“Ah, a
superfície...” pensa Maynard. O mercenário anda por aquele buraco suburbano com
sentimentos de admiração e nostalgia. As instalações e habitações improvisadas
compunham o ambiente, transmitindo uma sensação de emoção, aventura e perigo.
Com sua arma sob o casaco e preparada para atirar, ele passa pelos delinquentes
e mendigos com uma pose de quem já fez aquilo umas cem vezes antes. “Alta
tecnologia e baixa qualidade de vida” pensa ele, “eu deveria comprar uma casa
aqui”.
Parando em frente
à casa noturna Mystique, ele a contempla por alguns segundos. Maynard sabe o
que acontece dentro daquele lugar. Atrás das batidas dançantes, bebidas
exóticas e frequentadores alegres, ali funcionava um “quartel-general” de
atividades criminais. O coração negro de Sonata, ou a mente por trás dos
pecados, agora esse câncer social deslocou-se para outro lugar, agora mais discreto
e fortificado, adotando inclusive uma causa mais “nobre”.
“Submundo”
sussurra Maynard, iluminado tenuamente pelos neons no outro lado da rua.
O agente se
aproxima da entrada. Um segurança enorme, portando uma prancheta com vários
nomes, olha para ele e diz:
- Seu nome, por
favor.
- Maynard
Cuisset.
Verificando a
lista, o segurança responde:
- Desculpe, mas
não encontrei o seu nome na lista.
Jogando um bolo
de dinheiro sobre a prancheta, o mercenário diz:
- Olhe de novo.
Sorrindo, o
segurança tira a fita da entrada e alegremente responde:
- Bem-vindo ao
Mystique, senhor Cuisset. Pode passar.
Maynard
calmamente passa pela entrada. Ao chegar à pista de dança, ela se ofusca com os
neons coloridos e a música alta. Muitas mulheres olham para aquele homem forte
e imponente passando ali e logo se interessam, mas o mercenário, estando
ocupado, apenas sorri de volta, prosseguindo em seu caminho.
No balcão lotado,
Maynard chama o barman. Um homem de cavanhaque, tatuagens e piercings, olha
para ele e pergunta:
- E então, cara?
O que vai ser?
- Estou
procurando por Database. – responde ele, gritando um pouco por causa do som
alto.
- Base de dados?
– ironiza ele – Cara, aqui é a casa noturna Mystique, não o Ministério da
Informação.
Insistindo, o
mercenário complementa:
- Diga que o
agente Maynard Cuisset deseja vê-lo.
“Agente?” pensa o
barman. “Esse não é um eufemismo para mercenários?”. Virando-se, ele dirige-se ao
vidphone e fala com alguém. Ao ouvir algo, o barman parece se surpreender,
arregalando os olhos para Maynard.
Voltando para o
mercenário, o barman diz:
- Desculpe o mal
entendido, senhor Cuisset. O Database encontra-se no Submundo. Um runner no
lado de fora estará esperando para leva-lo.
Agradecendo,
Maynard se vira e vai embora.
Em frente ao
Mystique, um homem de moicano laranja, óculos azuis e colete sem camisa o
espera. Cumprimentando-o, o runner o conduz pelas ruas e becos. Os aerocarros
passam soprando um vento frio. Maynard põe as mãos nos bolsos, mas o jovem
rapaz caminha de braços abertos, sem incômodo algum.
Entrando em um
beco, a entrada do prédio era descendo por uma escada abaixo do piso. Apesar da
forte escuridão, o mercenário desce os degraus, dá uma nota de dinheiro ao
runner e cordialmente diz:
- Obrigado.
Em seguida ele
entra no infame Submundo.
§
De luzes apagadas em sua sala,
Database observa atentamente o monitor. O brilhante monitor
ilumina seu rosto, permanecendo em silêncio enquanto vê Nathan voltar de sua
incursão à sede dos Clérigos do Recomeço.
O rapaz não
parece bem, seu semblante é de puro abatimento e tristeza. Os outros runners o
acompanham, caminhando logo atrás com suas metralhadoras e fuzis.
Pegando um
telefone, Database vai direto ao assunto sem se identificar.
- Ele chegou.
