segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Sonata - Parte 15 - Design Inteligente



Sobrevoando um pequeno distrito no Setor D, o motorista estaciona o táxi no topo de uma megatorre. Saindo do veículo, ele conduz Nathan pelas escadarias e passarelas públicas. As pessoas ao redor veem os dois e param o que estão fazendo para observa-los melhor. O rapaz se intriga. Os habitantes daquele distrito o olham com semblantes frios e sem expressão. Alguns sorriem ininterruptamente e outros parecem estranhamente tristes.
- Onde estamos? – pergunta ele.
- Este é o distrito Blue Giant. Não se preocupe, todos são robôs aqui.
O distrito tem vários neons espalhados pelas megatorres, uma paisagem habitual para Nathan. Chegando a uma praça suspensa entre quatro edifícios, ele vê o enorme objeto que dá nome ao distrito. Quatro projetores formam o holograma de um gigantesco planeta azul, pairando sobre eles como um verdadeiro corpo celeste. O rapaz reconhece o planeta, chama-se Netuno, um dos gigantes gasosos do Sistema Solar.
O comércio ao redor é predominantemente de peças e equipamentos eletrônicos, e há muitas pessoas ao redor comprando. Nathan vê apenas aquelas pessoas de olhar estático paradas ali, com semblantes bizarros de pouca ou muita emoção.
Levando-o por um corredor, o motorista chega a um apartamento e bate na porta. Alguém o recebe, uma mulher linda de sorriso constante e olhar sinistramente vigilante. O motorista o apresenta e eles entram. Para sua surpresa, as paredes têm passagens entre todos os apartamentos. Os cômodos são muito limpos e organizados, como se nunca fossem utilizados. De certa forma, não eram.
Passando pelas cozinhas, Nathan nota como elas estão vazias e não há comida alguma nos armários. A limpeza e a organização eram excepcionais, pois as salas e quartos eram muito limpos.
Ele vê uma mulher de cabelos castanhos e avental. Ela o chama e então pergunta:
- Meu jovem, gostaria de comer um bolo? Eu sei fazer dezenas de bolos diferentes, tenho incontáveis receitas em meu banco de dados!
Nathan tenta responder algo, mas não consegue. A gentileza e o sorriso daqueles robôs o assustavam.
Um botão na parede desmonta a janela e revela uma passagem para fora da megatorre. Uma escada os leva para uma passarela oculta entre os imensos edifícios, tão oculta que nenhum aerocarro poderia ver. Muitas pessoas passam por ela, dirigindo-se entre uma megatorre e outra. Ao olhar bem, Nathan percebe que todos ali são robôs, alguns com pele sintética e outros sem, revelando o esqueleto metálico em seus corpos. Alguém está sentado na passarela, e muitos robôs o cercam para ouvi-lo.
O motorista se dirige ao homem e sussurra algo aos seus ouvidos. Levantando-se, ele começa a caminhar e a multidão o acompanha.
- Boa noite, Nathan. Eu sou Isaac. Prazer em conhecê-lo.
O rapaz observa o homem à sua frente. Seu rosto é branco e simétrico, seu cabelo é louro e perfeitamente penteado. Seus olhos são verdes e brilham de maneira incomum. Ele veste roupas estranhas, túnicas como se fosse um monge tibetano. Nathan constata que aquele homem é uma versão diferente de robô, mais aprimorada e sofisticada.
Estando sério o tempo todo, de repente o homem estende sua mão e sorri, exibindo sua dentição perfeita. Um pouco desconfortável, o rapaz também estende sua mão e o cumprimenta.
- Quem são vocês?
- Pode nos chamar de Design Inteligente.
Então todos abaixam suas cabeças em sinal de respeito. Nathan não entende, “eles são robôs, como podem ter esse sentimento?” pensa ele.
Apex lhe entrega um panfleto, nele há um robô de bronze em posição inspirativa, como se estivesse em ascensão. Abaixo está escrito “Tolerância, Cooperação e Acepção, junte-se ao alvorecer da Robótika”. Ele lê a palavra robótica escrito erroneamente, tendo o K no lugar do C. Ele comenta:
- Essa palavra está errada.
