segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Sonata - Parte 27 - Extração



- Você teve muita coragem por ter vindo aqui.
Laura o ignora e então pergunta:
- Vai me ajudar ou não?
O homem encapuzado olha para seus companheiros, sete ao todo. Apesar da baixa luminosidade no túnel, a runner conseguia vê-los nas sombras e na penumbra.
- E colocar o Setor P inteiro na mira dos nossos inimigos e da Polícia?
A garota ri.
- Isso vocês já fazem sozinhos.
O homem pondera.
- Nada feito. O risco é alto demais.
Irritada, Laura pergunta:
- Então é isso? Você vai me dar as costas quando eu mais preciso?
- Não se trata disso, Lótus. – responde ele – É como eu disse, o risco é alto demais.
Virando-se, os homens se preparam para ir embora. Pressionada, a garota faz uma última apelação.
- Você não diria não se fosse a minha mãe.
Ao ouvi-la, o homem para. Com as palavras de Laura, sua mente se enche de memórias. Um pouco confuso, o homem abaixa sua cabeça, respira fundo e lentamente se volta para ela.
- Ninguém, Lótus – começa ele – diria não à sua mãe. Nem eu, nem meus inimigos e nem ninguém. Sua mãe era uma lenda, um mito entre os runners, e seu legado jamais será esquecido.
Animada, a garota pergunta:
- Então você vai me ajudar...?
- Mas – interrompe ele – você não é sua mãe, e eu não posso tomar uma decisão baseado somente nisso.
- Mas eu já provei meu valor antes, ao trabalhar tantas vezes para vocês no passado.
- Não, Lótus, você fraquejou. Sua mãe jamais fraquejaria em serviço. Você até abandonou seu codinome por isso. Como é que você chama a si mesmo agora? Laura...?
Ainda pressionada, ela responde:
 - Eu estou disposta a ressuscitar a Lótus se for preciso, até a me equiparar com a minha mãe.
O homem se impressiona. Encarando-a, ele se aproxima. Percebendo o risco, Laura enrijece o corpo, preparando-se para agir.
- Responda-me uma coisa, Lótus. A vida de seu amigo vale tanto assim?
Amolecendo por dentro, ela sente as lágrimas se formarem em seus olhos. Ela se reprime, pois por mais que se esforçasse, ela jamais seria como sua mãe, uma lenda de verdade. Ela responde:
- Totalmente.
Assentindo, o homem diz:
- Está bem. Nós ajudaremos você.
Controlando seu sorriso, Laura dá as costas e então vai embora. Mas o homem a interrompe dizendo:
- É melhor você cumprir a sua parte no acordo, Lótus. Nós não toleramos traidores.
Dado o recado, a garota se vira em silêncio e continua seu caminho.

