três homens
encapuzados em trajes pretos. Ele reconhece aquela roupa tão estranha e
antiquada, aqueles homens se pareciam com os antigos monges renascentistas. O
vento sopra seus casacos e revela seus uniformes. São clérigos. Maynard conhece
aquela facção, os Clérigos do Recomeço. Apesar de religiosos, nenhum deles é
conhecido por conceder o perdão.
- Entregue este
pacote ao nosso contato no distrito de Autremont. Pagaremos bem.
Sempre diretos ao
ponto, nada de perguntas.
O homem vê um
pequeno pacote lacrado. Ao guardá-lo em sua mochila, os homens dão as costas e
vão embora.
Ser um Mercenário
é fazer o que lhe mandam, o que precisa ser feito. É necessário discrição. Se
um mercenário for curioso e perguntar demais, ele é melhor morto. Não interessa
os motivos ou as intenções do trabalho, se são os motivos corretos para uma
causa errada, a única – e somente única – coisa que interessa é o dinheiro.
§
A noite está
movimentada nas alturas de Sonata. Maynard caminha pelas passarelas abarrotadas
de gente. Ao olhar para o relógio, ele vê que horas são. 00h42min. Não importa
o quão tarde seja, em Sonata a vida nunca pára.
O agente leva
consigo sua espingarda calibre 12, uma clássica espingarda pump action de doze
tiros e coronha pistol grip. Ele sempre foi um entusiasta do século 20, um
verdadeiro saudosista. Em uma cidade altamente tecnológica como aquela, armas de
fogo são pouco comuns, algumas sendo até tratadas como relíquias. Mas, debaixo
de seu casaco, ele leva sua pistola laser no coldre, afinal não se pode confiar
demais no que é muito velho e antigo.
As pessoas nas
passarelas e túneis caminham normalmente. Algumas estão indo trabalhar, outras
vendem suas mercadorias em pequenas barracas, outras estão dentro das lojas...
Aquela era a típica paisagem sonatense, nada de anormal. Maynard observa que a
maioria delas têm membros bioprotéticos em seus corpos. Braços, pernas e até
olhos substituídos totalmente pela avançada tecnologia sintética capaz de
simular e aprimorar a antiga fisiologia. Diferentes delas, o agente não tem
nenhuma prótese em seu corpo, ele via tudo aquilo como algo antinatural demais,
quase um show de horror. Maynard era um homem ao seu tempo, um pouco antiquado
para essas maravilhas tecnológicas modernas.
Ao lado da passarela, ele vê as linhas de aerometrô pelo céu.
Suspensos nos trilhos pelo teto, os trens cruzavam as incontáveis megatorres em
seus trajetos interurbanos. Essenciais ao transporte, eles conectavam os
setores e distritos, levando milhares e milhares de trabalhadores diariamente
aos seus destinos.
Muitos aerocarros
sobrevoavam as passarelas. O milagre do conforto finalmente havia chegado no
século 23, e diferente dos veículos poluentes, pesados e ultrapassados do
século 21, em Sonata os motoristas podiam deslocar-se pelos ares, voando em
vários níveis pelas vias virtuais exibidas em seus para-brisas. Maynard tem um
aerocarro também, mas esta noite ele quis caminhar, afinal ele não tem um
membro bioprotético para compensar o atrofiamento de seus músculos.
A polícia passa
ao longe, a famigerada força de segurança pública metropolitana. Sempre em
grupos de dois a três aerocarros, eles patrulham o céu. Rígidos,
abusivos e implacáveis, sua conduta apenas reflete o caráter das próprias megacorporações
que governam a cidade, fazendo o que for necessário para manter a ordem. O
Ministério de Segurança Pública, o órgão que regulamenta a polícia, responde
diretamente aos interesses das corporações, sendo assim chamada comumente de
Polícia Corporativa. Com exceção dos terroristas, ninguém ousa desafia-los,
pois estas ações geralmente acabam em prisão ou desaparecimento.
Passando por
dentro dos tuneis entre as megatorres, ele vê as entradas dos andares que levam
aos apartamentos. Devido ao enorme dimensionamento dos edifícios, cada andar tinha
cerca de cinco mil apartamentos, distribuídos em várias alas para a facilidade
de acesso. Sonata mantém um rígido código de conduta nos moradores, pois as
paredes e corredores são limpos e bem conservados, evidenciando a educação e o
forte senso de cidadania de seus habitantes.
