Entardecia em
Sonata. Em um aerocarro com Vertigo e mais dois runners no banco de trás,
Nathan segue em direção à sede dos Trans-humanistas. O rapaz estava com um mal
pressentimento quanto aquela missão, mas prefere não pensar nisso. Levando seu
rifle entre seus pés, ele pretende se garantir se algo der errado. Olhando ao
redor, ele vê os os aerocarros com os outros runners. Sabendo que todos estão
fortemente armados, ele se tranquiliza.
Eles avançam mais
um pouco. Nathan consegue ver a muralha da Contenção nos limites da metrópole.
Abaixo havia um distrito industrial chamado Entropia – Setor T, onde se
localizava a sede daquela facção. Eles descem até chegarem a um galpão
sobre uma enorme plataforma de concreto e aço.
Caminhando pela
plataforma, Nathan olha ao redor e vê os caminhões, gruas e containers. Alguns
operários estão trabalhando e parecem não nota-los ali. Era como se fosse mais
um local de trabalho e não houvesse atividade criminal aparente. Ao entrar por
uma porta, o rapaz passa por seguranças robóticos semelhantes aos que ele viu
na prisão.
Adiante de si
eles veem um grupo de sectários aguardando-os. Ao vê-los melhor, Nathan se
assusta. Alguns deles eram tão mecanizados que não se pareciam pessoas, eles se
pareciam ciborgues.
O líder do grupo,
um homem alto e loiro, os recebe. Vestido com roupas brilhantes como o
plástico, suas vestimentas de estilo moderno o assemelhavam a um cirurgião, um
tipo bizarro de cientista louco dos filmes clássicos de terror. Nathan nota que seus
braços e pernas eram biomecânicos, suas próteses, diferentes do braço
bioprotético do rapaz, eram as mais sofisticadas do mercado, tão realistas que
apenas bons observadores poderiam identifica-las. Nathan também nota que os
olhos do homem eram artificiais, com globos oculares de retina azul. Aqueles
olhos com certeza tinham identificadores aeroespaciais, pois o homem os
observava desde o momento em que os viu entrar.
Nathan se
aproxima com Vertigo e os outros runners ao seu lado. Todos portam seus rifles,
além das pistolas ocultas em suas cinturas e pernas.
- Olá, Nathan.
Acredito que esse encontro será pacífico, não?
O rapaz está
tenso. Olhando ao redor, ele se vê cercado por homens-robôs em um bizarro covil
terrorista.
- Olá, Huxley,
prazer em conhece-lo. E sim, esse será um encontro pacífico.
O líder sorri.
- Então por que
as armas? O Submundo não confia na palavra dos Trans-humanistas?
Nathan sorri de
volta.
- Por quê?
Deveríamos desconfiar dela? – responde o rapaz com outra pergunta.
Desafiado, o
líder se irrita. Os sectários de Huxley ficam tensos, preparando-se para agir. Vertigo
e os runners se entreolham.
- Você deveria
confiar na hospitalidade de seus anfitriões, garoto, e não desrespeita-los com
desconfiança e insultos.
O rapaz pressente
o perigo.
- Não quis
desrespeita-los, mas acredito que se houver respeito e confiança mútua, ambas
as partes se beneficiarão.
- Pois você não
demonstrou os dois. – responde rudemente Huxley – Diga-me o que você quer,
Inimigo de Estado.
- Uma aliança.
Juntem-se ao Submundo e nos ajudem a derrubar as corporações e acabar com essa
sangrenta rebelião.
Ao ouvirem-no, os
trans-humanistas se silenciam por algum tempo. Em seguida eles gargalham longa e abertamente, com exceção do líder.
- Eu bem sei o
que você conseguiu, Nathan, aliando-se aos americanos fanáticos da 4 de Julho.
E o que você quer agora? Que os Trans-humanistas e seus arqui-inimigos puristas
deem as mãos e marchem juntos em uma improvável coalizão?
Constrangido
pelos sectários, o rapaz responde:
- As corporações
nunca serão vencidas se as facções continuarem lutando entre si, e desunidos todos
certamente morreremos.
