Novamente deitado
em uma mesa cirúrgica, os puristas cuidam das feridas de Nathan. O rapaz teve
várias fraturas pela perna direita, mas graças aos seus avançados sistemas de
regeneração celular e restauração óssea, Nathan estará curado em um décimo do
tempo.
Movendo seus
braços, ele percebe que não está mais amarrado como antes. O rapaz se felicita
ao saber que, diferente dos trans-humanistas, os puristas não querem arrancar
seus olhos e implantar um dispositivo capaz de transforma-lo em um morto-vivo.
Observando-o de
longe, Laura pensa em seu amigo Vertigo. O hacker não voltou com eles. A
decisão da garota foi difícil, mas – confiando na capacidade e experiência de
seu amigo – ela escolheu por salvar Nathan e deixa-lo para trás. Mas agora essa
decisão pesava em sua mente e ela se preocupa.
O celular de
Laura toca. Ao ver o vídeo-chamada, ela o atende.
- Oi, Database.
A face de
Database aparece iluminada por neons púrpuras.
“Laura, você está
bem?”.
Parecia legítima
sua preocupação. A runner se surpreende.
- Sim, chefe. Eu
estou bem.
“Você deve estar
muito orgulhosa, não? Trabalhando para os nazistas da fisiologia humana”.
- Eu sou uma
runner, Database. Eu trabalho para quem me pagar. Aliás, eu não estou aqui por
nenhum serviço, eu vim para resgatar o Vertigo.
O chefe sorri.
“E você foi pedir
ajuda justamente para os puristas? Não haviam fanáticos mais civilizados e
razoáveis para você procurar?”.
- E o que você
queria que eu fizesse? Esperasse você decidir como iríamos reagir?
“É claro. Eu iria
encontrar um jeito mais prudente de resolver isso”.
- Como? Pedindo
ajuda à 4 de Julho? Chefe, eles mal estão se aguentando em pé após o confronto
com a Polícia. E os puristas são inimigos mortais dos Trans-humanistas, não
havia ninguém mais ideal para isso.
“Ainda assim,
pedir ajuda aos puristas foi um pouco irresponsável. O fanatismo dessa facção
é muito volátil. Expor o Submundo nos deixará vulneráveis a esses extremistas.
Eu mesmo ia alertar o Nathan quando ele os contatasse pessoalmente”.
Mantendo-se
firme, Laura responde:
- Lamento, mas já
está feito. A única coisa que eu pensei era que Vertigo estava nas mãos de
outros extremistas, iguais ou piores a esses, e em situações assim atrasos
podem ser fatais.
Database
concorda. Mudando de assunto, ele pergunta:
“É verdade o que eu
ouvi? Que os Trans-humanistas iam implantar um sistema de controle mental em Nathan?”.
- Sim. Se eu não
chegasse a tempo, o Inimigo de Estado seria um fantoche na mão dos mecanicistas agora.
O chefe parece se
consternar.
“E quanto a
Vertigo? Ele está com você?”.
A garota lamenta:
- Não. Houve confrontos
e Nathan acabou gravemente ferido. Tive que socorre-lo e deixar Vertigo para
trás.
“E onde Vertigo
está agora?”
- Eu não sei.
Pesaroso,
Database responde:
“Laura, eu não
quero parecer insensível, mas a rebelião precisa do Inimigo de Estado para prosseguir.
Sem ele, nossa luta estará fadada ao fracasso. Lamento pelo desaparecimento de
Vertigo, mas ao salvar Nathan você agiu bem”.
- Eu sei. Essa
“luta” é pela salvação de toda metrópole, mas também
parece corresponder bem aos egoísmo de alguns megalomaníacos por aí.
Database ri.
“Pensaremos em
encontrar o Vertigo depois, está bem? Estarei esperando-os no Submundo. Te vejo
depois, Lótus”.
E então o chefe rapidamente
encerra a ligação. Laura rosna de ódio, pois ele fez de propósito para ela não
ter tempo de corrigi-lo como sempre fazia.
