- Você teve muita
coragem por ter vindo aqui.
Laura o ignora e
então pergunta:
- Vai me ajudar
ou não?
O homem
encapuzado olha para seus companheiros, sete ao todo. Apesar da baixa
luminosidade no túnel, a runner conseguia vê-los nas sombras e na penumbra.
- E colocar o
Setor P inteiro na mira dos nossos inimigos e da Polícia?
A garota ri.
- Isso vocês já
fazem sozinhos.
O homem pondera.
- Nada feito. O
risco é alto demais.
Irritada, Laura
pergunta:
- Então é isso? Você
vai me dar as costas quando eu mais preciso?
- Não se trata
disso, Lótus. – responde ele – É como eu disse, o risco é alto demais.
Virando-se, os
homens se preparam para ir embora. Pressionada, a garota faz uma última apelação.
- Você não diria não se fosse a minha mãe.
Ao ouvi-la, o
homem para. Com as palavras de Laura, sua mente se enche de memórias. Um pouco
confuso, o homem abaixa sua cabeça, respira fundo e lentamente se volta para
ela.
- Ninguém, Lótus
– começa ele – diria não à sua mãe. Nem eu, nem meus inimigos e nem ninguém. Sua
mãe era uma lenda, um mito entre os runners, e seu legado jamais será
esquecido.
Animada, a garota
pergunta:
- Então você vai
me ajudar...?
- Mas –
interrompe ele – você não é sua mãe, e eu não posso tomar uma decisão baseado
somente nisso.
- Mas eu já
provei meu valor antes, ao trabalhar tantas vezes para vocês no passado.
- Não, Lótus, você
fraquejou. Sua mãe jamais fraquejaria em serviço. Você até abandonou seu
codinome por isso. Como é que você chama a si mesmo agora? Laura...?
Ainda pressionada,
ela responde:
- Eu estou disposta a ressuscitar a Lótus se
for preciso, até a me equiparar com a minha mãe.
O homem se
impressiona. Encarando-a, ele se aproxima. Percebendo o risco, Laura enrijece o
corpo, preparando-se para agir.
- Responda-me uma
coisa, Lótus. A vida de seu amigo vale tanto assim?
Amolecendo por
dentro, ela sente as lágrimas se formarem em seus olhos. Ela se reprime, pois
por mais que se esforçasse, ela jamais seria como sua mãe, uma lenda de verdade.
Ela responde:
- Totalmente.
Assentindo, o
homem diz:
- Está bem. Nós
ajudaremos você.
Controlando seu
sorriso, Laura dá as costas e então vai embora. Mas o homem a interrompe
dizendo:
- É melhor você
cumprir a sua parte no acordo, Lótus. Nós não toleramos traidores.
Dado o recado, a
garota se vira em silêncio e continua seu caminho.
§
Acordando em seu
confinamento, Nathan abre os olhos e se levanta. Ao olhar pela janela, ele
observa sua prisão, a sede dos Trans-humanistas. As máquinas de produção não
paravam de funcionar, e isso muito o incomodava. Os irritantes ruídos das
serras e dos martelos faziam sua cabeça doer, tirando sua concentração.
Algo chama sua
atenção, a porta de sua cela estava aberta. Apertando o botão, a porta se
desliza e ele caminha para fora. Ao seu lado aparecem dois guardas, eles o
encaram e exibem seus braços protéticos. De repente os antebraços se desmontam,
formando armas lasers. Nathan se surpreende, ele entendeu o recado.
Encostando-se na
parede, ele novamente olha para a fábrica à sua frente. Distraído em seu
mau-humor, alguém lhe pergunta:
- Com licença,
está tudo bem?
Olhando para a
esquerda, ele vê uma jovem garota de cabelos negros vestindo o uniforme da
facção.
- Sim.
- Você é um
novato? Você parece perdido.
O rapaz não
acredita. “Como ela não reconheceu o Inimigo de Estado?” pensa ele.
- Não exatamente.
