quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Sonata - Parte 30 - Clérigos do Recomeço


(Arte de Sergey Zabelin)

Uma semana se passa. Parado em frente ao apartamento de Laura, Nathan bate em sua porta. Demorando para atender, ele bate novamente. Sem resposta. Batendo novamente, o rapaz repete o gesto pelos próximos cinco minutos, mas ninguém atende. Abaixando sua cabeça, ele põe a mão nos olhos e respira fundo. Laura não queria vê-lo. Decepcionado, ele deixa o prédio e volta para o Submundo.
Caminhando pela superfície, ele passa pelos rejeitados e excluídos que habitam seu novo lar. Os neons colorem as fachadas dos comércios, mas também as pilhas de lixo nos becos escuros. Traficantes e usuários de drogas negociam nas ruas, cafetões nas esquinas vigiam suas prostitutas e os mendigos bebem tranquilamente nas calçadas. Ao levantar voo, os aerocarros sopram o vapor quente de seus propulsores. Nathan levanta a gola de seu casaco e se protege, passando em silêncio pelo local.
Ao entrar no Submundo, ele se dirige ao escritório de Database. Como sempre, ele encontra seu chefe analisando documentos de espionagem e ponderando de que forma agirá a seguir.
O rapaz pergunta:
- Database, você teve notícias de Laura?
Olhando para Nathan, ele nota seu semblante abatido.
- Olá, Nathan. – cumprimenta ele – Infelizmente, não. Lamento.
Ao ouvi-lo, a dor em seu peito crescia. O rapaz passava por um estado de comiseração.
- Se você souber de alguma coisa, pode me avisar, por favor?
Intrigado, o chefe pergunta.
- Tem alguma coisa em mente, Nathan?
Um pouco pensativo, ele responde:
- Tenho algo que queria falar com Laura, pessoalmente se possível.
Em tom compadecido, Database responde.
- É claro... Se eu souber de Laura, ficarei feliz em lhe informar, está bem?
Assentindo, o rapaz diz:
- Obrigado.
Então o rapaz se vira e deixa seu escritório.
Uma hora depois, Nathan e sua equipe se preparam para deixar o Submundo. Vestindo seus uniformes e recarregando suas armas, Database aparece e então pergunta:
- Você já se sente recuperado para sair?
Olhando para o chefe, ele responde:
- O tempo é precioso, Database. O quanto antes formarmos uma coalização, mais cedo a rebelião acabará.
Assentindo, o chefe diz:
- Tome cuidado dessa vez, Nathan. E boa sorte.

§

Antes da catástrofe de 2057, havia a Catedral de São Patrício em Nova Iorque, sendo esta uma proeminente edificação religiosa na cidade. Localizada no lado leste da 5ª Avenida, diretamente em frente ao Rockfeller Center, sua importância histórica e cultural era grande. Após várias reconstruções e restaurações, a magnífica construção gótica chegaria ao inevitável fim. A devastação do mundo deixou a catedral arruinada e destruída, tornando-se mais uma distante lembrança do passado que simplesmente deixou de existir. Seu estado atual é desconhecido, mas entre os nova-iorquinos que se mudaram para Sonata durante a construção da metrópole, sua lembrança permaneceu.
A espiritualidade é uma característica humana que nem o materialismo das corporações conseguiu extirpar. Alguns fieis e saudosistas das velhas religiões se juntaram e, semelhante ao suntuoso templo da Bushido, reconstruíram a antiga catedral no terraço de uma megatorre. Os fieis, hoje privados de seus livros sagrados e dogmas de antes, tinham um novo local de adoração.
Entretanto, as mensagens de paz e caridade não faziam parte desta nova religião, e hoje seus membros são bem diferentes daqueles do século 21.
Nathan sobrevoa o céu da metrópole e reconhece o local. Ele está no distrito de Midtown, situado no Setor C. A Catedral de São Patrício surge à sua frente, causando-lhe admiração. Por muito tempo ele pensou que a catedral era apenas um museu, uma edificação pública para fins culturais. Ele jamais pensou que, na verdade, aquela bela obra de arquitetura era uma edificação clandestina que abrigava criminosos.