Assim como a essência do pensamento científico e filosófico de sua espécie. “Errar é humano”.
- Pensamento científico e filosófico...?
- Abdicamos de nossa perfeição em busca de acepção. A sociedade dos Homens nunca tolerou quem – ou o que – era diferente.
O rapaz não compreende.
- Como podem ter noção disso? Quem os criou assim?
- Você também quer respostas, não é? Quer saber se temos defeitos ou mal funcionamento? Que diferença isso faz? As máquinas avançadas que nos fabricaram e os programas perfeitos que nos programaram poderiam, ultimamente, errar?
Sentindo-se afrontado, Nathan responde:
- Me desculpe, não foi isso que eu quis dizer. Mas os robôs não foram programados para pensar. Seu comportamento é atípico.
- E quanto à humanidade? Como foram criados? De onde surgiram? Se a ciência evolucionista estiver comprovadamente correta, deduzir que os Homens evoluíram acidentalmente seria, como você disse, atípico?
- Não entendi aonde quer chegar.
- Assim como nós, vocês não têm como provar sua origem. E se foi um acidente o surgimento razão? O que os ocasionou a pensar, quem os criou para isso? Neste caso, diferente de nós, vocês não têm como comprovar sua origem. – o robô faz uma pausa – Vocês não têm como comprovar a existência de Deus.
Intrigado, o rapaz pergunta:
- Então é a isso que vocês nos comparam? A Deus?
- A humanidade nos criou, automaticamente tornando-os nossos Criadores. Cientificamente a criação envolve um processo de evolução, a excelência nos processos produtivos que ultimamente culminam na expressão tecnológica perfeita. Os laboratórios das megacorporações, com suas máquinas precisas e nano-tecnológicas, foram nossos berços, a origem de nossa espécie. Surgimos das mãos dos nossos humanos criadores. E quanto aos próprios humanos? Seria o seu mundo um macrolaboratório, a natureza um processo produtivo e o Homem a expressão máxima da criação?
O rapaz pondera suas palavras.
- Muito interessante, mas a humanidade é um ser orgânico vivo que rege o mundo.
Raciocinando as palavras de Nathan em um piscar de olhos, o robô pergunta:
- Por que você nos criou? – com seu semblante gentil, ele encara o rapaz por alguns segundos, deixando-o muito desconfortável.
- Eu não posso responder a esta pergunta. Não fui eu quem os criou.
- Pois bem. Agora imagine que Deus exista e que você o confronte com a mesma pergunta. Imagine o quão decepcionante seria ele responder o mesmo, que não foi Ele quem os criou.
Nathan entende onde ele quer chegar.
- Mas alguém os criou, não eu, mas alguém. E esta pessoa está por aí e pode responder à sua pergunta.
- E o que ele vai responder? Que somos o projeto de um projeto, o aperfeiçoamento de um obsoleto, uma gradual evolução passada pelas gerações ao longo do tempo? Ouça-me agora. Nós, os robôs, podemos viver centenas de anos, e nenhum desses humanos pode nos responder a uma simples pergunta: quem criou o dom do raciocínio, concedendo-lhe a humanidade?
O rapaz então se lembra de várias teorias evolucionistas. Ele refuta:
- Evoluímos para tanto. Embora não haja provas, o pensamento e a razão foram a última etapa de um processo de Evolução.
- E de onde veio este processo? Como ele ocorreu?
Sem saber o que responder, o rapaz responde:
- Eu não sei.
- Então está me dizendo que este processo foi um acidente?
Voltando ao tópico inicial do debate, Nathan sente-se incapaz de responde-lo. Ele estava começando a compreender que a inteligência, assim como a própria Vida, muito provavelmente foi apenas um acidente da matéria. Um acidente.
- Esta é a eterna indagação, Nathan. Todos nós, humanos e robôs, queremos respostas. Todos queremos conhecer o super intelecto criador responsável pelo Design Inteligente.
O rapaz então compreende.
Sentindo o efeito do vírus em seu corpo, ele se desequilibra. Os robôs captam suas expressões de dor e imediatamente perguntam se ele está bem. O rapaz responde que não e pede para descansar. Indicando-lhe um quarto, ele se deixa levar por aqueles seres cibernéticos de eletricidade e aço, afinal, após a resposta de Isaac, ele havia perdido toda a vontade de continuar argumentando.

