quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Sonata - Parte 26 - Trans-humanistas



Entardecia em Sonata. Em um aerocarro com Vertigo e mais dois runners no banco de trás, Nathan segue em direção à sede dos Trans-humanistas. O rapaz estava com um mal pressentimento quanto aquela missão, mas prefere não pensar nisso. Levando seu rifle entre seus pés, ele pretende se garantir se algo der errado. Olhando ao redor, ele vê os os aerocarros com os outros runners. Sabendo que todos estão fortemente armados, ele se tranquiliza.
Eles avançam mais um pouco. Nathan consegue ver a muralha da Contenção nos limites da metrópole. Abaixo havia um distrito industrial chamado Entropia – Setor T, onde se localizava a sede daquela facção. Eles descem até chegarem a um galpão sobre uma enorme plataforma de concreto e aço.
Caminhando pela plataforma, Nathan olha ao redor e vê os caminhões, gruas e containers. Alguns operários estão trabalhando e parecem não nota-los ali. Era como se fosse mais um local de trabalho e não houvesse atividade criminal aparente. Ao entrar por uma porta, o rapaz passa por seguranças robóticos semelhantes aos que ele viu na prisão.
Adiante de si eles veem um grupo de sectários aguardando-os. Ao vê-los melhor, Nathan se assusta. Alguns deles eram tão mecanizados que não se pareciam pessoas, eles se pareciam ciborgues.
O líder do grupo, um homem alto e loiro, os recebe. Vestido com roupas brilhantes como o plástico, suas vestimentas de estilo moderno o assemelhavam a um cirurgião, um tipo bizarro de cientista louco dos filmes clássicos de terror. Nathan nota que seus braços e pernas eram biomecânicos, suas próteses, diferentes do braço bioprotético do rapaz, eram as mais sofisticadas do mercado, tão realistas que apenas bons observadores poderiam identifica-las. Nathan também nota que os olhos do homem eram artificiais, com globos oculares de retina azul. Aqueles olhos com certeza tinham identificadores aeroespaciais, pois o homem os observava desde o momento em que os viu entrar.
Nathan se aproxima com Vertigo e os outros runners ao seu lado. Todos portam seus rifles, além das pistolas ocultas em suas cinturas e pernas.
- Olá, Nathan. Acredito que esse encontro será pacífico, não?
O rapaz está tenso. Olhando ao redor, ele se vê cercado por homens-robôs em um bizarro covil terrorista.
- Olá, Huxley, prazer em conhece-lo. E sim, esse será um encontro pacífico.
O líder sorri.
- Então por que as armas? O Submundo não confia na palavra dos Trans-humanistas?
Nathan sorri de volta.
- Por quê? Deveríamos desconfiar dela? – responde o rapaz com outra pergunta.
Desafiado, o líder se irrita. Os sectários de Huxley ficam tensos, preparando-se para agir. Vertigo e os runners se entreolham.
- Você deveria confiar na hospitalidade de seus anfitriões, garoto, e não desrespeita-los com desconfiança e insultos.
O rapaz pressente o perigo.  
- Não quis desrespeita-los, mas acredito que se houver respeito e confiança mútua, ambas as partes se beneficiarão.
- Pois você não demonstrou os dois. – responde rudemente Huxley – Diga-me o que você quer, Inimigo de Estado.
- Uma aliança. Juntem-se ao Submundo e nos ajudem a derrubar as corporações e acabar com essa sangrenta rebelião.
Ao ouvirem-no, os trans-humanistas se silenciam por algum tempo. Em seguida eles gargalham longa e abertamente, com exceção do líder.
- Eu bem sei o que você conseguiu, Nathan, aliando-se aos americanos fanáticos da 4 de Julho. E o que você quer agora? Que os Trans-humanistas e seus arqui-inimigos puristas deem as mãos e marchem juntos em uma improvável coalizão?
Constrangido pelos sectários, o rapaz responde:
- As corporações nunca serão vencidas se as facções continuarem lutando entre si, e desunidos todos certamente morreremos.