Nasier se
aproxima. Parando ao seu lado, ele comenta:
- Apesar dos
ferimentos, o Submundo não precisa se preocupar. O Inimigo de Estado vai ficar
bem.
A garota não se
importa.
- Bom para eles.
- Eu suponho que
ele tenha uma aliança a nos propor, não é mesmo?
Sem nenhum
interesse, ela responde:
- Talvez.
- Talvez...? –
repete ele.
- Eu não sei,
Nasier. É melhor você perguntar isso direto para ele.
O líder sorri.
- De fato. Quer
me acompanhar enquanto tratamos do assunto?
- Não. – responde
ela, pensando em outros assuntos – Daqui a pouco eu tenho que ir.
- Vai deixar o
Inimigo de Estado sozinho? – intriga-se ele.
- Eu tenho cara
de babá, por acaso?
Então Laura lhe
dá as costas e se afasta. Nasier diz:
- Não se esqueça
do nosso acordo, Laura. E principalmente do que eu já lhe disse.
Nasier se refere
ao castigo dos traidores. Ela responde:
- Eu não esqueci.
Aproximando da
mesa cirúrgica, o líder se apresenta oferecendo-lhe a mão. Nathan ainda estava
atordoado, mas lhe estende seu braço para cumprimenta-lo. Ao ver que era um
braço biomecânico, ele contém a repugnância, se controla e diplomaticamente
aperta sua mão. Os médicos se surpreendem.
- Senhor Nathan,
creio que você tem algo a nos propor.
- Onde eu estou?
– pergunta ele, de antemão.
- Você está no
distrito Conaissance, em meu hospital. Bem-vindo à sede da Resistência Purista.
O rapaz olha ao
redor e vê os fanáticos ao redor de si. Ele se assusta.
- Senhor Nasier,
quanto ao que aconteceu no distrito industrial Phalanx, eu não tive culpa. Eu
estava no lugar errado e na hora errada. Aquilo foi um acidente.
Ao relembra-lo,
os soldados puristas odiosamente o encaram. Levantando as mãos, o líder
responde:
- Não se
preocupe, Nathan. Isso é passado. Ademais, após o insucesso de meu agente, eu
nunca quis machucar você.
Os médicos se
entreolham. Nasier estava mentindo.
- Bem, eu não
gostaria de conversar nessas condições, mas como o senhor já deve saber, eu
tive complicações na sede dos Trans-humanistas. – comenta ele, sorrindo, mas os
puristas se mantém friamente sérios, constrangendo-o – O que eu lhes
proponho é uma aliança entre a Resistência Purista e o Submundo.
O líder olha para
seus correligionários, levantando um silêncio desconfortável no local.
- Uma aliança? – pergunta
ele, por fim – Uma aliança entre os runners delinquentes e rebelados do Submundo, e a filantrópica e honrosa facção da Resistência Purista?
Sentindo-se ridicularizado, o rapaz espera ser escarnecido, mas não é isso o que acontece. Eles se mantém friamente
quietos. Nathan então confirma:
- Exatamente.
Ponderando, o
líder responde:
- Em nome da
Resistência Purista, nós aceitamos sua proposta.
O rapaz se
intriga. “Simples assim?” pensa ele.
- Então temos uma
aliança?
- Certamente.
Acreditamos que uma aliança entre o Submundo e a Resistência Purista será
benéfica para ambos.
Nathan não
consegue esconder a surpresa.
- Bem... – começa
ele – Em nome do Submundo, nós agradecemos sua aceitação.
Então,
finalmente, todos sorriem. Mas Nathan, ao vê-los rindo, acha tudo aquilo
medonho e preferiria que eles tivessem permanecido sérios.
§
Horas depois,
passado o efeito da anestesia, Nathan nota algo estranho em sua aparência. Ele
estava usando uma roupa verde, branca e prateada, o exótico uniforme da
Resistência Purista. Em seu peito há o emblema da facção, o desenho simplório
de um homem de braços abertos.
Em uma pequena
mesa ao lado da cama, ele vê um panfleto. Ao pegá-lo, Nathan lê o título:
"Introdução ao Humanismo”. Ele entendeu a mensagem, eles estavam tentando
doutrina-lo.