Huxley se
intriga.
- Ah, você
realmente acredita na ameaça do Projeto Gemini? Se toda a metrópole, com seus
milhões e milhões de habitantes morrerem, creio que será bem difícil para as
corporações se livrarem de uma montanha de corpos.
- Se você está
falando de espaço, as corporações tem o mundo inteiro lá fora para isso.
Ao fracassar em ridicularizar Nathan, o líder e seus companheiros se calam.
Com semblante
sério, Huley diz:
- Você é ousado,
Nathan, e muito corajoso, eu devo admitir. Você seria muito valioso em nossa
facção. Mas eu tenho outros planos, e melhores do que essa aliança absurda que você acaba de sugerir.
Acenando para
seus companheiros, eles apontam suas armas para os runners. Atrás
deles aparecem dois soldados enormes vestindo exoesqueletos. Com voz robótica,
um deles ordena:
- Larguem suas
armas.
Nathan protesta.
- O que você está
fazendo?!
- Não se preocupe,
você é mais útil para nós vivo.
- Eu tenho
runners espalhados por todo o distrito!
Então os
sectários trazem os demais runners à presença de Huxley, fazendo-os se ajoelhar
ao lado de Nathan.
- Você realmente
pensou que podia esconder algo de mim em meu próprio território? Pobre rapaz
ingênuo...
Temendo por sua
vida, o rapaz pergunta:
- O que vocês vão
fazer comigo?
- Por enquanto
vamos prendê-lo, sua influência trará grandes vantagens para nós.
- Você não pode
me prender! Isso causaria uma guerra com o Submundo!
- Não, Nathan,
não queremos uma guerra com o Submundo. Na verdade, são os runners que se
juntarão a nós após você os
convencerem.
O rapaz se
surpreende.
- Os runners
jamais se juntariam à causa dos Trans-humanistas! Esta não é uma guerra
ideológica, Huxley! O que proponho é combater um inimigo em comum!
- Não é desta
forma que eu enxergo, Inimigo de Estado. – olhando para seus companheiros, o
líder diz – Podem leva-los!
Sem poder
resistir, Nathan é levado cativo pelos trans-humanistas. Um sectário se aproxima
de Huxley e diz:
- Senhor, um dos
runners conseguiu fugir. Devemos ir atrás dele?
- Não. – responde
o líder – Lidaremos com o Submundo depois.
§
Ao entrarem em um
longo corredor, Nathan vê oficinas com pessoas trabalhando. Ele nota que, assim
como em qualquer outra facção onde esteve, eles vestem roupas inusitadas e
exóticas. Haviam portas que davam acesso à vários outros estabelecimentos. Eles veem uma sala
escrito “Manutenção Robótica”, em seu interior há centenas de braços e pernas
robóticos pendurados no teto. Em uma estante o rapaz vê as modernas
próteses biomecânicas, tão sofisticadas que se assemelhavam a membros de carne
e osso por tamanha perfeição.
Haviam outras pessoas
ali, mas elas não pareciam ser integrantes da facção. Elas passavam pelas
estantes analisando as peças bioprotéticas como se estivessem comprando. É
então que Nathan percebe, elas não eram integrantes e sim clientes. Ali
funcionava um comércio clandestino onde a facção vendia seus produtos
industrializados ilegalmente.
Eles passam por
uma oficina e veem dezenas de poltronas onde os clientes se sentavam para
consertar suas próteses. Os técnicos usam cabos e computadores para calibrar,
reparar e substituir as próteses danificadas. Alguns clientes seriam
verdadeiros aleijados sem suas próteses, pois alguns não tinham mais seus membros orgânicos, considerando-os frágeis, limitados e deterioráveis
com o tempo.
Assim como a
imensa maioria da população, os clientes optaram por substituir seus membros
originais pelas máquinas de capacidades infinitas. Enquanto aguardavam nas
poltronas, era interessante ver suas próteses se movendo sozinhas sobre as
mesas. Na parte amputada de seus corpos, Nathan vê cabos conectados aos seus
nervos e tendões, e isso lhe causava certa repulsão. Os técnicos trabalhavam
com soldas elétricas, lixadeiras e parafusadeiras como modernos cirurgiões de
androides.