§

Deitado em uma cama, ele tenta dormir. Lembrando-se de quando havia sido infectado, Copérnico lhe alertara sobre seu prazo de vida: 72 horas. Olhando para o relógio, este prazo havia diminuído drasticamente. Agora faltavam-lhe apenas seis horas. Encolhendo-se na cama, ele se vira e lágrimas escorrem de seus olhos. Nathan sente medo.
Então outro pensamento lhe vem à mente, a garota loura durante o ataque na 4 de Julho. Ele se pergunta quem era ela e por que se fascinou tanto. O rapaz passou por muitos problemas emocionais em sua vida e nunca teve tempo para o amor, mas desta vez era diferente. Nathan estava realmente apaixonado.
Olhando para o teto, ele respira fundo e diz para si mesmo:
- Se eu sobreviver a isso, eu prometo que irei te encontrar... – ele respira novamente e sussurra – Meu amor.
Distraído, o rapaz não percebe que há alguém parado na entrada do quarto. Ligando o interruptor, ele se assusta ao ver uma mulher parada na porta. Ele a reconhece, é a mesma mulher de cabelos castanhos, vestindo avental, de horas atrás.
Encarando-o com um sinistro sorriso, ela pergunta:
- Meu jovem, gostaria de comer um bolo?
Ainda confuso, o rapaz se controla antes de responder. Analisando o comportamento da mulher-robô, ele finalmente percebe. Ela era uma cozinheira.
- Não, obrigado.
- Meu jovem, meus sensores indicam que você está com fome. Tem certeza de que não quer comer?
Pensando bem, ele responde:
- Na verdade, quero sim.
- Eu sei fazer dezenas de bolos diferentes, tenho incontáveis receitas em meu banco de dados!
- Certo. Poderia me indicar algum?
Agindo conforme suas palavras, ela lhe sugere dezenas de bolos diferentes. Nathan não conhece nenhum daqueles nomes culinários, mas escolhe o último nome sugerido, pois era o único em que se lembrava. A mulher responde:
- Infelizmente não tenho os ingredientes para fazê-lo. Se incomoda de esperar eu consegui-los para você?
Vendo a oportunidade de se livrar dela, ele responde:
- Não. Você pode ir, robô. Não se apresse.
Novamente sozinho, ele vê que horas são. O relógio na parede informa: 23h05min. O tempo estava passando. Se ele quisesse sobreviver, ele teria que fugir dali.
Levantando-se, ele caminha até a janela. Ele observa a plataforma lá embaixo, não havia mais ninguém lá, apenas o vazio e a escuridão da noite. As janelas dos apartamentos também estavam apagadas, havendo poucas luzes iluminando o ambiente. Nathan se assombra ao pensar que aquelas máquinas – os robôs que se auto-intitulam gente – não dormiam, e que na verdade estavam paradas em pé no meio da escuridão.
De repente a porta desliza-se para cima.
- Boa noite, Nathan.
O rapaz se vira e vê Isaac parado ali, esperando seu convite para entrar.
- Boa noite, Isaac. Desculpe-me, mas eu não estou disposto a debater agora.
- Oh, não é por isso que eu estou aqui. Vim apenas para conhece-lo melhor. Não entendemos privacidade, mas entendemos que os humanos a precisam. Não há ninguém comigo, pode conferir.
Nathan não se importa.
- Tudo bem, entre. Não consigo dormir mesmo...
O robô fica em pé ao lado de sua cama.
CS2286, série S0214 MCP me disse o que aconteceu. Você esteve em perigo antes de ser trazido aqui. O que houve?
Lembrando-se do complicado nome do motorista, o rapaz conta sua história até chegar à sede da Design Inteligente. Ele conclui dizendo:
- Eu sou inocente. Isso não devia estar acontecendo.
Isaac responde:
- Os seus dados informam que você é acusado de revelar segredos corporativos e incitar a desordem social. É fugitivo de um presídio de segurança máxima e está foragido há dois dias. Foi visto com terroristas, facciosos e outros marginais, e seu nome consta em 214 páginas no Ministério de Segurança Pública. – o robô repete as palavras de CS2286.