A câmera no alto
da parede o monitorava, eles sabiam que Nathan estava acordado. Aproximando-se
com dificuldade da porta, ele aperta o botão, mas ela não se abre. Irritado,
ele bate com os punhos fechados na folha, incitando-os a abri-la. Então ele
ouve a porta se destrancar.
A
porta se desliza para cima. Ao sair, ele caminha pelo hospital. Os sectários
olham para ele, os médicos, os enfermeiros, os soldados puristas... Mas ninguém
lhe diz nada. Com suas armas em punho, alguns guardas caminham em sua direção,
mas passam por ele e vão embora. Confuso, o rapaz continua seu caminho e dirige-se
até a saída.
Parando em um
balcão, ele vê uma recepcionista e pergunta:
- Vocês sabem onde
está a Laura?
Confusa, ela
responde:
- Quem?
- Ele está
falando da runner. – comenta um segurança próximo.
- No terraço. –
responde ela.
Indicando-lhe um
elevador, Nathan agradece e então deixa o saguão do hospital.
Pelos monitores,
duas pessoas o observam da sala de segurança.
- Devo dar a
ordem, senhor?
- Não. – responde
Nasier – Deixo-o que vá. Já conseguimos nossa aliança, o próximo passo virá a
seguir.
- E quanto à
runner? Sua parte no acordo é extremamente valiosa para a nossa causa.
- Não se preocupe.
– tranquiliza o líder – Conseguiremos o que queremos, no tempo certo.
§
No terraço do
hospital, Laura observa a paisagem à frente. Anoitecia no distrito Conaissance
e em poucas horas a runner sairia para trabalhar. Ela sempre preferiu os trabalhos
à noite, pois além de gostar de se mesclar à escuridão, a temperatura era mais
agradável quando as megatorres bloqueavam a luz do sol.
Caminhando com
dificuldade, Nathan se aproxima atrás dela.
- Laura?
Fazendo uma
expressão de tédio, a garota diz:
- Oi, Nathan.
- Você já vai?
Sem olha-lo nos
olhos, ela responde:
- Sim.
- Eu só queria
agradece-la – começa ele – por ter me socorrido na sede dos Trans-humanistas.
- Não precisa. Eu
fui lá por Vertigo, não por você.
Com a dura
resposta, o rapaz se assusta.
- Mas você
escolheu a mim, me socorrendo no lugar de Vertigo.
- Vertigo é um
hacker experiente e sabe se cuidar, e não estava tão ferido quanto você.
- Mas ainda assim
você se importou. Você podia ter me deixado lá, mas não me deixou.
Ainda sem olha-lo
nos olhos, ela responde:
- Então é melhor
você agradecer a ele, pois foi ele quem me pediu para socorre-lo.
Irritado, o rapaz
pergunta:
- Você é sempre
assim tão fria?
Ainda entediada,
ela responde:
- Dependendo da
pessoa, sim.
- Eu só queria
agradece-la por salvar a minha vida. Só isso. Não precisa ficar sempre na
defensiva.
A garota ri.
- E por acaso eu
preciso me defender de você?
Confuso, Nathan
responde:
- Não, mas... Eu
só acho que não vai doer se você me der um sorriso.
Cansada daquela
conversa, Laura diz:
- Eu tenho que
ir.
- Não, você não
vai!
Em uma atitude
impulsiva e inesperada, o rapaz a segura pelo braço. Arregalando os olhos,
Laura vira sua cabeça e, quase vociferando, diz:
- Tire sua mão de
mim, senão eu a quebro.
- Então quebre,
então! – exclama ele, assustando-a – Pode quebrar minha mão, minha cara, meu
corpo inteiro se você quiser! Mas me deixe morrer desta vez, sem me
socorrer por necessidade ou pena como fez da última vez! Mas agora você vai
ficar aqui e você vai me ouvir!
Puxando seu braço
de volta, a garota – um pouco intrigada – responde:
- Não seja
ridículo! Eu não tenho nada para falar com você. Você é só mais um garoto fraco
dos níveis superiores, que sem merecer se tornou o Inimigo de Estado. A
rebelião precisa de alguém forte, decido, ou seja um líder de verdade.