§

Acordando em seu confinamento, Nathan abre os olhos e se levanta. Ao olhar pela janela, ele observa sua prisão, a sede dos Trans-humanistas. As máquinas de produção não paravam de funcionar, e isso muito o incomodava. Os irritantes ruídos das serras e dos martelos faziam sua cabeça doer, tirando sua concentração.
Algo chama sua atenção, a porta de sua cela estava aberta. Apertando o botão, a porta se desliza e ele caminha para fora. Ao seu lado aparecem dois guardas, eles o encaram e exibem seus braços protéticos. De repente os antebraços se desmontam, formando armas lasers. Nathan se surpreende, ele entendeu o recado.
Encostando-se na parede, ele novamente olha para a fábrica à sua frente. Distraído em seu mau-humor, alguém lhe pergunta:
- Com licença, está tudo bem?
Olhando para a esquerda, ele vê uma jovem garota de cabelos negros vestindo o uniforme da facção.
- Sim.
- Você é um novato? Você parece perdido.
O rapaz não acredita. “Como ela não reconheceu o Inimigo de Estado?” pensa ele.
- Não exatamente.
A garota se apresenta e lhe estende o braço. Nathan se assusta ao ver uma arma laser onde deveria haver uma mão.
- Oh, me desculpe. Isso sempre acontece. Ainda estou me acostumando.
A arma se retrai para dentro de seu braço e os dedos aparecem, formando uma mão. Um pouco sem jeito, ele lhe estende seu braço e também a cumprimenta.
- Vejo que você também tem um braço protético. Por que o substituiu? Está escondendo uma arma também?
- Não estou escondendo arma nenhuma.
- Então por que o substituiu?
- Porque eu precisava aumentar meu desempenho no trabalho.
Ao ouvi-lo, a mulher pensa que ele está brincando. Nas facções, todos repudiam o trabalho nas corporações, e o combatem trabalhando ilegalmente para si próprios como os operários ali.
- Bem, eu costumava trabalhar nas corporações também, mas logo que eu conheci a nobre causa dos Trans-humanistas, deixei essa vida de escravidão e alienação para trás. Hoje eu sou uma recruta, uma novata na facção, mas já posso dizer que o combate ao consumismo...
Interrompendo-a, o rapaz diz:
- Desculpe-me, mas eu quero ficar sozinho.
Então ele lhe dá as costas e volta para sua sala. Naquele momento ele não tinha a mínima vontade de ouvir uma garota irritante falar de seus motivos ingênuos para se filiar a uma organização terrorista.
Dez minutos depois, Huxley aparece e pergunta:
- Vejo que você já está se enturmando com os novos recrutas.
Irritado, Nathan pergunta:
- Eu quero ver meus amigos.
- Eu já disse que eles estão bem.
- Não interessa! Eu quero vê-los agora!
Olhando para seus seguranças, o líder suspira e então responde:
- Creio que devo conceder-lhe um último desejo antes da operação.
- Que operação? – intriga-se ele.
Evasivo, Huxley responde:
- Uma coisa de cada vez, Nathan.
Levando-o pelos corredores, os sectários lhe indicam a cela de seus companheiros. Vertigo e os outros estão sentados no piso, aparentando irritabilidade e preocupação.
- Vertigo!
Ao ver Nathan, o hacker se levanta e calorosamente aperta sua mão.
- Você está bem, você foi ferido? – pergunta Nathan.
- Não, mas não se preocupe comigo. É você quem eles querem.
Sussurrando discretamente, o rapaz pergunta:
- Você conseguiu contatar os outros?
- Não. – responde ele – Eles têm bloqueadores de sinal por toda a base.
O rapaz se lamenta.
- Muito bonita a amizade de vocês, mas o Inimigo de Estado dever ir agora. – diz o líder.
Vertigo o afronta.
- Você deveria se envergonhar, Huxley! Depois do valioso serviço que prestei a vocês, é assim que você retribui?
O líder não compreende.
- Do que está falando, rapaz?
- Nós dois sabemos que se eu não tivesse conseguido o módulo EMP para vocês, seus soldados estariam morrendo tentando roubá-lo até hoje. 
O runner estava certo. Huxley perdeu dez dos seus soldados tentando roubar o módulo EMP da corporação Cybersys. Fundamental para os seus planos, ele pretende fritar os sistemas corporativos usando o pulso eletromagnético, reprogramá-los e usá-los contra elas próprias. Seria uma guerra virtual aberta no ciberespaço e discreta na realidade, onde as turrets, bots e securitrons se voltariam contra os agentes corporativos, eliminando-os. Com a vantagem em mãos, os Trans-humanistas poderiam deixar suas bases e atacar abertamente, tomando o poder e moldando a sociedade segundo seus mirabolantes planos.
- Não seja soberbo, Vertigo. Se o que eu planejo for executado hoje, sua contribuição para a nossa causa será apenas uma fração do que nós vamos conseguir.
Puxando Nathan pelas roupas, os seguranças o tiram da sala. Levando-o pela sede, eles passam pelas linhas de produção e o rapaz entra em uma ala hospitalar de paredes brancas. Entrando por uma porta dupla, ele vê uma mesa cirúrgica com um médico e enfermeiras esperando-o.
O ar condicionado deixa a temperatura agradável. A porta fechada conseguia isolar os irritantes ruídos das máquinas trabalhando ao longe. Deitando-o na mesa, os sectários amarram seus braços e pernas. Apavorado, o rapaz pergunta:
- O que vocês vão fazer comigo?
- Por acaso você está familiarizado com a tecnologia dos VANTs, Nathan?
O rapaz não compreende.
- Do que está falando?
- Esta tecnologia era muito conhecida no início do século 21. Os VANTs, ou Veículos Armados Não Tripulados, eram os famosos bombardeiros drones, dos quais podiam fazer travessias ultramarinas e serem controlados remotamente por operadores em solo americano. Hoje nós, os Trans-humanistas, aprimoramos essa tecnologia, introduzindo a inteligência artificial e instalando-a em hospedeiros humanos. Desta forma, conseguimos anular seus sinais e ondas cerebrais e controla-los remotamente, como ciborgues involuntários, escravos dos nossos comandos. – pegando um frasco na estante, Huxley exibe olhos artificiais a Nathan – E este é o dispositivo onde tudo isso é possível. Ao o instalarmos em você, seus sinais cerebrais serão anulados e você obedecerá somente a nós, e assim como os VANTs, seus olhos serão como as câmeras que usaremos para monitorar seu progresso.