A garota se
apresenta e lhe estende o braço. Nathan se assusta ao ver uma arma laser onde
deveria haver uma mão.
- Oh, me
desculpe. Isso sempre acontece. Ainda estou me acostumando.
A arma se retrai
para dentro de seu braço e os dedos aparecem, formando uma mão. Um pouco sem
jeito, ele lhe estende seu braço e também a cumprimenta.
- Vejo que você
também tem um braço protético. Por que o substituiu? Está escondendo uma arma
também?
- Não estou
escondendo arma nenhuma.
- Então por que o
substituiu?
- Porque eu
precisava aumentar meu desempenho no trabalho.
Ao ouvi-lo, a
mulher pensa que ele está brincando. Nas facções, todos repudiam o trabalho nas
corporações, e o combatem trabalhando ilegalmente para si próprios como os operários ali.
- Bem, eu
costumava trabalhar nas corporações também, mas logo que eu conheci a nobre
causa dos Trans-humanistas, deixei essa vida de escravidão e alienação para
trás. Hoje eu sou uma recruta, uma novata na facção, mas já posso dizer que o
combate ao consumismo...
Interrompendo-a,
o rapaz diz:
- Desculpe-me,
mas eu quero ficar sozinho.
Então ele lhe dá
as costas e volta para sua sala. Naquele momento ele não tinha a mínima vontade
de ouvir uma garota irritante falar de seus motivos ingênuos para se filiar a
uma organização terrorista.
Dez minutos
depois, Huxley aparece e pergunta:
- Vejo que você
já está se enturmando com os novos recrutas.
Irritado, Nathan
pergunta:
- Eu quero ver
meus amigos.
- Eu já disse que
eles estão bem.
- Não interessa!
Eu quero vê-los agora!
Olhando para seus
seguranças, o líder suspira e então responde:
- Creio que devo
conceder-lhe um último desejo antes da operação.
- Que operação? –
intriga-se ele.
Evasivo, Huxley responde:
- Uma coisa de
cada vez, Nathan.
Levando-o pelos
corredores, os sectários lhe indicam a cela de seus companheiros. Vertigo e os
outros estão sentados no piso, aparentando irritabilidade e preocupação.
- Vertigo!
Ao ver Nathan, o hacker
se levanta e calorosamente aperta sua mão.
- Você está bem,
você foi ferido? – pergunta Nathan.
- Não, mas não se
preocupe comigo. É você quem eles querem.
Sussurrando
discretamente, o rapaz pergunta:
- Você conseguiu
contatar os outros?
- Não. – responde
ele – Eles têm bloqueadores de sinal por toda a base.
O rapaz se
lamenta.
- Muito bonita a
amizade de vocês, mas o Inimigo de Estado dever ir agora. – diz o líder.
Vertigo o
afronta.
- Você deveria se
envergonhar, Huxley! Depois do valioso serviço que prestei a vocês, é assim que
você retribui?
O líder não
compreende.
- Do que está falando,
rapaz?
- Nós dois
sabemos que se eu não tivesse conseguido o módulo EMP para vocês, seus soldados
estariam morrendo tentando roubá-lo até hoje.
O runner estava
certo. Huxley perdeu dez dos seus soldados tentando roubar o módulo EMP da
corporação Cybersys. Fundamental para os seus planos, ele pretende fritar os
sistemas corporativos usando o pulso eletromagnético, reprogramá-los e usá-los
contra elas próprias. Seria uma guerra virtual aberta no ciberespaço e discreta
na realidade, onde as turrets, bots e securitrons se voltariam contra os
agentes corporativos, eliminando-os. Com a vantagem em mãos, os
Trans-humanistas poderiam deixar suas bases e atacar abertamente, tomando o
poder e moldando a sociedade segundo seus mirabolantes planos.
- Não seja
soberbo, Vertigo. Se o que eu planejo for executado hoje, sua contribuição para
a nossa causa será apenas uma fração do que nós vamos conseguir.
