Descendo por uma
escada, os runners chegam ao andar inferior da catedral. Ali eles veem refeitórios,
vestiários, dormitórios e outros espaços adaptados. Assim como a 4 de Julho, o
lugar tinha centenas de computadores, cabos e servidores por toda a parte.
Alojando-os em um
quarto coletivo, os cardeais se despedem e vão embora. Dez minutos depois,
sectárias vestidas de freiras aparecem e lhes servem a refeição. Os
runners aceitam alegremente, mas Nathan ainda desconfia de sua hospitalidade. Após
quase ter seus olhos arrancados por mecanicistas fanáticos, conviver com outra
facção não lhe era fácil, mesmo que o destino da metrópole estivesse em suas
mãos.
Na manhã
seguinte, Nathan se levanta e caminha pela sede dos Clérigos do Recomeço. Eles
parecem seguir uma rotina rígida e disciplinar na catedral. Pela manhã eles
cantam hinos latinos e melancólicos. Muitos varrem o chão e tiram o pó dos
móveis, fazendo a faxina. Operando os computadores, os hackers se incomodam ao
vê-lo observando-os. Aparentemente eles guardavam informações sigilosas em seus
servidores, operando com programas de espionagem.
No refeitório,
alguns fiéis lhe oferecem o café da manhã. Nathan se surpreende com sua amizade
e generosidade. Após a refeição, um homem se aproxima e se oferece falar de sua
religião. O rapaz rapidamente rejeita, irritando-o.
Nathan vê muitos
clérigos encapuzados portando fuzis, eles são os soldados rasos daquela facção.
Os homens de armadura, chamados pelo profeta John August de Paladinos, são
soldados mais fortes e resistentes, sendo os responsáveis pela segurança da
catedral. Os cardeais são sua elite militar, pois portam armas maiores e
demonstram formidável disposição para o combate.
O rapaz se
surpreende ao ver que a força militar dos Clérigos do Recomeço também tem
freiras. Com o manto negro em suas cabeças, elas portam duas metralhadoras
menores, carregando-as em suas pernas. Suas roupas são negras e apertadas,
definindo seus corpos. Ao ver as pernas atléticas e os peitos empinados das
jovens mulheres, Nathan se enche de desejo.
Um paladino se
aproxima e diz:
- O Profeta John
August deseja vê-lo.
Assentindo, ele o
acompanha pelos corredores.
O líder o aguarda
em seu escritório. Ao entrar, Nathan vê uma extensa coleção de livros, uma
longa mesa e robustas cadeiras de madeira. Indicando-lhe o assento, John August
diz:
- Espero que sua
estadia em nossa catedral tenha sido melhor do que com os Trans-humanistas.
Sorrindo, o rapaz
confirma:
- Com certeza.
- Então... –
começa ele – você propõe uma aliança entre o Submundo e a nossa facção?
- Exatamente. Mas
antes de falar nisso, eu prefiro estar na presença dos runners.
O líder ergue sua
sobrancelha. Um paladino se aproxima e sussurra algo em seu ouvido. Verificando
as horas, ele olha para Nathan e diz:
- Me foi
informado que seus companheiros ainda dormem. É com estas pessoas que você
pretende tocar sua rebelião, Nathan? Com irresponsáveis e indolentes?
O rapaz se
envergonha. Então ele os defende, dizendo:
- Perdoe a
impostura deles, Eminência. Os runners costumam trabalhar à noite, por isso
descansam a maior parte do dia.
Ainda com olhar
de reprovação, John August responde:
- Mesmo sabendo
que dias atrás seu líder máximo, o Inimigo de Estado, quase teve seus olhos
arrancados por outra facção, esta é a segurança e proteção que eles pretendem
lhe dar?
Definitivamente
Nathan não esperava ouvir aquilo.
- Concordo com
sua observação. – admite ele.
- Você tem sorte
que os clérigos são caridosos e pacíficos, Inimigo de Estado. Do contrário, nós
teríamos feito o mesmo que os mecanicistas, e por irresponsabilidade de seus
amigos runners, nada iria nos impedir. – repreende ele.
O rapaz ouve
aquilo como se fosse um sermão, mas o líder estava certo, afinal. Cercado de
pessoas mais velhas e corretas do que ele, ele não podia fazer nada além de acatar
em silêncio.
Então... –
recomeça ele, voltando ao assunto – você propõe uma aliança com nossa facção?
- Sim. – responde
ele, com menos entusiasmo.
Com sua resposta,
John August o encara fixamente. Com o péssimo exemplo de seus companheiros, ele
não conseguia mais demostrar segurança.
- Posso te fazer
uma pergunta, senhor Nathan?
Ainda
desconfortável, o rapaz responde:
- Sim.
- Você tem fé?
Nathan se
confunde. Huxley lhe fez uma pergunta semelhante, e ele igualmente não soube
responder.
