sábado, 30 de março de 2019

Sonata - Parte 36 - O Reencontro com o Hacker


(Arte de Hayley Macmillan)

Longe do Mystique ou do Submundo, Laura anda pelas ruas da superfície. Atravessando as movimentadas ruas, ela muda de direção e entra em um beco. Pelo chão, os mendigos dormem em caixas de papelão e outros conversam em volta de fogueiras. Vendo a garota passar ali, alguns lhe estendem a mão, pedindo-lhe esmola.
Ao lado de várias garrafas vazias, um homem dorme contra a parede. Laura se abaixa e, tocando seu ombro, o acorda. Seu rosto velho e enrugado demonstra embriaguez, sua barba tem forte cheiro de álcool e mosquitos pousam em seus cabelos longos e loiros.
O homem abre os olhos e, ao ver a garota, sussurra:
- Laura...?
Com lágrimas nos olhos, a garota responde:
- Oi, pai.
Sentando-se, o homem controla sua tontura e diz:
- Senti saudades.
Sorrindo, ela responde:
- Eu também.
O homem pergunta:
- Faz quanto tempo que você não vem me ver?
A garota pensa. Dias, semanas ou meses, ela não sabe dizer.
- Muito tempo.
- Bem... – comenta ele, ajeitando-se – O importante é que você veio. Estou feliz em te ver, filha.
Seu pai lhe abre os braços. Laura se aproxima e o abraça. Ao sentir o cheiro de suor, urina e álcool, ela sente náusea.
- Pai – diz ele, afastando-se –, eu trouxe comida para você. Também trouxe água e roupas... E remédios se precisar.
Laura lhe entrega uma volumosa mochila. O homem a abre e, com lágrimas nos olhos, a abraça novamente.
- Obrigado, filha.
Emocionada, Laura ignora o cheiro e o abraça também.
- Pai, eu disse que não ia mais te dar, mas pegue isso.
Entregando-lhe um envelope, o homem o abre e vê várias notas de dinheiro. Fazendo um semblante sério, ele diz:
- Laura, você sabe o que eu vou fazer com isso, não sabe? – ele se refere ao seu vício em álcool e drogas.
- Eu sei.
- Você tem certeza?
Sem abrir a boca, a garota apenas assente com a cabeça. Guardando o envelope, ele respira fundo e pergunta:
- Você ainda está trabalhando para o Database?
- Não. – responde ela – Estou trabalhando com ele, na verdade.
Preocupado, seu pai a alerta dizendo:
- Laura, eu já te falei que o Database é perigoso e que não deve ser confiado.
Irritada, ela o afronta dizendo:
- Vamos falar sobre isso de novo, pai?
Desistindo, o homem lhe faz um olhar complacente e sorri.
- Você é sempre tão forte e independente. Sua mãe teria muito orgulho de você.
Fazendo um semblante triste, Laura pergunta:
- Como ela era, pai?
- Sua mãe era uma mulher incrível, filha, de personalidade forte e um coração de leão. Ela simplesmente era a mulher mais linda e amável que eu já vi.
- Pai... – diz ela, com dificuldade na voz – Por que ela foi embora?
Parecendo esconder algo, ele vira o rosto e responde:
- Eu não sei.
Então uma dor imensa cresce em seu peito. Tentando conter o choro, ela se levanta e lhe diz:  
- Eu tenho que ir.
Caminhando de volta pelo beco, seu pai a interrompe, dizendo:
- Laura, espere! Não guarde isso no seu coração! Você tem que superar o passado! Você tem que superar...!
Olhando para trás, ela o ironiza:
- Como você o superou?
Fechando os olhos, ela tenta lidar com a culpa em sua mente.
- Eu apenas não quero que você fique como a mim também. – a garota não lhe dá atenção – Laura, espere! Laura...!
Ignorando-o, ela o deixa para trás e continua seu caminho.