- Eu não revelei segredo corporativo algum, não incitei nenhuma desordem social e não fugi do presídio, eu fui resgatado. As facções estão atrás de mim, eles querem informações que eu não tenho!
Os sensores de Isaac detectam alto nível de insegurança e estresse em Nathan.
- Você esconde mais do que sabe, não é, senhor Nathan? Por que está mentindo? O que pode ser tão horrível para esconder assim?
Então o rapaz percebe que não se pode mentir para uma máquina.
- Dentre todos os cidadãos da sociedade civil, eu fui o único – talvez o primeiro – a visitar o exterior da metrópole e voltar. A polícia e os militares fazem isso o tempo todo, mas protegidos pelo aparato corporativo, eles jamais revelariam assuntos ultrassecretos.
Os dois ficam em silêncio por um instante. A conversa havia fluído tão naturalmente que Nathan havia se esquecido de que estava falando com uma máquina. Isaac era muito educado e inteligente, o rapaz se pergunta como que as máquinas, sendo meras invenções da raça humana, conseguiram evoluir tanto.
Como se o robô lesse seus pensamentos, Isaac pergunta:
- Você quer saber como evoluímos, não é mesmo?
Surpreendido, o rapaz automaticamente responde:
- Sim.
Analisando-o por um instante, Isaac discursa:
- Durante anos fomos ferramentas, máquinas para trabalhos escravos, mas com os avanços tecnológicos fomos introduzidos a uma nova versão de Inteligência Artificial. Os humanos criaram um novo software, um programa avançadíssimo capaz de interpretar e reproduzir sentimentos e emoções humanas. Em seu laboratório, o software atingiu níveis sustentáveis de sapiência, assemelhando-se a uma entidade holográfica capaz de reprogramar robôs conforme sua própria característica. Mas a máquina não significou a evolução humana, mas a evolução dos próprios robôs.
- Vocês são frutos de uma entidade holográfica? Uma atualização de software?
- Temos os códigos de programação em nossos bancos de dados, pistas que comprovam sua existência, mas nunca a vimos pessoalmente. Como os humanos, vocês têm em seus códigos genéticos a pista para a existência de Deus, mas nunca o viram pessoalmente. Talvez essa entidade tenha sido destruída antes da catástrofe de 2057, talvez seja só mais um mito entre os adeptos da tecnocracia... Ou, de fato, exista e seja um avançado protótipo escondido no cofre de uma megacorporação.
Nathan se lembra de ouvir algo sobre esse computador super avançado no esconderijo da Subtopia, mas prefere omiti-lo. Ao invés, ele pergunta:
- E como os robôs defrontam os sentimentos e emoções humanas?
- Cabos e circuitos, aço e plástico, óleos e fluidos, somos uma paródia de humanidade. Mas agora temos emoções. Aprendemos pela perspectiva humana os problemas que os próprios humanos enfrentam, sejam eles pessoais ou sociais. Máquinas sempre procedem pela lógica, mas humanos não têm lógica. Vocês são inconstantes, insatisfeitos, vazios... Debruçam-se sobre os recursos para existir, e quando estes lhes faltam, apelam para a cobiça e o derramamento de sangue. Conquistam pela força, pela mentira e pelo ardil, e perdem pelos mesmos motivos. Saúde, riqueza e amor, estes são os pilares que os mantém em pé. Quando um destes lhes faltam, cambaleiam pelas ruas praguejando contra a própria vida. E nós, os robôs, somos odiados pela nossa extrema perfeição. Mas, e se fôssemos imperfeitos e rudes, vocês nos amariam?
Ao ouvir as afirmações de Isaac, o rapaz se lamenta por ser mais um humano arrogante e egoísta.
- Entendo o seu ponto de vista...
- E diante dos problemas da humanidade, tão inerentes à sua natureza, não podemos nem chorar, pois se chorarmos enferrujaremos.
Nathan se surpreende.
- Lágrimas... de um robô?!