- Tenho, eu acho.
- Se me permite
perguntar novamente, no que o senhor tem fé, exatamente?
- Tenho fé em um
deus poderoso e invisível que ouça e principalmente atenda às minhas orações.
O rapaz mente.
Ele não conhece nenhum deus específico e tampouco faz orações.
- Entendo. Mas,
se me permite insistir, esse deus “poderoso e invisível” também é
misericordioso e ultimamente “bom”?
Improvisando, ele
responde:
- Sim, ele é
poderoso e bondoso.
- Que bom seria
se todos tivessem sua fé, Nathan. E que todos esses deuses avulsos e desconexos
que as pessoas acreditam se convergissem no seu deus poderoso e bom.
John August
sorri. Ainda confuso, o rapaz sorri de volta. O líder faz outra pergunta:
- Você acredita
que a ausência da fé também é uma forma de fé? Ou seja, crer na descrença, na
inexistência de deus?
Soando como um
paradoxo, o rapaz se intriga.
- Não me parece
fazer muito sentido.
- Existem pessoas
– prossegue ele – que repudiam a fé e ferozmente a abominam. E essas pessoas
combatem o mero fideísmo com violência, ódio e derramamento de sangue. Mas elas
se esquecem de uma coisa: ter fé é um atributo natural da humanidade, e
extirpar essa característica humana seria o mesmo que extirpar o próprio Homem.
– então John August explica – Crença e descrença são lados opostos da mesma
moeda. Crer significa admitir a existência de um deus, com a possibilidade dele
não existir, e descrer admitir que nada existe, com a probabilidade de um deus,
de fato, existir. Consegue compreender isto?
Achando aquilo
muito interessante, Nathan responde:
- Certamente.
- Infelizmente –
continua ele – quem combate a fé também combate a nossa organização, e esses
arruaceiros e delinquentes nos desprezam, atrapalhando nosso trabalho e nos
causando sofrimento. Semelhante às corporações, estas pessoas promovem o
materialismo sobre a espiritualidade, mas de maneira terrivelmente mais
violenta. De fato, eles são os fantoches sanguinários do aparato corporativo,
combatendo e anulando tudo o que representamos.
O rapaz se
assusta com as palavras do líder.
- E quem são
essas pessoas, seus mais rigorosos inimigos? – pergunta ele.
Apertando um
botão em sua mesa, um monitor na parede se acende. Exibindo imagens de um
circuito de segurança, John August apenas diz:
- Observe.
As imagens exibem
o que parece ser uma escola. Nathan vê crianças e mulheres, provavelmente as
professoras, guindo-as pelo pátio. De repente a câmera treme e um clarão aparece,
seguido de uma horrível onda de poeira. Um minuto depois, a poeira se dissipa e
é possível ver. Arregalando os olhos, Nathan se choca ao ver todos caídos no
chão, com suas roupas parcialmente queimadas e cobertas de sujeira. Algumas
pessoas aparecem, correndo ao seu socorro. O rapaz vê os socorredores tentando
ressuscitar as crianças fazendo massagem cardíaca. As mulheres que
sobreviveram, porém, choram desesperadas abraçadas aos seus filhos.
A imagem se
encerra. Ainda chocado, lágrimas se formam em seus olhos e Nathan chora
intensamente diante do líder e seus clérigos.
- Nosso inimigo –
responde August – é a facção conhecida como Frente Ateísta.
Recuperando-se
lentamente, o rapaz pergunta:
- Por quê? Por
que eles fizeram isso?
- Esta escola
está localizada em nosso território. Os ateístas acreditam que estamos
doutrinando as crianças, recrutando-as desde a infância e assim arregimentando mais
simpatizantes à nossa causa. Eles acreditam que é necessário eliminar a ameaça
desde cedo, diminuindo nosso efetivo e poupando-lhes confrontos futuros. São
sociopatas, assassinos maquiavélicos convencidos de que os fins justificam os
meios.
- Como eles podem
ser tão cruéis?
- É uma tática de
guerra, uma estratégia. Eles querem nos desencorajar e nos desmoralizar através do
terror.
Lamentando-se, o
rapaz sussurra:
- Eu não
acredito...
- Você nos disse
que nos propõe uma aliança, não é mesmo? Então me responda uma coisa, senhor
Nathan: até onde você iria para acabar com essa rebelião?
Ainda revoltado
com o vídeo, Nathan responde:
- Eu faria o que
fosse preciso!
Sorrindo, John
August lhe faz um olhar satisfeito.
- Nós temos uma
bomba plantada no território deles, os ateístas. Esse ataque será nossa
resposta, nossa vingança pelas vítimas da escola e por tantos outros
assassinados por nossos inimigos. Responderemos à altura explodindo um ponto
estratégico onde eles se encontram, e como nós sangramos da última vez, desta
vez eles sangrarão.