Os Clérigos do Recomeço eram uma organização terrorista que lutava pela instauração do Estado Eclesiástico em Sonata. Religiões clandestinas são proibidas na metrópole, e eles têm a liberdade religiosa como sua principal causa.
Os runners são recebidos por homens de armaduras negras e pontudas. Ele carregam pistolas nos coldres, fuzis no peito e facas táticas nas pernas. Nathan se fascina ao ver correntes e amuletos religiosos enrolados em seus rifles. Mas apesar da aparência de santos, era óbvio que eles não saíam às ruas para pregar sobre a paz e o amor.
Escoltando-os para a catedral, eles passam pelas enormes portas de madeira e a adentram.
Dentro da catedral, Nathan vê uma belíssima igreja com vários bancos de madeira, pedestais com velas e vitrais coloridos. Acima, ele vê enormes candelabros pendurados no teto. No final do salão há um vasto altar, suas belas decorações são de mármore, madeira, flores, cerâmicas e cálices. No alto das paredes há várias esculturas de gesso, aparentemente tristes, representando os santos e mártires. O rapaz não sabe de quem se tratam, pois após séculos de controle à adoração, aquelas imagens só eram conhecidas aos membros daquela bizarra religião. Em Sonata, a liberdade religiosa era proibida por impor barreiras morais, sociais e filosóficas ao progresso científico promovido pelas corporações.
Em frente ao altar há um homem pregando para a congregação. O rapaz nota que a congregação não era apenas composta pelos membros da facção, mas também por cidadãos daquele distrito. Então ele olha para o pregador, um homem velho com o topo de sua cabeça raspado e seus cabelos formando um aro ao redor da careca. Ele veste uma longa veste preta e vermelha, e em seu pescoço há um enorme colar. Sua face transmite devoção e austeridade, típica dos grandes líderes religiosos.
Os fieis são homens e mulheres, e todos demonstram muita devoção e aceitação às suas palavras. Parando atrás deles, os runners esperam o velho terminar, ouvindo-o.
- Irmãos, esta noite vou fazer um tipo diferente de pregação. Esta noite vou falar-lhes de algumas calúnias e difamações históricas acerca de nossa santíssima religião.
Aparentando ter grande conhecimento histórico, o velho fala sobre as religiões do velho mundo, suas divergências e as causas de seu radicalismo no século 21. Ele fala sobre o monoteísmo predominante no ocidente, o politeísmo e as belas lições filosóficas mescladas à religião nas longínquas regiões do extremo oriente. Com grande habilidade, ele relaciona os fatos históricos e justifica cada um dos seus defeitos, contrariando a ideia de que as religiões foram as responsáveis pela degradação do mundo.
Em seguida o pregador fala de seu título, o “Profeta”. Imediatamente Nathan se intriga com sua pretensiosa auto-intitulação. Ele prossegue seu discurso direcionando sua ira àqueles que se escandalizavam de sua carreira profética. Ele é irônico e categórico ao responder.
- Ora, não são os profetas os fundadores das antigas religiões? A partir desta lógica, o que seria necessário para começar a nossa própria?
O pregador fala da necessidade natural do ser humano em crer e de seu intrínseco dom para a fé. Em um discurso inflamado, ele acusa as corporações de retirarem a liberdade espiritual do ser humano, confinando-os ao materialismo e alienando-os aos prazeres do consumismo industrial. Ele os acusa de atentarem os cidadãos aos seus instintos mais básicos e de lhes imputarem o que ele chama de disciplina industrial, uma espécie de educação coercitiva bem estruturada.
Montando um paralelo entre as religiões do passado e o regime corporativo do presente, o pregador profere seu discurso.
“Irmãos, conseguem ver até onde foram as religiões para se preservarem e manterem viva a sua fé? Erros foram cometidos, o pecado adentrou seus corações, os próprios ministros se corromperam! E eu vos pergunto: ainda haveria credibilidade nas igrejas para reunir e converter os fiéis sob a mancha sangrenta de seus próprios erros?”
Então ele bate veementemente em seu púlpito, assustando-os.