Então um médico aproxima uma mesa contendo vários utensílios cirúrgicos. Ao ver os afiados bisturis, Nathan se desespera.
As enfermeiras tentam esterilizar seu rosto com um pano, mas era difícil com o rapaz gritando e esperneando o tempo todo. Alguém injeta algo em seu braço, fazendo-o se atordoar. O rapaz então luta para não perder a consciência.           
Vestindo uma máscara cirúrgica, um médico pega um bisturi e o aproxima de seu olho. Nathan sente a expectativa agoniante do corte esmaga-lo com a aproximação. Então algo acontece.
As luzes se apagam de repente, escurecendo totalmente a sala. Cinco segundos depois, as luzes de emergência se acendem, mas Huxley tem uma terrível surpresa. Toda a equipe médica estava desacordada no chão, com exceção de uma.
Vendo uma enfermeira mexer em algo sobre o balcão, o líder exasperadamente pergunta:
- Mas o que é que está havendo aqui?!
Então ela se vira e, rápida como um relâmpago, atira uma injeção em seu pescoço. Huxley arregala os olhos, mas incapaz de resistir ao efeito, ele se desaba em seguida.
A enfermeira desamarra Nathan. O rapaz vê apenas uma mulher de máscara e touca cirúrgica, mas daqueles olhos ele jamais se esqueceria.
- Laura...?
A garota olha para ele. Autoritária, ela somente responde:
- Silêncio.
Levantando-o, ela passa seu braço sobre seus ombros e o leva pelos corredores.
Ouvindo os guardas robóticos se aproximando da ala hospitalar, Laura toca o comunicador em seu ouvido e diz:
- Ativem as bombas EMP agora!
Então uma onda azulada e brilhante de explosões varre a sede dos Trans-humanistas, fritando os equipamentos eletrônicos e debilitando a movimentação dos soldados.
“Laura, responda”. – chama a voz no comunicador.
- Estou ouvindo.
“Onde você está?”.
- Estou indo buscar o Vertigo e os outros.
“Rápido! Não temos muito tempo”.
Atravessando a linha de produção, um sectário mira seu braço à runner e tenta ativar sua arma acoplada. Mas o antebraço sofre mal funcionamento e se desativa, soltando faíscas pelo ar. Os demais soldados estavam caídos, tendo espasmos enquanto sofriam a pane em seus sistemas.  
Finalmente alcançando seu objetivo, Vertigo a avista e exclama:
- Laura!
- Espere um pouco, eu vou te tirar daí.
Sentando Nathan no chão, ela retira um decodificador do bolso e tenta destrancar a porta. Enquanto está ocupada, Vertigo olha para o corredor e novamente grita:
- Laura! Cuidado!
Uma trans-humanista, a mesma que Nathan conversou instantes atrás, aparece portando um lança-mísseis e atira contra os runners. Laura se abaixa e o míssil explode a porta da cela, espalhando seus pedaços por toda parte. Fogo e fumaça se alastram pelo corredor. Com grande agilidade, Laura saca sua arma e atira na recruta. O tiro acerta sua garganta e ele cai em espasmos e esguichos de sangue no chão.
Ainda atordoados, a garota indica o caminho aos dois runners e eles fogem pela sede da facção. Mas ao procurar por Nathan e Vertigo, ela tem uma terrível surpresa. Os dois estavam gravemente feridos.
Vertigo tem ferimentos pelo corpo, mas resiste bem à dor. Nathan, por outro lado, tem um ferimento grave em sua perna e agoniza dolorosamente no chão. É então que Laura percebe. O rapaz agoniza, fazendo expressões de choro e dor. As lágrimas do rapaz lhe revelam algo, Nathan não era um experiente e embrutecido runner da superfície como eles, nem mesmo um combatente das facções. Naquele momento, Nathan era apenas um rapaz frágil e indefeso que se esforçava para provar algo, para conquistar o seu espaço e principalmente impressionar alguém, passando por todo o tipo de perigo e arriscando a sua vida se fosse preciso. E este alguém era a Laura.
A garota sente pena dele, sua fragilidade lhe causava desprezo. Dando-lhe as costas, ela então vai socorrer o seu amigo, afinal aquela era a razão dela estar ali. Mas ela hesita. Olhando para trás, ela pensa: “Nathan é um fraco, um imprestável, um menino escondido atrás de uma máscara de herói libertador, mas...” ela pondera enquanto emoções e emoções inundam sua mente. “Por que eu estou sentindo pena dele?”
Vendo sua amiga parada e confusa, o hacker diz:
- Laura, vá! Eu consigo me virar aqui.
Voltando, ela se agacha e socorre o rapaz. Nathan chora dolorosamente. Novamente suspendendo-o, ela se levanta e o conduz para a saída.
Tiros e explosões são ouvidos ao longe. Enquanto avançam, Nathan deixa um rastro de sangue pelo caminho. Passando por uma abertura feita na parede, os dois chegam a uma plataforma debaixo do galpão. O vento sopra suas roupas, subindo o cheiro de sangue e lhe causando aflição. Mas ele também sente outro cheiro, um milhão de vezes mais agradável, forte e ao mesmo tempo suave, capaz de imediatamente aplacar a sua dor. Era o cheiro de Laura, que se exalava de seu pescoço e seus cabelos e lhe deixava louco.
Adiante eles veem um furgão escondido. Então quatro homens vestidos com roupas verdes, brancas e prateadas aparecem. Sua aparência austera e olhar fanático deixavam o rapaz tenso, mas eram seus corpos que lhe chamavam a atenção, puramente de carne e osso. Então o rapaz sente medo. Aqueles homens eram da Resistência Purista.
O mais velho, provavelmente seu líder, olha para Laura e diz:
- Está atrasada.
- Nasier, o Inimigo de Estado está ferido e precisa de tratamento médico urgente.
Abrindo a palma de suas mãos, o homem responde:
- E por acaso eu não sou médico? Vamos, entre no furgão. Precisamos sair logo daqui.
Levantando voo, o furgão avança pelas chaminés e deixa o distrito de Entropia para trás.

         

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