segunda-feira, 11 de março de 2019

Sonata - Parte 32 - Favores e Segredos



“Ah, a superfície...” pensa Maynard. O mercenário anda por aquele buraco suburbano com sentimentos de admiração e nostalgia. As instalações e habitações improvisadas compunham o ambiente, transmitindo uma sensação de emoção, aventura e perigo. Com sua arma sob o casaco e preparada para atirar, ele passa pelos delinquentes e mendigos com uma pose de quem já fez aquilo umas cem vezes antes. “Alta tecnologia e baixa qualidade de vida” pensa ele, “eu deveria comprar uma casa aqui”.
Parando em frente à casa noturna Mystique, ele a contempla por alguns segundos. Maynard sabe o que acontece dentro daquele lugar. Atrás das batidas dançantes, bebidas exóticas e frequentadores alegres, ali funcionava um “quartel-general” de atividades criminais. O coração negro de Sonata, ou a mente por trás dos pecados, agora esse câncer social deslocou-se para outro lugar, agora mais discreto e fortificado, adotando inclusive uma causa mais “nobre”.
“Submundo” sussurra Maynard, iluminado tenuamente pelos neons no outro lado da rua.
O agente se aproxima da entrada. Um segurança enorme, portando uma prancheta com vários nomes, olha para ele e diz:
- Seu nome, por favor. 
- Maynard Cuisset.
Verificando a lista, o segurança responde:
- Desculpe, mas não encontrei o seu nome na lista.
Jogando um bolo de dinheiro sobre a prancheta, o mercenário diz:
- Olhe de novo.
Sorrindo, o segurança tira a fita da entrada e alegremente responde:
- Bem-vindo ao Mystique, senhor Cuisset. Pode passar.
Maynard calmamente passa pela entrada. Ao chegar à pista de dança, ela se ofusca com os neons coloridos e a música alta. Muitas mulheres olham para aquele homem forte e imponente passando ali e logo se interessam, mas o mercenário, estando ocupado, apenas sorri de volta, prosseguindo em seu caminho.  
No balcão lotado, Maynard chama o barman. Um homem de cavanhaque, tatuagens e piercings, olha para ele e pergunta:
- E então, cara? O que vai ser?
- Estou procurando por Database. – responde ele, gritando um pouco por causa do som alto.
- Base de dados? – ironiza ele – Cara, aqui é a casa noturna Mystique, não o Ministério da Informação.
Insistindo, o mercenário complementa:
- Diga que o agente Maynard Cuisset deseja vê-lo.
“Agente?” pensa o barman. “Esse não é um eufemismo para mercenários?”. Virando-se, ele dirige-se ao vidphone e fala com alguém. Ao ouvir algo, o barman parece se surpreender, arregalando os olhos para Maynard.
Voltando para o mercenário, o barman diz:
- Desculpe o mal entendido, senhor Cuisset. O Database encontra-se no Submundo. Um runner no lado de fora estará esperando para leva-lo.
Agradecendo, Maynard se vira e vai embora.
Em frente ao Mystique, um homem de moicano laranja, óculos azuis e colete sem camisa o espera. Cumprimentando-o, o runner o conduz pelas ruas e becos. Os aerocarros passam soprando um vento frio. Maynard põe as mãos nos bolsos, mas o jovem rapaz caminha de braços abertos, sem incômodo algum.
Entrando em um beco, a entrada do prédio era descendo por uma escada abaixo do piso. Apesar da forte escuridão, o mercenário desce os degraus, dá uma nota de dinheiro ao runner e cordialmente diz:
- Obrigado.
Em seguida ele entra no infame Submundo.