“Você tem um
excelente aliado, Database. É muito corajoso esse seu Inimigo de Estado”.
- Ele apertou o
botão? – pergunta ele.
“Certamente! O
alvo foi destruído com sucesso”.
- A detonação ocorreu sem problemas?
“Sim, muito
potente a bomba que você nos forneceu. Os ateístas provaram a temível ira dos
Clérigos do Recomeço”.
Satisfeito, o
chefe responde:
- Ótimo.
“Agora que
trabalharemos juntos, espero que nossa aliança nos renda bons frutos”.
- Igualmente,
Eminência.
“E, conforme
combinado, ficaremos de olho no Inimigo de Estado”.
- Mantenha-me
informado.
Encerrando a
chamada, alguém bate à sua porta. Permitindo a entrada, um runner a abre e
então o inusitado visitante entra. Ligando as luzes, Database reconhece seu
rosto e, intrigado, não consegue esconder a surpresa.
Nathan caminha
pelos corredores. Ainda abatido, ele prefere se reportar imediatamente à
Database e encerrar logo a missão. De cabeça baixa olhando para o piso, ele
entra na sala de seu chefe e, ao se deparar com o homem ali presente, tem uma
exasperada reação.
- Você?!
Sorrindo, o homem
responde:
- Olá, Nathan.
Sentiu saudades?
Empunhando seu
fuzil, ele o aponta para Maynard e diz:
- Afaste-se do
Database, agora!
Sarcástico, o
mercenário comenta:
- Mas isso é
maneira de receber os velhos amigos?
- Amigos?! –
indigna-se ele – Você me vendeu para a 4 de Julho como se eu fosse uma
mercadoria! E então para os Clérigos do Recomeço. Você não é meu
amigo!
Sorrindo, Maynard
responde:
- Pois para mim
foi o começo de uma bela amizade.
Database
finalmente intervém:
- Acalme-se,
Nathan. Está havendo um grande mal-entendido aqui.
- Chefe, este
homem é altamente perigoso e pode subjugar qualquer pessoa ou lugar com seus
truques.
O mercenário
sorri em satisfação.
- É... de fato eu
posso mesmo.
- Nathan, eu vou
ter que pedir para confiar em mim. Abaixe sua arma, por favor.
Hesitante, o
rapaz respira fundo e obedece.
- Agora que
chegamos a um consenso, você pode nos dizer por que veio aqui, Maynard?
Abanando suas
roupas, o mercenário olha ao redor e, amigavelmente, responde:
- Em primeiro
lugar, que belo quartel-general você montou aqui, Database. Estou
impressionado.
- Fico feliz que
tenha gostado. – diz o chefe, indiferente – E então, por que você veio?
- Imaginei que
você se adiantaria a responder, “chefe”. Afinal eu tenho uma acusação
gravíssima contra você.
- Do que está
falando?
Andando pela
sala, ele diz:
- Na noite
passada eu fui atacado por dois runners. Eles inclusive invadiram meu
apartamento, acredita? – comenta ele, humoradamente – Então, respondendo à sua
pergunta, sou eu quem te faz outra: Mas que droga, Database! Por que você me
atacou?
O chefe ergue a
sobrancelha.
- Eu não faço
ideia do que está falando, Maynard. Eu nunca te ataquei!
- Eu ouvi seus
nomes enquanto me atacavam. O rapaz se chamava Androide e a garota, uma
excelente lutadora, por sinal, se chamava Alexia. Você os conhece?
Meneando a
cabeça, Database responde:
- Eu nunca ouvi
falar.
Encarando-o nos
olhos, o mercenário contém seu bom humor por um momento. Ele pergunta:
- Você jura?
Sem desviar o
olhar, o chefe responde:
- Eu juro.
- Mesmo, mesmo?
Entediando-se com
seu irritante bom humor, Database respira fundo e diz:
- Sim.
Maynard ainda o
encara, mas Database se mantém firme. Sendo um perspicaz negociador da
superfície, ele sabe que é uma tremenda insensatez se meter com Maynard. Devido
à sua reputação e temperamento, o mercenário era perigoso demais.