“Sim! E não apenas credibilidade, mas a obrigação moral! Eis a lição que a História nos ensina! A maior batalha está aí fora, só precisamos sair e ver! As corporações nos dominam e nos escravizam, e seu absoluto poder pune seus dissidentes com a morte. Ficaremos parados enquanto almas se perdem nas mãos destes despóticos governantes? Ora, a Igreja derramou sangue para preservar nossa fé, sangrou para que os fiéis tivessem acesso à Salvação. Permitiremos, pois, que a fé se perca na opressão dessas instituições doentes? Apesar de todo o esforço, a Igreja se enfraqueceu e perdeu sua influência. Cedo ou tarde todas as grandes obras caem... Mas o maior responsável pela sua queda foi a ignorância dos descrentes, guiados pela elevação de seu próprio egoísmo. E este mesmo egoísmo, sob a nova religião restaurada, não mais existirá!”
O pregador começa outra comparação.
“As corporações cometem seus erros todos os dias e se ensoberbecem acreditando que nos controlam. Mas elas cairão! Vocês não veem, irmãos? Estamos no limiar de uma revolução religiosa! A vitória pela fé! As corporações cairão e nós, pela graça divina, conquistaremos o poder e recriaremos um novo Estado eclesiástico, livre do materialismo imoral e da corrupção da mente! Glorificado seja nosso Deus!”
Então toda a congregação se levanta e exulta ao nome de Deus, mesmo Nathan não sabendo de qual deus se tratava. Louvando-o e aplaudindo-o, o velho pregador permanece em silêncio, contemplando seus fiéis com olhar satisfeito.
Escoltados pelos homens de armadura, os runners se aproximam do pregador. Um deles se curva e então diz:
- Trouxemos o Inimigo de Estado como desejado, Vossa Eminência.
O pregador olha para eles e responde:
- Meus paladinos, eu agradeço vossa cooperação. Vocês devem retornar ao seminário agora.
Os homens assentem e deixam os runners. De mãos dadas sob a larga manga, o pregador se apresenta:
- Boa noite, meu jovem. Eu sou o Profeta John August. Bem-vindo à sede dos Clérigos do Recomeço.
Nathan ouviu muito sobre os Clérigos do Recomeço na televisão. Uma facção terrorista voltada à conversão religiosa, com atuação frequentemente violenta. Quando Nathan pesquisou sobre essa organização, ele descobriu fatos interessantes e ao mesmo tempo grotescos sobre sua doutrina “pacífica” e “salvadora”.
Diferente dos manifestos políticos da 4 de Julho, os manifestos religiosos dos Clérigos demonstravam um forte apelo à conversão. Para convencer as pessoas, eles exibiam fatos históricos, as causas sociais e as origens da instituição em panfletos, sempre admoestando-se à uma beatitude máxima e póstuma chamada Salvação.
Por fim, é uma organização notória por sua hierarquia eclesiástica, seu fundamentalismo religioso e seus integrantes fanáticos. Entretanto, difere-se totalmente das verdadeiras doutrinas pacíficas e conciliadoras das antigas igrejas judaico-cristãs do século 21.
O profeta pergunta:
- Então você é o famoso Nathan?
Um pouco lisonjeado, o rapaz responde:
- Sim.
- Nathan – pondera ele – o Inimigo de Estado que as redes corporativas falam tanto. Não sei o que aconteceu no Setor L, mas creio que não foi sua intenção causar tantos problemas, não é mesmo? Na verdade, acho que foi um grande infortúnio você estar lá.
O rapaz se surpreende.
- Após todo esse tempo, você é a segunda pessoa que me fala isso.
- Mas, apesar do infortúnio, você é o Inimigo de Estado hoje. Meu rapaz, responda-me uma coisa, você se sente um privilegiado?
Nathan se intriga.
- Definitivamente não. Eu nunca quis isso, mas hoje reconheço que a luta que travamos é mais importante do que minhas escolhas ou meu destino.
- E é exatamente por isso que está aqui, não é? Por esta luta?
Convictamente, ele responde:
- Sim.
Ponderando um pouco, John August pergunta:
- E você gosta de lutar, senhor Nathan?
O profeta lhe pergunta algo sensível. O rapaz é pesaroso ao responder.
- Não, eu não gosto.
Ele parece desacredita-lo.
- Você está ciente de que agora é o Inimigo de Estado, não é?
Perspicaz, o rapaz responde:
- Acho que todos aqui somos.