§

De luzes apagadas em sua sala, Database observa atentamente o monitor. O brilhante monitor ilumina seu rosto, permanecendo em silêncio enquanto vê Nathan voltar de sua incursão à sede dos Clérigos do Recomeço.
O rapaz não parece bem, seu semblante é de puro abatimento e tristeza. Os outros runners o acompanham, caminhando logo atrás com suas metralhadoras e fuzis.   
Pegando um telefone, Database vai direto ao assunto sem se identificar.
- Ele chegou.
“Você tem um excelente aliado, Database. É muito corajoso esse seu Inimigo de Estado”.
- Ele apertou o botão? – pergunta ele.
“Certamente! O alvo foi destruído com sucesso”.
- A detonação ocorreu sem problemas?
“Sim, muito potente a bomba que você nos forneceu. Os ateístas provaram a temível ira dos Clérigos do Recomeço”.
Satisfeito, o chefe responde:
- Ótimo.
“Agora que trabalharemos juntos, espero que nossa aliança nos renda bons frutos”.
- Igualmente, Eminência.
“E, conforme combinado, ficaremos de olho no Inimigo de Estado”.
- Mantenha-me informado.
Encerrando a chamada, alguém bate à sua porta. Permitindo a entrada, um runner a abre e então o inusitado visitante entra. Ligando as luzes, Database reconhece seu rosto e, intrigado, não consegue esconder a surpresa.
Nathan caminha pelos corredores. Ainda abatido, ele prefere se reportar imediatamente à Database e encerrar logo a missão. De cabeça baixa olhando para o piso, ele entra na sala de seu chefe e, ao se deparar com o homem ali presente, tem uma exasperada reação.
- Você?!
Sorrindo, o homem responde:
- Olá, Nathan. Sentiu saudades?
Empunhando seu fuzil, ele o aponta para Maynard e diz:
- Afaste-se do Database, agora!
Sarcástico, o mercenário comenta:
- Mas isso é maneira de receber os velhos amigos?
- Amigos?! – indigna-se ele – Você me vendeu para a 4 de Julho como se eu fosse uma mercadoria! E então para os Clérigos do Recomeço. Você não é meu amigo!
Sorrindo, Maynard responde:
- Pois para mim foi o começo de uma bela amizade.
Database finalmente intervém:
- Acalme-se, Nathan. Está havendo um grande mal-entendido aqui.
- Chefe, este homem é altamente perigoso e pode subjugar qualquer pessoa ou lugar com seus truques.
O mercenário sorri em satisfação.
- É... de fato eu posso mesmo.
- Nathan, eu vou ter que pedir para confiar em mim. Abaixe sua arma, por favor.
Hesitante, o rapaz respira fundo e obedece.
- Agora que chegamos a um consenso, você pode nos dizer por que veio aqui, Maynard?
Abanando suas roupas, o mercenário olha ao redor e, amigavelmente, responde:
- Em primeiro lugar, que belo quartel-general você montou aqui, Database. Estou impressionado.
- Fico feliz que tenha gostado. – diz o chefe, indiferente – E então, por que você veio?
- Imaginei que você se adiantaria a responder, “chefe”. Afinal eu tenho uma acusação gravíssima contra você.
- Do que está falando?
Andando pela sala, ele diz:
- Na noite passada eu fui atacado por dois runners. Eles inclusive invadiram meu apartamento, acredita? – comenta ele, humoradamente – Então, respondendo à sua pergunta, sou eu quem te faz outra: Mas que droga, Database! Por que você me atacou?
O chefe ergue a sobrancelha.
- Eu não faço ideia do que está falando, Maynard. Eu nunca te ataquei!
- Eu ouvi seus nomes enquanto me atacavam. O rapaz se chamava Androide e a garota, uma excelente lutadora, por sinal, se chamava Alexia. Você os conhece?
Meneando a cabeça, Database responde:
- Eu nunca ouvi falar.
Encarando-o nos olhos, o mercenário contém seu bom humor por um momento. Ele pergunta:
- Você jura?
Sem desviar o olhar, o chefe responde:
- Eu juro.
- Mesmo, mesmo?
Entediando-se com seu irritante bom humor, Database respira fundo e diz:
- Sim.
Maynard ainda o encara, mas Database se mantém firme. Sendo um perspicaz negociador da superfície, ele sabe que é uma tremenda insensatez se meter com Maynard. Devido à sua reputação e temperamento, o mercenário era perigoso demais.