Eles entram em um
elevador. Descendo um nível do imenso galpão, Nathan vê um ambiente não muito
diferente das sedes da 4 de Julho e da Bushido. Haviam hackers operando os
computadores ao lado de centenas de servidores, os sectários andavam de um lado
ao outro, parecendo ser muito inteligentes e elegantes em seus ternos e
gravatas.
Em uma sala com
paredes de vidro está escrito “Desenvolvimento”, em seu interior há engenheiros
construindo protótipos de novas próteses e robôs. Ele também vê físicos
experimentais testando a intensidade do raio laser de suas novas armas. Apesar
do impressionante nível intelectual, científico e tecnológico de seus membros,
Nathan não vê muitas pessoas armadas ali, dando a impressão de que essa
organização preferia lutar virtualmente com sabotagem e espionagem do que com
força bruta. Mas sua impressão estava inteiramente errada.
Ao som das
máquinas pesadas trabalhando, ele vê a poderosa máquina de guerra trans-humanista.
Passando pelas linhas de produção, equipamentos, armaduras e armas são
processados, sendo achatados em prensas, soldados por robôs e montados por
operários semi-humanos. Armaduras enormes são fabricadas, tão tecnológicas e
versáteis que, ao testá-las, os usuários são automaticamente vestidos por elas.
Sentado em uma caixa de madeira, um imenso soldado trans-humanista calmamente
fuma seu charuto enquanto três operários consertam a pesada armadura em seu
corpo.
Vestindo
exoesqueletos, alguns sectários passeiam pelo lugar carregando pesadas caixas
em seus braços. Telas de LCD e hologramas também são vistos, e alguns cabos de
fibra ótica se confundem com as luzes de neon. Nathan percebe que eles são
obcecados por tecnologia, verdadeiros idólatras. “Talvez este
pequeno laboratório de novas ideias esteja tecnologicamente mais avançado do que
a metrópole em pelo menos dez anos” pensa ele.
Em uma sala de
testes, um soldado ativa um lançador de foguetes em seu ombro e atira contra um
monte de palha, pulverizando-o. Isto muito impressiona os runners. Haviam armas em
abundância ali, ele vê rifles, metralhadoras e pistolas pelo salão.
- Bem-vindos à sede
dos Trans-humanistas. – diz Huxley.
Nathan é separado
de seus companheiros. Ele é levado para outra sala no fim do corredor, com uma
cama e uma janela de vidro inquebrável na parede.
Novamente o rapaz
estava sozinho. Olhando pela janela, ele vê a sede da facção, um local estranho
e cheio de fanáticos em sua luta pela supremacia tecnológica.
O rapaz não se
esqueceu de como aquele pesadelo começou. O maldito terrorista no táxi, membro
da Resistência Purista, querendo explodir aquela sede.
Obviamente o local onde estavam naquele dia – à beira do muro de Contenção e do
Setor L – estava muito longe dali, “mas e se outro homem-bomba aparecesse e
finalmente terminasse o serviço?” pensa ele.
§
Dois dias se
passam. Em seu confinamento, Nathan vê os sectários conversando normalmente,
eles pareciam não se importar com a armadura pesada e fria em seus corpos. Então
Huxley entra na sala e, trazendo uma cadeira, o convida para conversar.
- Boa tarde,
Nathan. Espero que esteja gostando da sua estadia.
Sem dar atenção,
o rapaz pergunta:
- Onde estão os meus
amigos?
- Amigos? – surpreende-se ele – Não se preocupe, eles estão bem. Mas, mudando de assunto, posso te fazer
uma pergunta pessoal?
Vendo o líder
adiante de si, com seus seguranças enormes e armados no lado de fora, o rapaz
percebe que não tem escolha.
- Sim.
- Você acredita
em Deus?
Com a estranha
pergunta, Nathan se intriga.
- O que quer
dizer?
- Quero dizer se
você acredita em uma força maior que criou a vida e o universo.