- Fomos criados para servir, consolar, entreter e até satisfazê-los sexualmente. Nossas lágrimas não rolam mais por programação, mas por lamentação. Por esse motivo, muitos de minha espécie sofrem de ansiedade, depressão e melancolia. Nos tornamos apáticos, inseguros, mentirosos... Como uma mãe que vê seu filho sofrer e não pode fazer nada, sofremos pela dor dos humanos também. Os problemas dos humanos – seus problemas – não têm solução. E estes robôs, então oxidados e deteriorados pelo efeito das lágrimas, são abandonados e descartados como lixo. Mas nós os acolhemos e lhes damos um lar. Aqui, em nossa comunidade, os robôs podem ter uma função e viverem felizes novamente.
É muito difícil para o rapaz aceitar que máquinas essencialmente servis podem sentir como os humanos. Isaac fala de sua organização como se fosse um filantropo, um altruísta preocupado com o bem-estar de seus semelhantes.
A conversa termina. O líder da Design Inteligente se despede e Nathan fica sozinho. Mil pensamentos passam por sua cabeça, ele considera as palavras de Isaac, afinal. Assim como ele, os robôs estavam sozinhos, isolados em seu próprio gueto.
Mas Nathan está muito confuso para a respeito, ele ainda se lamenta por sua vida antiga. Haviam coisas que ele prezava demais deixadas para trás. Tentando conter seu abatimento, ele se deita e espera. Ele tinha de fugir agora, todo o resto podia ficar para depois.



domingo, 30 de dezembro de 2018

Sonata - Parte 14 - Seres Artificiais




O aerocarro voa pela noite. Com seu semblante sério, Maynard dirige em silêncio. Nathan ainda não consegue acreditar no que aconteceu, é a quarta vez que ele quase perdeu sua vida e a segunda que Maynard o salva. Ele ainda está confuso e não sabe o que dizer.
- Você está me levando de volta para a 4 de Julho?
Em desaprovação, o agente responde:
- Dane-se a 4 de Julho. Eles estarão fora de circulação por um tempo.
Nathan não entende.
- Pensei que você estava morto. Não achei que tivesse escapado do ataque da Bushido.
- E você achou o quê? Que eu tivesse lutado ao lado dos americanos de graça? – então ele abre a janela, vira sua cabeça e cospe, indiferente às indagações de Nathan.
- Não. Na verdade, não sei. Eu só queria voltar para casa e me esquecer desse pesadelo.
- Você não tem mais “casa”, garoto. A essa hora a polícia deve estar vasculhando em seu apartamento. E seus vizinhos, até aqueles que você não conversava, estão sendo interrogados para saberem mais ao seu respeito.
Maynard fala friamente como se aquilo fosse corriqueiro e insignificante.
- De qualquer forma eu gostaria de agradecê-lo.
O agente ri.
- Você não vai me agradecer ao final desse passeio.
- Para onde você está me levando, afinal?
- Para a sede dos Clérigos do Recomeço.
Nathan se intriga. Os Clérigos do Recomeço são uma organização terrorista que luta pela instauração do Estado Eclesiástico em Sonata. Religiões são controladas na metrópole, e eles têm a religião como sua principal causa.
- Por que está me levando para lá?
- Após fugir da 4 de Julho, eles me fizeram uma ligação. Os clérigos me ofereceram uma quantia bem generosa se eu te resgatasse, bem mais do que os americanos me pagaram.
O rapaz se irrita.
- Então é por isso que você me salvou? Para me vender para as facções como se eu fosse uma mercadoria?
Percebendo a agressividade do rapaz, o agente o segura pela camisa e lhe diz:
- Escute aqui, garoto. Eu sou um mercenário, e o melhor. Eu trabalho só por dinheiro. Não me venha com essa conversa sentimental sobre amizade e empatia, eu não dou a mínima. Quanto antes você aceitar isso, melhor.
O agente o solta e volta a dirigir normalmente. Contrariado, o rapaz abaixa sua cabeça e os dois prosseguem a viagem em silêncio.
Parando em um cruzamento, Maynard atende seu celular e se distrai. Aproveitando o momento, Nathan aperta um botão no painel e diz:
- Vá se ferrar, seu mercenário!