Puxando Nathan
pelas roupas, os seguranças o tiram da sala. Levando-o pela sede, eles passam
pelas linhas de produção e o rapaz entra em uma ala hospitalar de paredes
brancas. Entrando por uma porta dupla, ele vê uma mesa cirúrgica com um médico
e enfermeiras esperando-o.
O ar condicionado
deixa a temperatura agradável. A porta fechada conseguia isolar os irritantes
ruídos das máquinas trabalhando ao longe. Deitando-o na mesa, os sectários
amarram seus braços e pernas. Apavorado, o rapaz pergunta:
- O que vocês vão
fazer comigo?
- Por acaso você
está familiarizado com a tecnologia dos VANTs, Nathan?
O rapaz não
compreende.
- Do que está falando?
- Esta tecnologia
era muito conhecida no início do século 21. Os VANTs, ou Veículos Armados Não
Tripulados, eram os famosos bombardeiros drones, dos quais podiam fazer
travessias ultramarinas e serem controlados remotamente por operadores em solo
americano. Hoje nós, os Trans-humanistas, aprimoramos essa tecnologia,
introduzindo a inteligência artificial e instalando-a em hospedeiros humanos.
Desta forma, conseguimos anular seus sinais e ondas cerebrais e controla-los
remotamente, como ciborgues involuntários, escravos dos nossos comandos. –
pegando um frasco na estante, Huxley exibe olhos artificiais a Nathan – E este
é o dispositivo onde tudo isso é possível. Ao o instalarmos em você, seus
sinais cerebrais serão anulados e você obedecerá somente a nós, e assim como os
VANTs, seus olhos serão como as câmeras que usaremos para monitorar seu
progresso.
Então um médico
aproxima uma mesa contendo vários utensílios cirúrgicos. Ao ver os afiados
bisturis, Nathan se desespera.
As enfermeiras
tentam esterilizar seu rosto com um pano, mas era difícil com o rapaz gritando
e esperneando o tempo todo. Alguém injeta algo em seu braço, fazendo-o se
atordoar. O rapaz então luta para não perder a consciência.
Vestindo uma
máscara cirúrgica, um médico pega um bisturi e o aproxima de seu olho. Nathan
sente a expectativa agoniante do corte esmaga-lo com a aproximação. Então algo
acontece.
As luzes se
apagam de repente, escurecendo totalmente a sala. Cinco segundos depois, as
luzes de emergência se acendem, mas Huxley tem uma terrível surpresa. Toda a
equipe médica estava desacordada no chão, com exceção de uma.
Vendo uma
enfermeira mexer em algo sobre o balcão, o líder exasperadamente pergunta:
- Mas o que é que
está havendo aqui?!
Então ela se vira
e, rápida como um relâmpago, atira uma injeção em seu pescoço. Huxley arregala
os olhos, mas incapaz de resistir ao efeito, ele se desaba em seguida.
A enfermeira
desamarra Nathan. O rapaz vê apenas uma mulher de máscara e touca cirúrgica,
mas daqueles olhos ele jamais se esqueceria.
- Laura...?
A garota olha
para ele. Autoritária, ela somente responde:
- Silêncio.
Levantando-o, ela
passa seu braço sobre seus ombros e o leva pelos corredores.
Ouvindo os
guardas robóticos se aproximando da ala hospitalar, Laura toca o comunicador em
seu ouvido e diz:
- Ativem as
bombas EMP agora!
Então uma onda
azulada e brilhante de explosões varre a sede dos Trans-humanistas, fritando os
equipamentos eletrônicos e debilitando a movimentação dos soldados.
“Laura,
responda”. – chama a voz no comunicador.
- Estou ouvindo.
“Onde você
está?”.
- Estou indo
buscar o Vertigo e os outros.
“Rápido! Não
temos muito tempo”.
Atravessando a
linha de produção, um sectário mira seu braço à runner e tenta ativar sua arma acoplada.
Mas o antebraço sofre mal funcionamento e se desativa, soltando faíscas pelo
ar. Os demais soldados estavam caídos, tendo espasmos enquanto sofriam a pane
em seus sistemas.
