quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Sonata - Parte 28 - Para Sempre



Novamente deitado em uma mesa cirúrgica, os puristas cuidam das feridas de Nathan. O rapaz teve várias fraturas pela perna direita, mas graças aos seus avançados sistemas de regeneração celular e restauração óssea, Nathan estará curado em um décimo do tempo.
Movendo seus braços, ele percebe que não está mais amarrado como antes. O rapaz se felicita ao saber que, diferente dos trans-humanistas, os puristas não querem arrancar seus olhos e implantar um dispositivo capaz de transforma-lo em um morto-vivo.
Observando-o de longe, Laura pensa em seu amigo Vertigo. O hacker não voltou com eles. A decisão da garota foi difícil, mas – confiando na capacidade e experiência de seu amigo – ela escolheu por salvar Nathan e deixa-lo para trás. Mas agora essa decisão pesava em sua mente e ela se preocupa.
O celular de Laura toca. Ao ver o vídeo-chamada, ela o atende.
- Oi, Database.
A face de Database aparece iluminada por neons púrpuras.
“Laura, você está bem?”.
Parecia legítima sua preocupação. A runner se surpreende.
- Sim, chefe. Eu estou bem.
“Você deve estar muito orgulhosa, não? Trabalhando para os nazistas da fisiologia humana”.
- Eu sou uma runner, Database. Eu trabalho para quem me pagar. Aliás, eu não estou aqui por nenhum serviço, eu vim para resgatar o Vertigo.
O chefe sorri.
“E você foi pedir ajuda justamente para os puristas? Não haviam fanáticos mais civilizados e razoáveis para você procurar?”.
- E o que você queria que eu fizesse? Esperasse você decidir como iríamos reagir?
“É claro. Eu iria encontrar um jeito mais prudente de resolver isso”.
- Como? Pedindo ajuda à 4 de Julho? Chefe, eles mal estão se aguentando em pé após o confronto com a Polícia. E os puristas são inimigos mortais dos Trans-humanistas, não havia ninguém mais ideal para isso.
“Ainda assim, pedir ajuda aos puristas foi um pouco irresponsável. O fanatismo dessa facção é muito volátil. Expor o Submundo nos deixará vulneráveis a esses extremistas. Eu mesmo ia alertar o Nathan quando ele os contatasse pessoalmente”.
Mantendo-se firme, Laura responde:
- Lamento, mas já está feito. A única coisa que eu pensei era que Vertigo estava nas mãos de outros extremistas, iguais ou piores a esses, e em situações assim atrasos podem ser fatais.
Database concorda. Mudando de assunto, ele pergunta:
“É verdade o que eu ouvi? Que os Trans-humanistas iam implantar um sistema de controle mental em Nathan?”.
- Sim. Se eu não chegasse a tempo, o Inimigo de Estado seria um fantoche na mão dos mecanicistas agora.
O chefe parece se consternar.
“E quanto a Vertigo? Ele está com você?”.
A garota lamenta:
- Não. Houve confrontos e Nathan acabou gravemente ferido. Tive que socorre-lo e deixar Vertigo para trás.
“E onde Vertigo está agora?”
- Eu não sei.
Pesaroso, Database responde:
“Laura, eu não quero parecer insensível, mas a rebelião precisa do Inimigo de Estado para prosseguir. Sem ele, nossa luta estará fadada ao fracasso. Lamento pelo desaparecimento de Vertigo, mas ao salvar Nathan você agiu bem”.
- Eu sei. Essa “luta” é pela salvação de toda metrópole, mas também parece corresponder bem aos egoísmo de alguns megalomaníacos por aí.
Database ri.
“Pensaremos em encontrar o Vertigo depois, está bem? Estarei esperando-os no Submundo. Te vejo depois, Lótus”.
E então o chefe rapidamente encerra a ligação. Laura rosna de ódio, pois ele fez de propósito para ela não ter tempo de corrigi-lo como sempre fazia.