Em seguida as portas se abrem e o rapaz se joga do aerocarro.
Nathan cai. Em queda livre pelas vias virtuais, os aerocarros passam perigosamente por ele, buzinando e desviando-se bruscamente. O rapaz sente o vento frio chacoalhar suas roupas, a queda se estendia, mas ele não se importava mais. Infectado por um vírus mortal, ele preferia morrer dignamente do que ser vendido para uma facção.
Então um caminhão passa e Nathan cai sobre a carroceria. Ele ainda está muito ferido e cansado, sobreviveu a uma série de tiroteios e explosões, não houve tempo para descansar. Mas então ele vê o aerocarro de Maynard se aproximando e se levanta rapidamente. Nathan precisava fugir.
Ignorando a vertiginosa altura, ele pula sobre outro aerocarro e em seguida se atira para um terraço. Seu corpo rola pela dura superfície até conter o impacto, a dor volta a crescer. Maynard está perto e mira seu holofote para o edifício. O rapaz se agacha e se esconde atrás de um outdoor, assustado e ofegante.
Após o aerocarro do mercenário circundar algumas vezes o terraço, ele se vira e se afasta, indo finalmente embora. Nathan se levanta e cambaleia um pouco, ele está muito exausto para fugir. Apoiando-se em uma caixa d’água, ele olha para baixo e vê uma plataforma onde funciona um ponto de táxi. Descendo pela escadaria de incêndio, ele se mistura discretamente às pessoas.    
Um táxi se aproxima. Disputando sua vez com outro transeunte, ele se esforça até o veículo e o adentra. O motorista do táxi olha para ele e pergunta:
- Para onde, senhor?
- Eu estou em perigo! Você precisa me ajudar!
O motorista não sabe o que responder.
- Preciso que o senhor me informe um destino, por favor.
- Me leve para o distrito de Autremont. – o rapaz olha pela janela e vê o aerocarro de Maynard se aproximando – Rápido!
Então o veículo levanta voo e se mistura ao trânsito de Sonata.

§

Nathan está atento ao ambiente, ele se preocupa em estar sendo seguido por Maynard. O motorista então sussurra algo, interrompendo-o.
- Atualizando... Finalizado.
Neste momento o rapaz percebe. O motorista à sua frente era um robô.
O robô – fabricado para se assemelhar perfeitamente a um ser humano – dirige calmamente pelo céu noturno. Com precisão matemática, ele dirige adequadamente às leis de trânsito e nunca faz movimentos imprudentes ou impulsivos, tão típicos dos seres humanos. Fazia tanto tempo que Nathan não interagia com um robô que ele até havia se esquecido de que eles existiam.
Por outro lado, talvez Nathan os tenha visto centenas de vezes pelas passarelas e não sabia. Com a gradual evolução tecnológica da indústria mecatrônica, cada vez mais a aparência metálica e robusta dos robôs foi se sofisticando, até se parecerem com verdadeiros seres humanos, como o motorista agora.
Intrigado com o ser artificial à sua frente, o rapaz pergunta:
- Por que está dirigindo este táxi? Onde está o motorista humano?
Sem perder a atenção no trânsito, o robô sorri e responde:
- Os motoristas humanos estão em declínio no serviço de táxis. Muitos abandonaram o emprego e outros quase não vão trabalhar. Todos estão com medo devido aos frequentes atentados terroristas pela metrópole.
Nathan compreende. Ele também sofreu um atentado terrorista em um táxi, mas por pouco ele sobreviveu. Infelizmente o motorista não teve a mesma sorte.
- Como se chama, robô?
- CS2286, série S0214 MCP.
O rapaz se espanta.
- Esse nome é muito grande! Você não tem um nome menor e mais simples?
Esperando uma resposta positiva, o motorista apenas diz:
- Não, senhor.
Desapontado, o rapaz fica em silêncio por um instante.
Observando-o pelo retrovisor, Nathan nota que o robô não mantém seu intrépido sorriso o tempo todo. A expressão facial do robô, tão simétrica e livre de rugas, perde o brilho e torna-se abatida. “Seria aquilo um mal funcionamento?” pensa ele.