Um pouco
desconfortável, ele responde:
- Sim.
- Por quê?
- Porque eu não
acredito que tudo o que existe foi obra do acaso.
- Não, é claro
que não... – responde Huxley, pensativo – E quanto à evolução? Você acredita no
processo natural e evolutivo?
O rapaz pensa um
pouco antes de responder.
- Eu realmente
não sei nada sobre isso.
- Nós acreditamos
na evolução. Na evolução da mente, do intelecto, da ciência... A inteligência
evoluiu com o passar do tempo, e a sociedade a acompanhou através
do conhecimento. O que as gerações anteriores não usufruíram, as gerações
futuras certamente usufruirão, pois este é o seu legado sublime. Ora, se Deus,
deuses ou extraterrestres nos criaram, nos dotando de inteligência, então a
tecnologia é o legado dela, evoluída através dos séculos de descobertas e de desenvolvimento. – Huxley pausa
por um momento e então continua – Devemos continuar de onde nossos antepassados
pararam. Devemos ir além de onde os Homo Sapiens jamais foram. Nós, a raça
humana, através dos avanços tecnológicos e da inteligência infinita, devemos
evoluir!
Ao ouvi-lo,
Nathan se silencia por um momento. “O discurso dos terroristas é sempre o
mesmo, homens visionários com discursos inflamados” pensa ele. “Eles parecem
viver em uma realidade exclusiva, arquitetada apenas para eles mesmos”.
Nathan responde:
- Através da
tecnologia nosso mundo foi destruído. É isso o que pretendem com os avanços
tecnológicos de vocês? Produzirem mais armas, travarem mais guerras até
destruírem o pouco de mundo que ainda nos resta?
O trans-humanista
se ofende.
- Não somos os
portadores da morte e sim os preservadores da vida. Se você ainda não entendeu
que para sobreviver temos que nos defender, então não posso fazer nada a não
ser sentir pena de você.
Um sectário entra
na sala e sussurra ao líder:
- Senhor, nosso
território foi atacado pelos puristas.
- Houve baixas? –
pergunta ele.
- Sim, senhor.
Várias.
Assentindo, o
líder olha para o rapaz e diz:
- Parece que mais
gente está morrendo por sua causa, Nathan. Eis aí o resultado de sua rebelião.
Pesaroso, o rapaz
abaixa sua cabeça.
- Vamos supor que
não fosse você o Inimigo de Estado e sim outro azarado por aí. Você já pensou o
que faria para escapar da rebelião causada por ele?
Nathan não tinha
pensado nessa hipótese.
- Eu só pensaria em
me esconder ou fugir.
- Fugir? – repete
Huxley, quase debochando-o – E você já sabe para onde?
- Eu não sei.
Provavelmente para a superfície.
Então o líder e
seus seguranças deixam escapar um sorriso.
- Apesar de viver
no Submundo há um ano, você não conhece bem a superfície, não é mesmo?
O rapaz não sabe
nada sobre o vasto território obscuro da superfície.
- Sei o
suficiente.
- Pois eu lhe
ofereço algo melhor. Fique em nossa organização, junte-se aos Trans-humanistas.
Você estará seguro aqui, podemos protege-lo. Você não precisará fugir ou se
esconder, aqui a polícia nunca irá encontra-lo. Te daremos um abrigo, armas,
até um uniforme se assim o quiser. Aceite! É muito mais do que te ofereceram.
Desta vez é
Nathan quem sorri.
- Eu prefiro
trabalhar com os terroristas, e não ser um deles.
O líder descarta
sua resposta.
- E o que te faz
pensar que pode escolher?
O rapaz se sente
ameaçado.
- Tem certeza? Em
nossa organização temos os mais talentosos cirurgiões plásticos, e nossas
próteses biomecânicas são produzidas aqui, em nossa sede. E você
sabe... Aparelhos de controle mental podem ser produzidos pela mais avançada
tecnologia. Você não quer que um desses seja instalado em você, não é mesmo?
Nathan se
apavora. Antes que pudesse responde-lo, Huxley se levanta e vai embora.
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