Huxley se intriga.
- Ah, você realmente acredita na ameaça do Projeto Gemini? Se toda a metrópole, com seus milhões e milhões de habitantes morrerem, creio que será bem difícil para as corporações se livrarem de uma montanha de corpos.
- Se você está falando de espaço, as corporações tem o mundo inteiro lá fora para isso.
Ao fracassar em ridicularizar Nathan, o líder e seus companheiros se calam.
Com semblante sério, Huley diz:
- Você é ousado, Nathan, e muito corajoso, eu devo admitir. Você seria muito valioso em nossa facção. Mas eu tenho outros planos, e melhores do que essa aliança absurda que você acaba de sugerir.
Acenando para seus companheiros, eles apontam suas armas para os runners. Atrás deles aparecem dois soldados enormes vestindo exoesqueletos. Com voz robótica, um deles ordena:
- Larguem suas armas.
Nathan protesta.
- O que você está fazendo?!
- Não se preocupe, você é mais útil para nós vivo.
- Eu tenho runners espalhados por todo o distrito!
Então os sectários trazem os demais runners à presença de Huxley, fazendo-os se ajoelhar ao lado de Nathan.
- Você realmente pensou que podia esconder algo de mim em meu próprio território? Pobre rapaz ingênuo...
Temendo por sua vida, o rapaz pergunta:
- O que vocês vão fazer comigo?
- Por enquanto vamos prendê-lo, sua influência trará grandes vantagens para nós.
- Você não pode me prender! Isso causaria uma guerra com o Submundo!
- Não, Nathan, não queremos uma guerra com o Submundo. Na verdade, são os runners que se juntarão a nós após você os convencerem.
O rapaz se surpreende.
- Os runners jamais se juntariam à causa dos Trans-humanistas! Esta não é uma guerra ideológica, Huxley! O que proponho é combater um inimigo em comum!
- Não é desta forma que eu enxergo, Inimigo de Estado. – olhando para seus companheiros, o líder diz – Podem leva-los!
Sem poder resistir, Nathan é levado cativo pelos trans-humanistas. Um sectário se aproxima de Huxley e diz:
- Senhor, um dos runners conseguiu fugir. Devemos ir atrás dele?
- Não. – responde o líder – Lidaremos com o Submundo depois.

§

Ao entrarem em um longo corredor, Nathan vê oficinas com pessoas trabalhando. Ele nota que, assim como em qualquer outra facção onde esteve, eles vestem roupas inusitadas e exóticas. Haviam portas que davam acesso à vários outros estabelecimentos. Eles veem uma sala escrito “Manutenção Robótica”, em seu interior há centenas de braços e pernas robóticos pendurados no teto. Em uma estante o rapaz vê as modernas próteses biomecânicas, tão sofisticadas que se assemelhavam a membros de carne e osso por tamanha perfeição.
Haviam outras pessoas ali, mas elas não pareciam ser integrantes da facção. Elas passavam pelas estantes analisando as peças bioprotéticas como se estivessem comprando. É então que Nathan percebe, elas não eram integrantes e sim clientes. Ali funcionava um comércio clandestino onde a facção vendia seus produtos industrializados ilegalmente.
Eles passam por uma oficina e veem dezenas de poltronas onde os clientes se sentavam para consertar suas próteses. Os técnicos usam cabos e computadores para calibrar, reparar e substituir as próteses danificadas. Alguns clientes seriam verdadeiros aleijados sem suas próteses, pois alguns não tinham mais seus membros orgânicos, considerando-os frágeis, limitados e deterioráveis com o tempo.
Assim como a imensa maioria da população, os clientes optaram por substituir seus membros originais pelas máquinas de capacidades infinitas. Enquanto aguardavam nas poltronas, era interessante ver suas próteses se movendo sozinhas sobre as mesas. Na parte amputada de seus corpos, Nathan vê cabos conectados aos seus nervos e tendões, e isso lhe causava certa repulsão. Os técnicos trabalhavam com soldas elétricas, lixadeiras e parafusadeiras como modernos cirurgiões de androides.