Conhecendo o chefe do Submundo, Maynard sabia que Database não era o homem certo a se confiar. Ponderando, ele percebe que vai ter que encontrar a resposta sozinho, nem que tenha que revirar o território inteiro de Database para isso.
Desviando o olhar, o mercenário respira fundo e responde:
- Ok, acho que me enganei quanto aos runners. Aqui, tome isso.
Aproximando-se de sua mesa, ele enfia a mão no bolso e pega algo. Nathan, que esteve encarando-o o tempo todo, novamente aponta seu fuzil para Maynard e ordena:
- Para trás!
Levantando sua mão lentamente, ele lhe revela um cartão.
- Acalme-se, garoto. Eu só vim conversar. – olhando para o chefe, ele continua – Fique com o meu número. Se souber de algo, não hesite em me avisar.
Database sorri, ele jamais o avisará de coisa alguma. Maynard sorri também, pois também sabia que isso nunca aconteceria.
- É claro, Maynard. Eu manterei contato.
Com as mãos nos bolsos, ele se aproxima de Nathan e diz:
- Da próxima vez que você for render alguém, certifique-se de que sua arma esteja destravada. – e então ele olha para a lateral do fuzil.
Nathan se intriga. Ao olhar para o destrave, Maynard a agarra pelo cano, a arranca de suas mãos e em seguida a aponta para ele, rápido como um relâmpago. O rapaz arregala seus olhos, totalmente surpreso. Então o mercenário calmamente diz:
- Me procure quando quiser se tornar um atirador de verdade.
Apertando o botão de liberação do cartucho, ele desmunicia o fuzil e puxa a alavanca, liberando a cápsula da câmara de fogo. Então o mercenário se vira e finalmente vai embora.
Vendo aquele homem confiante e seguro de si sair, o rapaz se vê desarmado e sente vergonha de si mesmo. Database percebe a humilhação em seus olhos, mas sem querer bancar o conselheiro paternalista, simplesmente pergunta:
- Você tem algo para me dizer, Nathan?
Saindo de seu transe, o rapaz disfarça suas emoções ruins e se aproxima.
- Database... – começa ele, de cabeça baixa – Temos um novo aliado, os Clérigos do Recomeço aceitaram a aliança.
Ao ouvi-lo, o chefe se encosta em sua cadeira.
- Ora, isso é ótimo! Você teve problemas em convence-los?
Nathan vira seu rosto.
- Não. Ocorreu tudo bem.
Perscrutando seu olhar, o chefe pergunta.
- Você não parece bem, Nathan. Há algo errado?
- Não, chefe. – responde ele, vagamente.
Database insiste:
- Aconteceu algo com os clérigos que você queira me contar, Nathan?
Ainda recluso em seus pensamentos, o rapaz responde:
- Não, chefe. Na verdade... – prossegue ele – Com esse novo aliado, a rebelião está mais perto de acabar. Apenas isso é importante agora.
Apoiando-se na mesa, Database calmamente diz:
- É claro. Eu ficarei aqui se precisar de mim.
Assentindo, Nathan se vira e dirige-se até a porta. Mas antes de sair, ele se lembra de algo e, voltando-se para o chefe, pergunta:
- Database, você por acaso teve notícias de Laura?
Respirando fundo, o chefe pesarosamente responde:
- Ainda não, Nathan. Lamento.
Então o rapaz se fecha novamente, perdendo o último brilho no olhar que ainda lhe havia.
- Eu sei que já disse isso antes, mas... Se você tiver notícias dela, por favor me avise.
Assentindo, o chefe responde:
- Pode confiar em mim, Nathan.
Satisfeito, o rapaz sorri e deixa a sala.
Esperando calmamente ele sair, Database permanece olhando para a porta. Sozinho em sua sala, a solidão e o silêncio pareciam recompor seus pensamentos. Ele adorava momentos assim, pois eles o revigoravam.
Minutos se passam. Então, pegando seu comunicador, Database pergunta:
- Lótus, você está aí?
Agachada na plataforma de uma alta chaminé, a garota espia a paisagem abaixo.
- Sim, chefe. O que foi?
Ele responde:
- Vamos trabalhar.


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