Nasier se aproxima. Parando ao seu lado, ele comenta:
- Apesar dos ferimentos, o Submundo não precisa se preocupar. O Inimigo de Estado vai ficar bem.
A garota não se importa.
- Bom para eles.
- Eu suponho que ele tenha uma aliança a nos propor, não é mesmo?
Sem nenhum interesse, ela responde:
- Talvez.
- Talvez...? – repete ele.
- Eu não sei, Nasier. É melhor você perguntar isso direto para ele.
O líder sorri.
- De fato. Quer me acompanhar enquanto tratamos do assunto?
- Não. – responde ela, pensando em outros assuntos – Daqui a pouco eu tenho que ir.
- Vai deixar o Inimigo de Estado sozinho? – intriga-se ele.
- Eu tenho cara de babá, por acaso?
Então Laura lhe dá as costas e se afasta. Nasier diz:
- Não se esqueça do nosso acordo, Laura. E principalmente do que eu já lhe disse.
Nasier se refere ao castigo dos traidores. Ela responde:
- Eu não esqueci.
Aproximando da mesa cirúrgica, o líder se apresenta oferecendo-lhe a mão. Nathan ainda estava atordoado, mas lhe estende seu braço para cumprimenta-lo. Ao ver que era um braço biomecânico, ele contém a repugnância, se controla e diplomaticamente aperta sua mão. Os médicos se surpreendem.
- Senhor Nathan, creio que você tem algo a nos propor.
- Onde eu estou? – pergunta ele, de antemão.
- Você está no distrito Conaissance, em meu hospital. Bem-vindo à sede da Resistência Purista.
O rapaz olha ao redor e vê os fanáticos ao redor de si. Ele se assusta.
- Senhor Nasier, quanto ao que aconteceu no distrito industrial Phalanx, eu não tive culpa. Eu estava no lugar errado e na hora errada. Aquilo foi um acidente.
Ao relembra-lo, os soldados puristas odiosamente o encaram. Levantando as mãos, o líder responde:
- Não se preocupe, Nathan. Isso é passado. Ademais, após o insucesso de meu agente, eu nunca quis machucar você.
Os médicos se entreolham. Nasier estava mentindo.
- Bem, eu não gostaria de conversar nessas condições, mas como o senhor já deve saber, eu tive complicações na sede dos Trans-humanistas. – comenta ele, sorrindo, mas os puristas se mantém friamente sérios, constrangendo-o – O que eu lhes proponho é uma aliança entre a Resistência Purista e o Submundo.
O líder olha para seus correligionários, levantando um silêncio desconfortável no local.
- Uma aliança? – pergunta ele, por fim – Uma aliança entre os runners delinquentes e rebelados do Submundo, e a filantrópica e honrosa facção da Resistência Purista?
 Sentindo-se ridicularizado, o rapaz espera ser escarnecido, mas não é isso o que acontece. Eles se mantém friamente quietos. Nathan então confirma:
- Exatamente.
Ponderando, o líder responde:
- Em nome da Resistência Purista, nós aceitamos sua proposta.
O rapaz se intriga. “Simples assim?” pensa ele.
- Então temos uma aliança?
- Certamente. Acreditamos que uma aliança entre o Submundo e a Resistência Purista será benéfica para ambos.  
Nathan não consegue esconder a surpresa.
- Bem... – começa ele – Em nome do Submundo, nós agradecemos sua aceitação.
Então, finalmente, todos sorriem. Mas Nathan, ao vê-los rindo, acha tudo aquilo medonho e preferiria que eles tivessem permanecido sérios.

§

Horas depois, passado o efeito da anestesia, Nathan nota algo estranho em sua aparência. Ele estava usando uma roupa verde, branca e prateada, o exótico uniforme da Resistência Purista. Em seu peito há o emblema da facção, o desenho simplório de um homem de braços abertos.
Em uma pequena mesa ao lado da cama, ele vê um panfleto. Ao pegá-lo, Nathan lê o título: "Introdução ao Humanismo”. Ele entendeu a mensagem, eles estavam tentando doutrina-lo.