Conhecendo o
chefe do Submundo, Maynard sabia que Database não era o homem certo a se
confiar. Ponderando, ele percebe que vai ter que encontrar a resposta sozinho,
nem que tenha que revirar o território inteiro de Database para isso.
Desviando o
olhar, o mercenário respira fundo e responde:
- Ok, acho que me
enganei quanto aos runners. Aqui, tome isso.
Aproximando-se de
sua mesa, ele enfia a mão no bolso e pega algo. Nathan, que esteve encarando-o
o tempo todo, novamente aponta seu fuzil para Maynard e ordena:
- Para trás!
Levantando sua mão lentamente, ele lhe revela um cartão.
- Acalme-se,
garoto. Eu só vim conversar. – olhando para o chefe, ele continua – Fique com o
meu número. Se souber de algo, não hesite em me avisar.
Database sorri,
ele jamais o avisará de coisa alguma. Maynard sorri também, pois também sabia que isso
nunca aconteceria.
- É claro,
Maynard. Eu manterei contato.
Com as mãos nos
bolsos, ele se aproxima de Nathan e diz:
- Da próxima vez
que você for render alguém, certifique-se de que sua arma esteja destravada. – e então
ele olha para a lateral do fuzil.
Nathan se
intriga. Ao olhar para o destrave, Maynard a agarra pelo cano, a arranca de
suas mãos e em seguida a aponta para ele, rápido como um relâmpago. O rapaz
arregala seus olhos, totalmente surpreso. Então o mercenário calmamente diz:
- Me procure
quando quiser se tornar um atirador de verdade.
Apertando o botão
de liberação do cartucho, ele desmunicia o fuzil e puxa a alavanca, liberando a
cápsula da câmara de fogo. Então o mercenário se vira e finalmente vai embora.
Vendo aquele
homem confiante e seguro de si sair, o rapaz se vê desarmado e sente vergonha
de si mesmo. Database percebe a humilhação em seus olhos, mas sem querer bancar
o conselheiro paternalista, simplesmente pergunta:
- Você tem algo
para me dizer, Nathan?
Saindo de seu
transe, o rapaz disfarça suas emoções ruins e se aproxima.
- Database... –
começa ele, de cabeça baixa – Temos um novo aliado, os Clérigos do Recomeço
aceitaram a aliança.
Ao ouvi-lo, o chefe
se encosta em sua cadeira.
- Ora, isso é
ótimo! Você teve problemas em convence-los?
Nathan vira seu
rosto.
- Não. Ocorreu tudo
bem.
Perscrutando seu
olhar, o chefe pergunta.
- Você não parece
bem, Nathan. Há algo errado?
- Não, chefe. –
responde ele, vagamente.
Database insiste:
- Aconteceu algo
com os clérigos que você queira me contar, Nathan?
Ainda recluso em
seus pensamentos, o rapaz responde:
- Não, chefe. Na verdade...
– prossegue ele – Com esse novo aliado, a rebelião está mais perto de acabar. Apenas
isso é importante agora.
Apoiando-se na
mesa, Database calmamente diz:
- É claro. Eu ficarei
aqui se precisar de mim.
Assentindo,
Nathan se vira e dirige-se até a porta. Mas antes de sair, ele se lembra de
algo e, voltando-se para o chefe, pergunta:
- Database, você por
acaso teve notícias de Laura?
Respirando fundo,
o chefe pesarosamente responde:
- Ainda não,
Nathan. Lamento.
Então o rapaz se
fecha novamente, perdendo o último brilho no olhar que ainda lhe havia.
- Eu sei que já disse
isso antes, mas... Se você tiver notícias dela, por favor me avise.
Assentindo, o
chefe responde:
- Pode confiar em
mim, Nathan.
Satisfeito, o
rapaz sorri e deixa a sala.
Esperando
calmamente ele sair, Database permanece olhando para a porta. Sozinho em sua
sala, a solidão e o silêncio pareciam recompor seus pensamentos. Ele adorava
momentos assim, pois eles o revigoravam.
Minutos se
passam. Então, pegando seu comunicador, Database pergunta:
- Lótus, você
está aí?
Agachada na
plataforma de uma alta chaminé, a garota espia a paisagem abaixo.
- Sim, chefe. O que
foi?
Ele responde:
- Vamos
trabalhar.
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