Eles entram em um elevador. Descendo um nível do imenso galpão, Nathan vê um ambiente não muito diferente das sedes da 4 de Julho e da Bushido. Haviam hackers operando os computadores ao lado de centenas de servidores, os sectários andavam de um lado ao outro, parecendo ser muito inteligentes e elegantes em seus ternos e gravatas.
Em uma sala com paredes de vidro está escrito “Desenvolvimento”, em seu interior há engenheiros construindo protótipos de novas próteses e robôs. Ele também vê físicos experimentais testando a intensidade do raio laser de suas novas armas. Apesar do impressionante nível intelectual, científico e tecnológico de seus membros, Nathan não vê muitas pessoas armadas ali, dando a impressão de que essa organização preferia lutar virtualmente com sabotagem e espionagem do que com força bruta. Mas sua impressão estava inteiramente errada.
Ao som das máquinas pesadas trabalhando, ele vê a poderosa máquina de guerra trans-humanista. Passando pelas linhas de produção, equipamentos, armaduras e armas são processados, sendo achatados em prensas, soldados por robôs e montados por operários semi-humanos. Armaduras enormes são fabricadas, tão tecnológicas e versáteis que, ao testá-las, os usuários são automaticamente vestidos por elas. Sentado em uma caixa de madeira, um imenso soldado trans-humanista calmamente fuma seu charuto enquanto três operários consertam a pesada armadura em seu corpo.
Vestindo exoesqueletos, alguns sectários passeiam pelo lugar carregando pesadas caixas em seus braços. Telas de LCD e hologramas também são vistos, e alguns cabos de fibra ótica se confundem com as luzes de neon. Nathan percebe que eles são obcecados por tecnologia, verdadeiros idólatras. “Talvez este pequeno laboratório de novas ideias esteja tecnologicamente mais avançado do que a metrópole em pelo menos dez anos” pensa ele.
Em uma sala de testes, um soldado ativa um lançador de foguetes em seu ombro e atira contra um monte de palha, pulverizando-o. Isto muito impressiona os runners. Haviam armas em abundância ali, ele vê rifles, metralhadoras e pistolas pelo salão.
- Bem-vindos à sede dos Trans-humanistas. – diz Huxley.
Nathan é separado de seus companheiros. Ele é levado para outra sala no fim do corredor, com uma cama e uma janela de vidro inquebrável na parede.
Novamente o rapaz estava sozinho. Olhando pela janela, ele vê a sede da facção, um local estranho e cheio de fanáticos em sua luta pela supremacia tecnológica.
O rapaz não se esqueceu de como aquele pesadelo começou. O maldito terrorista no táxi, membro da Resistência Purista, querendo explodir aquela sede. Obviamente o local onde estavam naquele dia – à beira do muro de Contenção e do Setor L – estava muito longe dali, “mas e se outro homem-bomba aparecesse e finalmente terminasse o serviço?” pensa ele.

§

Dois dias se passam. Em seu confinamento, Nathan vê os sectários conversando normalmente, eles pareciam não se importar com a armadura pesada e fria em seus corpos. Então Huxley entra na sala e, trazendo uma cadeira, o convida para conversar.
- Boa tarde, Nathan. Espero que esteja gostando da sua estadia.
Sem dar atenção, o rapaz pergunta:
- Onde estão os meus amigos?
- Amigos? – surpreende-se ele – Não se preocupe, eles estão bem. Mas, mudando de assunto, posso te fazer uma pergunta pessoal?
Vendo o líder adiante de si, com seus seguranças enormes e armados no lado de fora, o rapaz percebe que não tem escolha.
- Sim.
- Você acredita em Deus?
Com a estranha pergunta, Nathan se intriga.
- O que quer dizer?
- Quero dizer se você acredita em uma força maior que criou a vida e o universo.