A câmera no alto da parede o monitorava, eles sabiam que Nathan estava acordado. Aproximando-se com dificuldade da porta, ele aperta o botão, mas ela não se abre. Irritado, ele bate com os punhos fechados na folha, incitando-os a abri-la. Então ele ouve a porta se destrancar.
A porta se desliza para cima. Ao sair, ele caminha pelo hospital. Os sectários olham para ele, os médicos, os enfermeiros, os soldados puristas... Mas ninguém lhe diz nada. Com suas armas em punho, alguns guardas caminham em sua direção, mas passam por ele e vão embora. Confuso, o rapaz continua seu caminho e dirige-se até a saída.
Parando em um balcão, ele vê uma recepcionista e pergunta:
- Vocês sabem onde está a Laura?
Confusa, ela responde:
- Quem?
- Ele está falando da runner. – comenta um segurança próximo.
- No terraço. – responde ela.
Indicando-lhe um elevador, Nathan agradece e então deixa o saguão do hospital.
Pelos monitores, duas pessoas o observam da sala de segurança.
- Devo dar a ordem, senhor?
- Não. – responde Nasier – Deixo-o que vá. Já conseguimos nossa aliança, o próximo passo virá a seguir.
- E quanto à runner? Sua parte no acordo é extremamente valiosa para a nossa causa.
- Não se preocupe. – tranquiliza o líder – Conseguiremos o que queremos, no tempo certo.

§

No terraço do hospital, Laura observa a paisagem à frente. Anoitecia no distrito Conaissance e em poucas horas a runner sairia para trabalhar. Ela sempre preferiu os trabalhos à noite, pois além de gostar de se mesclar à escuridão, a temperatura era mais agradável quando as megatorres bloqueavam a luz do sol.
Caminhando com dificuldade, Nathan se aproxima atrás dela.
- Laura?
Fazendo uma expressão de tédio, a garota diz:
- Oi, Nathan.
- Você já vai?
Sem olha-lo nos olhos, ela responde:
- Sim.
- Eu só queria agradece-la – começa ele – por ter me socorrido na sede dos Trans-humanistas.
- Não precisa. Eu fui lá por Vertigo, não por você.
Com a dura resposta, o rapaz se assusta.
- Mas você escolheu a mim, me socorrendo no lugar de Vertigo.
- Vertigo é um hacker experiente e sabe se cuidar, e não estava tão ferido quanto você.
- Mas ainda assim você se importou. Você podia ter me deixado lá, mas não me deixou.
Ainda sem olha-lo nos olhos, ela responde:
- Então é melhor você agradecer a ele, pois foi ele quem me pediu para socorre-lo.
Irritado, o rapaz pergunta:
- Você é sempre assim tão fria?
Ainda entediada, ela responde:
- Dependendo da pessoa, sim.
- Eu só queria agradece-la por salvar a minha vida. Só isso. Não precisa ficar sempre na defensiva.
A garota ri.
- E por acaso eu preciso me defender de você?
Confuso, Nathan responde:
- Não, mas... Eu só acho que não vai doer se você me der um sorriso.
Cansada daquela conversa, Laura diz:
- Eu tenho que ir.
- Não, você não vai!
Em uma atitude impulsiva e inesperada, o rapaz a segura pelo braço. Arregalando os olhos, Laura vira sua cabeça e, quase vociferando, diz:
- Tire sua mão de mim, senão eu a quebro.
- Então quebre, então! – exclama ele, assustando-a – Pode quebrar minha mão, minha cara, meu corpo inteiro se você quiser! Mas me deixe morrer desta vez, sem me socorrer por necessidade ou pena como fez da última vez! Mas agora você vai ficar aqui e você vai me ouvir!
Puxando seu braço de volta, a garota – um pouco intrigada – responde:
- Não seja ridículo! Eu não tenho nada para falar com você. Você é só mais um garoto fraco dos níveis superiores, que sem merecer se tornou o Inimigo de Estado. A rebelião precisa de alguém forte, decido, ou seja um líder de verdade.