As luzes são o
que mais lhe chama a atenção. Nos tuneis há uma infinidade de painéis de neon,
formando palavras e propagandas para atrair os clientes. Devido às belas cores
dos neons, a escuridão do ambiente é tomada por esporádicas cores azuis, verdes
e vermelhas, dançando com o piscar das letras.
Intentando cortar o caminho, o agente pega um atalho em um túnel de serviço. O túnel tem
grossos tubos em sua parede, soltando gases e vapores em suas pequenas
fissuras. O ambiente é coberto por uma fina neblina, a visão é limitada, o
calor é desgastante e seus passos provocam ecos pela extensão. Definitivamente
aquele não era um atalho seguro para os habitantes de Sonata, mas Maynard não era
qualquer habitante. Um homem se aproxima na direção oposta, surgindo através da
neblina.
O homem passa de cabeça baixa e continua apressadamente seu caminho, sem olhar para o agente uma única vez. Maynard conhecia essa reação, era quase como um instinto de defesa. Apesar da relativa segurança que a polícia impunha sobre a metrópole, ainda assim havia entre eles a cultura do medo. Infelizmente os sonatenses não sabiam que essa cultura eram pessoas como o próprio Maynard que ajudavam a fomentar.
O homem passa de cabeça baixa e continua apressadamente seu caminho, sem olhar para o agente uma única vez. Maynard conhecia essa reação, era quase como um instinto de defesa. Apesar da relativa segurança que a polícia impunha sobre a metrópole, ainda assim havia entre eles a cultura do medo. Infelizmente os sonatenses não sabiam que essa cultura eram pessoas como o próprio Maynard que ajudavam a fomentar.
O agente se
aproxima de seu destino. Saindo ao ar livre, o vento sopra mais frio, soprando
seus cabelos e agitando seu casaco. Ao olhar para o céu, ele vê relâmpagos e
ouve trovões. Estava prestes a chover. “Que ótima surpresa” ironiza ele.
Maynard chega a
um beco escuro entre os túneis das megatorres. Ele vê um homem velho agachado
junto às sacolas de mercadorias transgênicas. Ao se aproximar, ele nota que são
componentes e produtos capazes de estimular a mente e aprimorar os membros
bioprotéticos de seus usuários. “Entorpecentes ilegais” pensa ele.
Ao ver o estranho
se aproximando, o velho olha para ele e pergunta:
- Boa noite, meu
jovem. Tenho ótimos produtos, todos de excelente qualidade.
- Sou o agente
Maynard. Eu vim entregar o pacote.
Maynard pode ver
que o velho possui olhos cibernéticos em sua face. Sem dizer mais uma palavra,
o agente lança o pacote aos seus pés.
- Oh, sim. Como
eu pude me esquecer...
O velho abre o
pacote diante de seus olhos, sem se importar com a curiosidade ou até com a
ganância do mercenário. Para a segurança dos próprios empregadores, objetos
valiosos são melhores se mantidos em segredo. Esboçando decepção, o velho
responde:
- Eu agradeço por
me trazer o pacote aqui, mas esse aparelho é inútil.
O velho ergue seu
braço e exibe um objeto em sua mão. Maynard vê o que se parece ser um
decodificador.
- Isso não me
interessa. Estou aqui pelo pagamento.
- Pagamento? –
Sorri ele – Infelizmente não há pagamento nenhum.
Segurando sua
arma sob o casaco, o agente responde:
- Ouça, cara. Me
irritar não é muito inteligente.
- Ok, ok...!
Acalme-se! – O velho se levanta e então diz – Eu não posso usar esse
decodificador, os seguranças da Cybersys estão bloqueando o sinal não muito
longe daqui. Esse decodificador é fraco, não consegue driblar os bloqueios
corporativos. É isso o que os clérigos não entendem, a tecnologia deles é... ultrapassada.
- Isso é problema
seu. – O agente segura novamente sua arma, pressionando-o para que ele lhe
entregue o dinheiro.
- Espere! Eu lhe
faço outra proposta. Se você desligar o sinal, eu te pago pelo
serviço, em dobro.
Maynard se
espanta.
- Como é?
- Sim. Você
apenas precisa desligar o sinal e o bloqueio será suspenso. O que me diz?