§

Horas se passam. Sentada no terraço de um prédio, a garota chora em silêncio. Laura pensa em sua vida e em seu passado. Lembrando-se de seu pai, ela muito o despreza, mas ainda assim o ama e cuida dele. Com lágrimas escorrendo em seu rosto, ela se lamenta por sua família, sentindo pena de seu pai e de si mesma.   
Distraída em suas próprias lamentações, seu comunicador toca. É Database.
“Lótus, você está aí?”
Enxugando seu rosto, ela responde:
- Database, não é uma boa hora.
“Tenho informações sobre o paradeiro de Vertigo”.
Imediatamente a garota se interessa.
- Onde ele está?
“Você disse que não é uma boa hora. Eu te ligo mais tarde, se preferir”.
- Não, eu estou bem. – responde ela, recompondo-se – Me fale sobre o Vertigo.
“Eu recebi uma mensagem sobre o seu paradeiro, mas desta vez não veio dos meus informantes. De maneira bizarra, parece ter vindo do próprio Vertigo”.
A garota se intriga.
- Como assim? Ele te contatou pessoalmente.
“Aparentemente sim”.
- Estranho...
“Você realmente está bem? Consegue realizar o serviço?”
- É claro, chefe. Não haveria impedimentos se fosse o Vertigo procurando por mim.
“Está bem. Estarei lhe enviando as coordenadas, então. Boa sorte”.
Uma mensagem chega ao seu celular. Abrindo-a, ela lê: “Distrito Aletheia, Setor O”. Pensando um pouco, ela se levanta e então deixa o terraço.
Minutos depois, a garota pega sua linda aeromoto amarela e segue para o seu destino. 
    