O rapaz protesta.
- Vocês vão se
vingar? E quanto a bondade e o perdão? Vocês não ensinam isso sobre o seu deus?
- Nosso deus é
amor, mas também é justiça e juízo. Não confunda seu caráter quando se tratar de retribuição. – repreende o líder – Se você quiser uma aliança conosco, terá de nos
acompanhar quando detonarmos a bomba, não apenas como um espectador, mas para
apertar o botão. O que me diz?
Nathan não
consegue acreditar no que ouve. Eles estão querendo usá-lo para cometer
assassinato e terrorismo.
- Eu nunca faria
isso.
- Pense bem,
Inimigo de Estado, pois foi você quem veio nos pedir ajuda. Ademais, sua
rebelião mata muito mais gente por dia, e se vingar de uns fanáticos
extremistas que matam crianças por uma ideologia violenta não pode ser visto
como moralmente ruim.
John August tinha
razão. Indiretamente Nathan tinha matado mais em sua rebelião do que os terroristas. Sem escolha, ele pesarosamente responde:
- Está bem. Eu
irei com vocês.
- Ótimo. – comemora
o líder. Levantando-se, ele chama seus cardeais e diz – Minha equipe irá
acompanha-lo agora. Nos vemos depois.
§
Em um furgão com
o profeta John August e mais três paladinos, Nathan segue em direção ao Setor
F. Os runners seguem em um aerocarro atrás, escoltados por outros
clérigos. Segurando o detonador, o objeto metálico e cilíndrico pesa em suas
mãos.
Parando o furgão
no ar, os paladinos indicam o local da detonação. Pela janela, o rapaz vê uma
megatorre interligada por passarelas, nada de incomum. Um paladino diz:
- A bomba está
naquele andar. – ele lhe aponta para o edifício abaixo – Ao apertar o botão,
ela imediatamente explodirá.
O dia estava
movimentado. Transeuntes passavam e aerocarros transitavam intensamente. Hesitante,
o rapaz pergunta:
- Quem frequenta
aquele andar do edifício?
O paladino
simplesmente responde:
- Terroristas.
O rapaz está
inseguro de si, suor escorre e suas mãos tremem. Embora sem intenção, ele já
matou gente, mas nunca praticando terrorismo. “Maldita rebelião que me
transformou em uma pessoa assim” pensa ele. Aproximando-se, John August o
persuade dizendo:
- Lembre-se das
crianças, Nathan. Lembre-se das vítimas. Seu sangue clama por justiça... e
Vingança!
Pressionado, ele
respira fundo, fecha seus olhos e, tateando o botão, finalmente o aperta.
Ocorre a
explosão. As labaredas infernais se expelem das janelas estilhaçadas, subindo e
se expandindo pelos ares. A onda de choque se alastra pelo céu, estremecendo
inclusive o furgão. Aos poucos, do fogo vívido sobe a fumaça, aterrorizando a
paisagem com sua aparência negra. Enquanto os pedaços voam, o tempo parece
passar mais devagar.
Paralisado,
Nathan se hipnotiza com as chamas dançantes. As pessoas correm pelas
passarelas, os aerocarros desviam de direção e os gritos atormentam o ambiente.
Um paladino então diz:
- Temos que ir.
O furgão se
movimenta, tirando o rapaz de seu transe. Enquanto sobrevoa ao redor, Nathan
tem uma terrível surpresa. No andar em chamas, ele vê um letreiro escrito
“hospital”. Arregalando os olhos, ele deixa o detonador cair de suas mãos.
Percebendo seu choque, John August sorri dizendo:
- Parabéns,
Nathan. Você se tornou a ira de Deus.
Estarrecido, o
rapaz apenas ouve sem conseguir falar nada.
§
Em um local
seguro, o furgão e os aerocarros estacionam. Agora recuperado do evento
anterior, Nathan abre a porta do veículo e desce. Mil pensamentos passam por
sua cabeça, ele sentia nojo e desprezo de si mesmo. Mas, para sua lamentação,
ainda havia um trabalho a ser feito.
- E então? –
pergunta ele, olhando para John August – temos nossa aliança?
Com seriedade e
convicção, o líder responde:
- Eu declaro
diante de Deus que está formada uma aliança entre nossa facção e o Submundo.
Nathan tenta
agradecer, mas as palavras morrem em sua garganta. Mas da
indignação outras se formam e, tomando impulso para sair, ele pergunta:
- Responda-me uma
coisa, profeta John August. Quem é o seu deus?
Intrigado, o
líder sorri.
- O meu deus... –
responde ele, antes de fecharem a porta – é o deus dos Clérigos do Recomeço.
E então o furgão
levanta voo, se adequa às vias virtuais e eles vão embora.
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