Ponderando
rapidamente, o agente chega a uma decisão. Seu instinto de mercenário fala mais
alto.
- Está bem.
O velho sorri.
- Ótimo! – abrindo seu computador, o velho lhe mostra um mapa detalhado da região – Está
vendo esta megatorre? Em seu terraço há uma antena instalada recentemente. A
Cybersys a usa para bloquear o acesso ao ciberespaço, tentando conter a
atividade criminal e limitar o acesso dos terroristas. Me disseram que a área é
guardada 24 horas por dia, então você deve ser cuidadoso.
- Como eu desligo
o sinal? – Pergunta Maynard.
- O decodificador
tem acesso wireless. Apenas o deixe próximo à antena e ele fará todo o resto.
O velho lhe devolve o aparelho. Maynard vê uma tela azul com números aparecendo
aleatoriamente no visor. Guardando-o em sua mochila, ele deixa o beco.
§
Espionagem é um
trabalho interessante, o agente se põe em perigo, arrisca sua vida, acessa
arquivos secretos e ainda recebe por isso. É como se sua vida de mercenário
fosse um ciclo vicioso.
Para receber mais
dinheiro, ele se torna mais flexível, mais versátil, mais apto a qualquer tipo
de serviço que possam lhe oferecer. Quanto mais experiência, mais dinheiro, e
assim ele alimenta sua ganância. Vidas humanas têm pouco valor em sua linha de
trabalho, pois este é o entrave que atrapalha a sociedade, esta tolerância aos inúteis e aos fracos. Maynard é um darwinista social, um sociopata, mesmo que
nunca tenha se notado disso.
Começa a chover,
relâmpagos iluminam brevemente o céu sobre a metrópole. O agente deve ser mais
cauteloso. Passando pelas passarelas, as pessoas veem o imponente e silencioso
homem e se intrigam. Quem era aquele homem tão calmo
caminhando tranquilamente sob a chuva? E aquele estranho objeto em suas costas,
seria aquilo uma arma?
Atravessando
alguns túneis, o agente chega ao seu destino. Entrando no prédio, ele caminha
pelo corredor e atravessa o andar. Os moradores não reconhecem o visitante, mas
ninguém se importa, afinal todos estão ocupados demais lidando com seus
próprios problemas. Avistando o elevador, ele vê dois homens armados e um bot
de segurança guardando-o.
- Com licença,
senhores. Este elevador leva para o terraço?
- Para trás,
cidadão. Esta é uma área restrita.
- O que está
havendo lá em cima?
- Eu mandei se
afastar!
Os guardas
apontam seus rifles para Maynard. E naquele momento o agente se irrita.
No terraço, os
guardas vigiam seus seus postos tranquilamente. Após um trovão, a chuva recomeça e eles se abrigam em uma pequena
área coberta em frente ao elevador. Alguns ficam ao ar livre e guardam a
esbelta antena, que pisca intermitentemente contra as agitadas nuvens de chuva.
Distraídos em seus próprios assuntos, eles se intrigam ao ver que o elevador
está subindo. Pegando rapidamente o rádio, o capitão chama seus seguranças lá
embaixo.
- Quem mandou
vocês subirem?
Mas não há
resposta, havendo apenas estática.
Então a porta se
abre e ilumina o escuro ambiente. Não havia ninguém lá dentro, exceto o bot de
segurança da Cybersys.
- O que está
havendo aqui...?
De repente o bot
abre fogo, metralhando os guardas na saída do elevador. O pânico se alastra.
Seus avançados sensores de movimento são formidáveis, os guardas tentam se
proteger, mas a metralhadora acoplada no pequeno robô mira precisamente até
todos caírem.
- O bot foi hackeado!!
– grita o capitão.
Os guardas se
arrastam pelo chão, o terraço fica em alerta. Antes que o capitão pudesse
chamar reforços, o alçapão no teto do elevador se abre e Maynard aparece.
Empunhando sua espingarda, ele atira no restante dos guardas, eliminando-os e
liberando a grossa cápsula de pólvora a cada tiro.
O agente olha
para fora e avista a antena. Antes que pudesse passar pela porta, uma saraivada
de lasers atinge o chão e as paredes, fazendo-o recuar. Recarregando sua
espingarda, ele faz o destrave pump action, se levanta e atira de volta. Os
guardas são amadores, cães destreinados que só sabem rosnar. Nenhum deles
consegue parar Maynard.