Um pouco desconfortável, ele responde:
- Sim.
- Por quê?
- Porque eu não acredito que tudo o que existe foi obra do acaso.
- Não, é claro que não... – responde Huxley, pensativo – E quanto à evolução? Você acredita no processo natural e evolutivo?
O rapaz pensa um pouco antes de responder.
- Eu realmente não sei nada sobre isso.
- Nós acreditamos na evolução. Na evolução da mente, do intelecto, da ciência... A inteligência evoluiu com o passar do tempo, e a sociedade a acompanhou através do conhecimento. O que as gerações anteriores não usufruíram, as gerações futuras certamente usufruirão, pois este é o seu legado sublime. Ora, se Deus, deuses ou extraterrestres nos criaram, nos dotando de inteligência, então a tecnologia é o legado dela, evoluída através dos séculos de descobertas e de desenvolvimento. – Huxley pausa por um momento e então continua – Devemos continuar de onde nossos antepassados pararam. Devemos ir além de onde os Homo Sapiens jamais foram. Nós, a raça humana, através dos avanços tecnológicos e da inteligência infinita, devemos evoluir!
Ao ouvi-lo, Nathan se silencia por um momento. “O discurso dos terroristas é sempre o mesmo, homens visionários com discursos inflamados” pensa ele. “Eles parecem viver em uma realidade exclusiva, arquitetada apenas para eles mesmos”.
Nathan responde:
- Através da tecnologia nosso mundo foi destruído. É isso o que pretendem com os avanços tecnológicos de vocês? Produzirem mais armas, travarem mais guerras até destruírem o pouco de mundo que ainda nos resta?
O trans-humanista se ofende.
- Não somos os portadores da morte e sim os preservadores da vida. Se você ainda não entendeu que para sobreviver temos que nos defender, então não posso fazer nada a não ser sentir pena de você.
Um sectário entra na sala e sussurra ao líder:
- Senhor, nosso território foi atacado pelos puristas.
- Houve baixas? – pergunta ele.
- Sim, senhor. Várias.
Assentindo, o líder olha para o rapaz e diz:
- Parece que mais gente está morrendo por sua causa, Nathan. Eis aí o resultado de sua rebelião.
Pesaroso, o rapaz abaixa sua cabeça.
- Vamos supor que não fosse você o Inimigo de Estado e sim outro azarado por aí. Você já pensou o que faria para escapar da rebelião causada por ele?
Nathan não tinha pensado nessa hipótese.
- Eu só pensaria em me esconder ou fugir.
- Fugir? – repete Huxley, quase debochando-o – E você já sabe para onde?
- Eu não sei. Provavelmente para a superfície.
Então o líder e seus seguranças deixam escapar um sorriso.
- Apesar de viver no Submundo há um ano, você não conhece bem a superfície, não é mesmo?
O rapaz não sabe nada sobre o vasto território obscuro da superfície.
- Sei o suficiente.
- Pois eu lhe ofereço algo melhor. Fique em nossa organização, junte-se aos Trans-humanistas. Você estará seguro aqui, podemos protege-lo. Você não precisará fugir ou se esconder, aqui a polícia nunca irá encontra-lo. Te daremos um abrigo, armas, até um uniforme se assim o quiser. Aceite! É muito mais do que te ofereceram.
Desta vez é Nathan quem sorri.
- Eu prefiro trabalhar com os terroristas, e não ser um deles.
O líder descarta sua resposta.
- E o que te faz pensar que pode escolher?
O rapaz se sente ameaçado.
- Você não pode me controlar.
- Tem certeza? Em nossa organização temos os mais talentosos cirurgiões plásticos, e nossas próteses biomecânicas são produzidas aqui, em nossa sede. E você sabe... Aparelhos de controle mental podem ser produzidos pela mais avançada tecnologia. Você não quer que um desses seja instalado em você, não é mesmo?
Nathan se apavora. Antes que pudesse responde-lo, Huxley se levanta e vai embora.


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