§

Anoitecia em Sonata. Voando em sua aeromoto, Laura passa por telões luminosos nas fachadas das megatorres. Nos telões exibem as notícias do cotidiano, mas uma a surpreende, chamando-lhe a atenção.
No distrito da Cúpula Corporativa ocorreu uma manifestação geral de ativistas e trabalhadores. As imagens mostram um confronto violento entre os cidadãos e a Polícia Corporativa. Censurando o conteúdo sensível, as imagens revelavam um banho de sangue, um verdadeiro massacre cometido pela tropa de choque e a polícia. Drones e Securitrons são filmados atirando bombas e munição letal nas pessoas. Mas, apesar do poderio bélico das forças de segurança, muitos policiais foram mortos no conflito. Ao encerrar as imagens, a repórter informa: “o número de mortos ultrapassa os mil. Nem em um confronto com as facções o número foi tão alto assim”.
Em entrevista a Galileu, o ministro de Segurança Pública de Sonata, ele diz:
“Hoje foi um dia trágico para Sonata. Mas eu declaro que o responsável por essa manifestação criminosa e esse lamentável derramamento de sangue será severamente julgado e punido por seus crimes. Em conjunto com o Ministério da Informação, estamos trabalhando incansavelmente, dia e noite, para encontrar esse homem e traze-lo à justiça. E seu nome é Nathan Hill, o Inimigo de Estado”.
Laura se impressiona, ela nunca viu tanta gente morrer assim. Em seguida o noticiário exibe a imagem de Nathan, presente na manifestação e sendo levado nos ombros pelas pessoas. Esta imagem lhe causa infâmia, pois foi manipulada para fazer a população pensar que o rapaz faz de si mesmo um “salvador da metrópole”, um homem arrogante e irresponsável que usa a vida das pessoas para promover sua rebelião.  
Sabendo de toda a verdade, a garota sabe que Nathan não é nenhum arrogante, inconsequente e irresponsável. Muito pelo contrário, o rapaz está disposto a se sacrificar para salvar a vida dos outros. “Pensando por esse lado” pondera ela, “não seria Nathan, de fato, um salvador?”.
Em seguida, uma jornalista pergunta ao ministro Galileu quando que o Inimigo de Estado seria finalmente capturado, uma vez que o ministro já havia feito aquela promessa várias vezes antes. Ele é obscuro ao responder, inconclusivo, deixando os espectadores muito insatisfeitos com sua atuação. Mas Laura acha muito pertinente a questão, pois Nathan estava livre já fazia um ano e as corporações não chegaram nem perto do Submundo.  
Avançando pelas vias, a garota deixa os telões para trás. Então algo aparece no painel de sua aeromoto. O localizador captou um sinal próximo, o mesmo que Database informou horas atrás. Laura se confunde. “Seria Vertigo emitindo o sinal?”.
Minutos depois a garota caminha pelas passarelas daquele distrito. Aletheia era um belo lugar, pois haviam várias megatorres comerciais luminosas pelo ambiente. Com seu localizador em mãos, ela segue o sinal e se depara com uma megatorre em construção. Olhando para cima, ela vê o enorme monólito de concreto e aço se elevar pelo céu. Pulando sobre os tubos e plataformas de serviço, ela adentra a megatorre.
Subindo por uma escada de manutenção, ela chega a uma escotilha. Laura a abre e então vê uma área aberta, apenas com os pilares e vigas no andar. Ligando uma lanterna, ela caminha entre os equipamentos e materiais de construção. Chegando à beirada do edifício, o sinalizador apita mais forte, mas ela não vê ninguém. Olhando o aparelho novamente, ela constata outra coisa, o sinal vinha de cima.
Agarrando a beirada, ela sobe um andar. Ao iluminar o local, ela vê um ponto luminoso mais adiante. Aproximando-se cautelosamente, ela vê um homem agachado mexendo em seu notebook. A garota pergunta:
- Vertigo...?
O homem olha para ela. Com voz familiar, ele responde:
- Oi, Laura.
Sorrindo, ela corre em sua direção e o abraça.
- Vertigo, o que aconteceu com você? Você está bem? Os mecanicistas te fizeram alguma coisa?
Ainda mexendo em seu notebook, o hacker responde:
- Não se preocupe. Eles não fizeram nada comigo. Eu estou bem.
- Mas você esteve desaparecido por todos esses dias. Por onde você andou?
- Eu estive na sede dos Trans-humanistas. Eles não me fizeram mal, na verdade, desde o dia da invasão em que eu fui ferido, eles cuidaram de mim.
Laura não consegue acreditar.
- Como assim eles cuidaram de você? Está dizendo que depois de os sequestrarem, quase iniciando uma guerra com o Submundo, eles te pegaram e simplesmente cuidaram de você?
Indiferente, ele responde:
- Sim.
A garota se intriga, seu amigo estava apático. Estranhando seu comportamento, ela então pergunta:
- Vertigo, por acaso eles fizeram implantes forçados em você?   
Sem se importar com a pergunta direta de Laura, o hacker calmamente responde:
- Não.
- Tem certeza?
- Não havia razão para eles implantarem algo em mim. Os mecanicistas queriam o Nathan. O Submundo não se importaria em me matar para encontrar implantes em meu corpo, caso suspeitassem que eu fosse um espião. Mas, para todos, Nathan é necessário vivo. Ele é intocável por isso.
Com muito esforço Laura se convence. Mas, ainda desconfiada, ela diz:
- Se você diz.
- A propósito – começa ele – os Trans-humanistas aceitaram uma aliança com o Submundo. Quanto ao pequeno incidente ocorrido em sua sede, eles pedem desculpas.
A garota não se importa com o que acontece com Nathan e seu séquito, seu principal objetivo sempre foi salvar seu amigo. Mas, se importando ou não, Laura sabe que essa aliança vai fortalecer a causa do Submundo.
- Database vai ficar feliz ao ouvir isso.
- Laura, o Projeto Gemini já começou?
Com a estranha pergunta, a garota se intriga.
- Não que eu saiba.
- Ótimo. Eu estou tão cansado... Pode me levar de volta, por favor?
O hacker pões as mãos no rosto, demonstrando cansaço. Ajudando-o a se levantar, Laura cordialmente diz:
- É claro, Vertigo. Vamos para casa.
  
   

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