Sempre que podia, Laura o desprezava. Afrontando-a, Nathan retruca:
- Que também não é você. Eu ouvi boatos, Laura, e sei que você esconde algo em seu passado. Você não é tão forte quanto parece. Ou será que devo te chamar por seu codinome? "Lótus"...?
Imediatamente a garota se enfurece. Fechando o punho, ela se prepara para soca-lo, mas ao olhar para seu rosto ela hesita. Algo no olhar de Nathan a aplacava.
- Eu não tenho que dar satisfações a você! – responde ela, toda confusa – Eu estou indo. Salvar você foi um erro.
Caminhando para o parapeito, o rapaz diz:
- Ora, vejam só! A corajosa e durona runner foge mais uma vez! Vá, Laura, fuja! Pois fique você sabendo que a única pessoa capaz de te fazer fugir sou eu!
Ao entrar em sua mente, a garota subitamente para. Mais uma vez irritada, ela se vira e diz:
- Como você...
Mas ela não pôde terminar sua fala. Aproximando-se por detrás dela, Nathan a segura pela cintura e a beija. No começo ela tenta empurra-lo, mas seu corpo se amolece e ela o corresponde, tendo sua língua e seus lábios finalmente experimentados pelo apaixonado rapaz.
A garota não entende. Nathan era tudo o que ela desprezava em um homem, mas no redemoinho de emoções confusas e sentimentos sinceros, ela não conseguia pensar com clareza. Naquele momento tudo era o mais sublime prazer, puro e sem maldade, que ela experimentava na vida pela primeira vez.
O tempo passa devagar, segundos ou minutos, ela não podia dizer. As mãos firmes de Nathan a puxam para mais perto, as mãos da garota tocam suas costas e sua nuca, ela sentia um calor mais forte que o fogo que a queimava, mas não doía.
Ao retornar a razão, ela o empurra e finalmente se desvencilha. Ela enxuga os lábios com a roupa, mas vê Nathan lambendo os seus, não querendo perder nada do néctar da garota.
Envergonhada, ela tenta disfarçar a timidez dizendo:
- Isso foi um erro.
Mas o rapaz não responde nada, ele apenas fica contemplando-a em silêncio. É então que Laura percebe. Os olhos do rapaz tinham docilidade, ternura e principalmente inocência, algo que – devido à adversidade do ambiente – não se encontravam na superfície. De fato, a superfície era um local para pessoas duras, perspicazes e embrutecidas pelas ásperas condições de sobrevivência, mas Nathan não era de lá. Vindo dos níveis superiores, o rapaz cresceu longe dessa triste marginalidade, preservando em si a decência de quem tinha um coração bom.
Os olhos de Nathan irradiavam amabilidade, e essa inextinguível luz se alastrava por todo o seu rosto. Pela primeira vez Laura pôde ver quem era o rapaz por trás do Inimigo de Estado, o jovem e alegre Nathan.
Mas a garota não compartilhava dessa luz. Ela era mais uma nativa dos níveis inferiores, atribulada e solitária, crescendo longe dos confortos que a sociedade corporativa podia lhe dar. Como tudo o que cai do topo das megatorres e alcança o solo, ela era uma rejeitada da superfície, um dos milhares de detritos que são lançados lá embaixo para apodrecer. Laura não era um produto da rebelião e sim um subproduto da sociedade que se esforçava para oculta-la, e dela se esquecer.
Sendo uma rejeitada social, criada em um local opressivo e com objetivos pessoais bem egoístas, a garota se lamenta por dentro.
- Eu tenho que ir. – repete ela.
A garota lhe dá as costas. Nathan, do fundo de seu coração, diz:
- Eu te amo.
Lembrando-se dos fantasmas que assombram sua vida, Laura olha para trás e pergunta:
- Para quê?
Nathan responde:
- Para sempre.

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