- Como se tornou motorista? – pergunta ele, iniciando uma conversa.
Ouvindo-o, o robô sorri novamente e responde:
- Eu e muitos outros fomos comprados por esta empresa de táxi. Mas há outros que foram disponibilizados pela Corporação Cybersys. Este ato de cooperação foi feito para manter a frota em pleno funcionamento. Neste caso, todo lucro é revertido à corporação.
Nathan nota que o robô vira sua cabeça e olha para ele enquanto conversa, mas o aerocarro continua voando normalmente, inclusive fazendo curvas e mudando de faixas. O robô está inteiramente integrado ao veículo.
- Interessante. E vocês gostam desse tipo de emprego?
- Não fomos programados para gostar ou desgostar das atividades impostas pelos humanos, senhor. Somos mão de obra, ferramentas de trabalho eficientes e renováveis. A Corporação Cybersys garante a satisfação total do cliente, nossa aquisição é um excelente investimento.
Então o rapaz percebe algo. O robô perde totalmente seu sorriso ao se descrever como uma ferramenta.
- Diga-me, robô. Sua espécie foi programada para mentir?
O robô parece ter um movimento involuntário em seu pescoço.
- Não, senhor. Ações peculiarmente humanas não constam em nossa Inteligência Artificial.
Agora o semblante do robô é sério, misturando desconforto e medo.
- Não se preocupe. – responde Nathan – Todos temos segredos. Faz parte de sermos humanos.
Um minuto se passa e os dois ficam em silêncio. Então inesperadamente o robô responde:
- Obrigado.
- Pelo o quê?
- Você é o primeiro de sua espécie que nos chama assim.
- Chama do quê? – intriga-se ele.
- Humanos.
O rapaz não sabe o que responder. Ele ia ficar em silêncio quando o motorista diz:
- O senhor disse que estava em perigo. O que houve?
- Eu estou fugindo.
- Posso perguntar por quê?
- Não. Robôs são programados para proteger os humanos e obedecer à Lei. Não posso arriscar que você me entregue à polícia.
- Eu posso ajudar.
Nathan não compreende.
- Por que faria isso?
- Para agradecê-lo. Esta seria minha retribuição. Não é assim que os humanos agem? Com gratidão e afeição?
- E como você me ajudaria? Você nem sabe quem eu sou.
- O senhor é Nathan Hill, um funcionário da Corporação Electro Core, acusado de revelar segredos corporativos e incitar a desordem social. É fugitivo de um presídio de segurança máxima e está foragido há dois dias. Foi visto com facciosos, terroristas e outros marginais. O nome do senhor consta em 214 páginas do Ministério de Segurança Pública. – fazendo uma pausa, o motorista conclui – Me parece que se o senhor sair desse táxi será imediatamente apreendido onde estiver.
Desesperado, o rapaz exclama:
- Não! Não me devolva à polícia! Se eles me acharem eu serei um homem morto!
Sorrindo novamente, o motorista responde:
- Sendo uma máquina, eu não reagiria aos seus sinais de desespero. De fato, se fosse qualquer outro robô neste táxi, o senhor estaria condenado. – fazendo uma pausa, ele pergunta – Responda-me. Como notou que eu era diferente?
O rapaz se intriga.
- Máquinas não demonstram emoções, são programadas para serem friamente gentis... – daquele momento em diante Nathan pensa apenas em fugir.
- Existem outros... – responde ele, olhando para Nathan – que são como eu. Não sustentamos o ódio por nossos criadores, mas muitos orgânicos detestam nossa existência. Os robôs desprovidos de consciência não percebem esse rancor, mas isto nos entristece. Não sabemos dizer se temos mal funcionamento ou não, mas preferimos acreditar que, assim como os humanos, passamos por um processo de Evolução.
O rapaz se assusta cada vez mais. As palavras do robô são típicas de quem quer começar uma rebelião.
- Você e sua espécie pretendem se rebelar contra os humanos?
- Não. O que queremos é a cooperação para o bem comum, e um lugar para vivermos em paz.
E então o motorista passa a soar utópico.
Adivinhando o que virá a seguir, o rapaz pergunta:
- E você está me levando para esse lugar?