Jogando uma
granada de concussão, os guardas ficam atordoados e são abatidos um a um pelo poderoso
agente. Enquanto avança pelo terraço, Maynard ouve um guarda agonizar atrás de
seu esconderijo. Sem olhá-lo nos olhos, o agente estica seu braço para a
direita e puxa o gatilho, encerrando seu sofrimento e remuniciando sua arma em
seguida.
A chuva se
intensifica e fica difícil caminhar. Aproximando-se da antena, ele vê um
pequeno console onde os operadores configuram o sinal. Há um monitor ligado e
uma frase na tela diz: “Conexão com o satélite estabelecida”. Colocando o
decodificador sobre o painel, Maynard o posiciona próximo aos computadores e
deixa o local.
Atravessando o
terraço, ele pisa nas poças de água, espalhando as gotas a cada passo. Ao
chegar na parte coberta, os guardas atiram com suas armas lasers contra o
agente, fazendo-o se agachar. Mais seguranças da Cybersys haviam chegado,
provavelmente eles viram o ataque pelas câmeras de vigilância. Antes que
pudesse pegar o elevador e deixar aquela conturbada área, Maynard teria de
passar por eles.
Protegido atrás
de um balcão, o agente saca sua pistola laser e revida, atirando de volta
enquanto tenta escapar daquela adversa situação. Atrás dele há uma enorme
janela de vidro, agora toda arruinada devido aos incontáveis tiros. Ele
consegue ver a antena lá fora, alta e colorida devido as suas luzes brilhantes.
Distraído enquanto planeja como fugir, algo inesperado acontece.
A antena explode
em uma gigantesca bola de fogo sobre o edifício, propagando sua onda de calor e
luz por todo o terraço. Tudo é iluminado pelo clarão amarelo, atordoando os
guardas que caminhavam em sua direção.
Aproveitando a
chance, ele pega sua espingarda calibre 12 e se levanta. Antes que seus olhos
se recuperassem da intensa luz, os guardas são alvejados por Maynard, voando pelos
ares com o poderoso impacto.
- Malditos
cretinos...! – sussurra ele – Aquilo era uma bomba!
Os clérigos o
usaram. Eles sabiam daquilo o tempo todo e não lhe disseram nada. O aparelho
não era um simples decodificador, na verdade era uma potente bomba planejada
para explodir a nova antena instalada naquele distrito pela Cybersys. Nem os
clérigos ou aquele velho estúpido pretendiam leva-la àquele terraço, obviamente
eles pretendiam ativá-la de longe, mas para isso precisavam de alguém
forte o bastante para passar pelos guardas e chegar à antena.
Maynard foi
manipulado, novamente manipulado. Recarregando sua espingarda, ele se martiriza
por dentro. Como ele pôde ser tão distraído? Não era a primeira vez que as
facções o manipulavam, e certamente não será a última. Mas ele decide não se
importar, afinal a facção precisava do melhor para o serviço, e Maynard era o
melhor dos melhores.
Dirigindo-se para
o elevador, ele passa pelos guardas mortos pelo chão. Altivo e imponente, ele leva
sua espingarda na altura do peito. Mais uma missão bem-sucedida, mais um
serviço bem feito, agora só resta receber o devido pagamento. Então algo chama
sua atenção, seu celular vibra em seu bolso. Abrindo-o, uma mensagem aparece no
visor touch-screen.
“Pagamento
efetuado com sucesso”.
“Agradecemos pelo
serviço”.
“Atenciosamente”.
“Clérigos do
Recomeço”.
Olhando para o
teto, ele vê câmeras de segurança filmando-o. Os malditos clérigos estavam
monitorando-o de longe. O bloqueio de sinal havia desaparecido e os clérigos
podiam invadir o ciberespaço novamente. Maynard sorri por dentro.
Dirigindo-se ao
elevador, ele ouve algo se mexer atrás dele. Um guarda ainda está vivo e tenta surpreendê-lo.
Prestes a atirar, Maynard se vira e atira nele antes, acertando-o no peito. Ao
ser atingido, o guarda grita e sangra até morrer.
Liberando a cápsula vazia, Maynard em seguida deixa o local.
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