Finalmente
alcançando seu objetivo, Vertigo a avista e exclama:
- Laura!
- Espere um
pouco, eu vou te tirar daí.
Sentando Nathan
no chão, ela retira um decodificador do bolso e tenta destrancar a porta. Enquanto
está ocupada, Vertigo olha para o corredor e novamente grita:
- Laura! Cuidado!
Uma
trans-humanista, a mesma que Nathan conversou instantes atrás, aparece
portando um lança-mísseis e atira contra os runners. Laura se abaixa e o míssil
explode a porta da cela, espalhando seus pedaços por toda parte. Fogo e fumaça
se alastram pelo corredor. Com grande agilidade, Laura saca sua arma e atira na recruta. O tiro acerta sua garganta e ele cai em espasmos e esguichos de sangue no chão.
Ainda atordoados,
a garota indica o caminho aos dois runners e eles fogem pela sede da facção. Mas
ao procurar por Nathan e Vertigo, ela tem uma terrível surpresa. Os dois
estavam gravemente feridos.
Vertigo tem
ferimentos pelo corpo, mas resiste bem à dor. Nathan, por outro lado, tem um
ferimento grave em sua perna e agoniza dolorosamente no chão. É então que Laura
percebe. O rapaz agoniza, fazendo expressões de choro e dor. As lágrimas do
rapaz lhe revelam algo, Nathan não era um experiente e embrutecido runner da
superfície como eles, nem mesmo um combatente das facções. Naquele momento,
Nathan era apenas um rapaz frágil e indefeso que se esforçava para provar algo,
para conquistar o seu espaço e principalmente impressionar alguém, passando por
todo o tipo de perigo e arriscando a sua vida se fosse preciso. E este alguém
era a Laura.
A garota sente
pena dele, sua fragilidade lhe causava desprezo. Dando-lhe as costas, ela então
vai socorrer o seu amigo, afinal aquela era a razão dela estar ali. Mas ela
hesita. Olhando para trás, ela pensa: “Nathan é um fraco, um imprestável, um
menino escondido atrás de uma máscara de herói libertador, mas...” ela pondera
enquanto emoções e emoções inundam sua mente. “Por que eu estou sentindo pena
dele?”
Vendo sua amiga
parada e confusa, o hacker diz:
- Laura, vá! Eu
consigo me virar aqui.
Voltando, ela se
agacha e socorre o rapaz. Nathan chora dolorosamente. Novamente suspendendo-o, ela se levanta e o conduz para a saída.
Tiros e explosões
são ouvidos ao longe. Enquanto avançam, Nathan deixa um rastro de sangue pelo caminho.
Passando por uma abertura feita na parede, os dois chegam a uma plataforma
debaixo do galpão. O vento sopra suas roupas, subindo o cheiro de sangue e lhe
causando aflição. Mas ele também sente outro cheiro, um milhão de vezes mais
agradável, forte e ao mesmo tempo suave, capaz de imediatamente aplacar a sua
dor. Era o cheiro de Laura, que se exalava de seu pescoço e seus cabelos e lhe
deixava louco.
Adiante eles veem
um furgão escondido. Então quatro homens vestidos com roupas verdes, brancas e
prateadas aparecem. Sua aparência austera e olhar fanático deixavam o rapaz
tenso, mas eram seus corpos que lhe chamavam a atenção, puramente de carne e
osso. Então o rapaz sente medo. Aqueles homens eram da Resistência Purista.
O mais
velho, provavelmente seu líder, olha para Laura e diz:
- Está atrasada.
- Nasier, o
Inimigo de Estado está ferido e precisa de tratamento médico urgente.
Abrindo a palma
de suas mãos, o homem responde:
- E por acaso eu
não sou médico? Vamos, entre no furgão. Precisamos sair logo daqui.
Levantando voo, o
furgão avança pelas chaminés e deixa o distrito de Entropia para trás.
Nenhum comentário:
Postar um comentário