Sempre que podia,
Laura o desprezava. Afrontando-a, Nathan retruca:
- Que também não
é você. Eu ouvi boatos, Laura, e sei que você esconde algo em seu passado. Você
não é tão forte quanto parece. Ou será que devo te chamar por seu codinome? "Lótus"...?
Imediatamente a
garota se enfurece. Fechando o punho, ela se prepara para soca-lo, mas ao olhar para seu rosto ela hesita. Algo no olhar de Nathan a aplacava.
- Eu não tenho
que dar satisfações a você! – responde ela, toda confusa – Eu estou indo.
Salvar você foi um erro.
Caminhando para o
parapeito, o rapaz diz:
- Ora, vejam só!
A corajosa e durona runner foge mais uma vez! Vá, Laura, fuja! Pois fique você
sabendo que a única pessoa capaz de te fazer fugir sou eu!
Ao entrar em sua
mente, a garota subitamente para. Mais uma vez irritada, ela se vira e diz:
- Como você...
Mas ela não pôde
terminar sua fala. Aproximando-se por detrás dela, Nathan a segura pela cintura
e a beija. No começo ela tenta empurra-lo, mas seu corpo se amolece e ela o corresponde, tendo sua língua e seus lábios finalmente
experimentados pelo apaixonado rapaz.
A garota não
entende. Nathan era tudo o que ela desprezava em um homem, mas no redemoinho de
emoções confusas e sentimentos sinceros, ela não conseguia pensar com clareza.
Naquele momento tudo era o mais sublime prazer, puro e sem maldade, que ela experimentava na vida pela primeira vez.
O tempo passa
devagar, segundos ou minutos, ela não podia dizer. As mãos firmes de Nathan a puxam
para mais perto, as mãos da garota tocam suas costas e sua nuca, ela sentia um
calor mais forte que o fogo que a queimava, mas não doía.
Ao retornar a
razão, ela o empurra e finalmente se desvencilha. Ela enxuga os lábios com a
roupa, mas vê Nathan lambendo os seus, não querendo perder nada do néctar da
garota.
Envergonhada, ela
tenta disfarçar a timidez dizendo:
- Isso foi um
erro.
Mas o rapaz não
responde nada, ele apenas fica contemplando-a em silêncio. É então que Laura
percebe. Os olhos do rapaz tinham docilidade, ternura e principalmente
inocência, algo que – devido à adversidade do ambiente – não se encontravam na
superfície. De fato, a superfície era um local para pessoas duras, perspicazes
e embrutecidas pelas ásperas condições de sobrevivência, mas Nathan não era de
lá. Vindo dos níveis superiores, o rapaz cresceu longe dessa triste
marginalidade, preservando em si a decência de quem tinha um coração bom.
Os olhos de
Nathan irradiavam amabilidade, e essa inextinguível luz se alastrava por todo o
seu rosto. Pela primeira vez Laura pôde ver quem era o rapaz por trás do
Inimigo de Estado, o jovem e alegre Nathan.
Mas a garota não
compartilhava dessa luz. Ela era mais uma nativa dos níveis inferiores, atribulada e
solitária, crescendo longe dos confortos que a sociedade corporativa podia lhe
dar. Como tudo o que cai do topo das megatorres e alcança o solo, ela era uma
rejeitada da superfície, um dos milhares de detritos que são lançados lá
embaixo para apodrecer. Laura não era um produto da rebelião e sim um
subproduto da sociedade que se esforçava para oculta-la, e dela se esquecer.
Sendo uma
rejeitada social, criada em um local opressivo e com objetivos pessoais bem
egoístas, a garota se lamenta por dentro.
- Eu tenho que
ir. – repete ela.
A garota lhe dá as
costas. Nathan, do fundo de seu coração, diz:
- Eu te amo.
Lembrando-se dos
fantasmas que assombram sua vida, Laura olha para trás e
pergunta:
- Para quê?
Nathan responde:
- Para sempre.
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