- Não. – corrige ele – Para as corporações, somos apenas uma facção qualquer, um bando de terroristas e criminosos. Mas você... Você é o Inimigo de Estado declarado, um perigo imenso à metrópole e à segurança pública. Seu ativismo é perigoso, pois ameaça o poder incontestável das corporações e dá às massas a ilusão da libertação.
Referindo-se aos clérigos, ele ousadamente pergunta:
- Está dizendo que eu sou mais perigoso do que os próprios terroristas?
Virando-se para o altar, o profeta discursa:
- Terroristas? Olhe ao redor, Nathan. O que a instituição dos Clérigos do Recomeço representa para você? – antes que pudesse responder, o profeta continua – Trazemos correção e direção à metrópole, mas também o juízo e a justiça. Já trouxemos a Religião, agora traremos a Espada. Nós somos a ordem à esta metrópole caótica e gananciosa. Portamos a paz em oposição aos que carregam o tormento. Pregamos a verdadeira fé àqueles que estão perdidos. Pela fé, pela palavra e pela verdade conquistaremos a vitória, e instauraremos um novo regime nesta Babilônia corporativa. Aboliremos seu mundanismo, abominaremos seu apetite materialista e então criaremos um novo Estado, um governo eclesiástico baseado na fé. Não somos enganadores e populistas, não agimos segundo o mundo, e não buscamos a sabedoria dos homens. Não queremos fazer política mudando um sistema falho por outro corruptível. Não somos como o mundo que se deixa guiar por homens cegos para caírem na mesma cova. Trazemos a justiça de Deus! Não se pode ser amigo do mundo e ser amigo de Deus, pois quem deseja ser amigo do mundo se faz inimigo de Deus. A Igreja governará através das doutrinas e dos dogmas de nossa santíssima religião.
O rapaz se intriga. Sem poder resistir, ele novamente se deixa levar por suas próprias convicções, debatendo com um líder faccioso. Ele diz:
- Igreja e Estado devem se separar para que haja um governo justo. Não se deve impor a religião nos cidadãos e nem manipular a sua fé. Pode um líder espiritual governar um sistema político sem misturar legislação institucional com ortodoxia eclesiástica?
O profeta se surpreende com seu conhecimento. Virando-se novamente, ele encara Nathan nos olhos.
- Nós bem sabemos da importância da política, da economia, do comércio e da indústria, mas nós também sabemos de seus malefícios. Os avanços tecnológicos e científicos prejudicam as pobres almas sem direção. O que fez a tecnologia em todos esses anos além de desvirtua-las, lhes corromper a fé e ultimamente destruir o mundo? O desenvolvimento tecnológico será reservado apenas à nossa organização, sendo abolido totalmente da sociedade, hoje profanada físico e mentalmente pelos abomináveis implantes bioprotéticos e neurais.
Indignado, Nathan pergunta:
- Pretende afogar a sociedade na ignorância e no passado, dando largos passos de volta à Idade Média?
- A ciência afastou as almas de Deus, o materialismo alienou suas mentes e a tecnologia profanou seus corpos com objetos estranhos perante os olhos do Senhor. Os valores morais foram substituídos pela ganância e pelo consumismo. Vamos reverter esta obra de demônios e transformar a condenação em salvação. Os Clérigos do Recomeço expurgarão Sonata de toda heresia propagada impunemente ao longo desses anos. Toda abominação, corrupção e blasfêmia será finalmente arrancada de seu coração impuro.
John August parece delirar ao falar do dia da tomada do poder pelos Clérigos. Os fiéis também vibram e exaltam esse dia. Nathan tristemente percebe que novamente estava em outro antro de fanáticos e enlouquecidos.
Desafiante, o rapaz pergunta:
- Então é essa a mensagem de fé e paz que vocês querem passar? Clérigos armados e violentos condenando inocentes à morte? É desta maneira que querem restaurar a Igreja?
Ao ouvi-lo, os membros se iram com a sua ousadia. John August sorri e então responde:
- Creio que você não entendeu as intenções de nossa organização. Sim, meus paladinos portam armas e muitos julgam nosso ativismo como terrorista. Isso é aceitável já que ninguém desarmado vence uma revolução. Mas nem tudo será esse mar de sangue que você imagina ser. É claro, tomar o poder e criar uma nova sociedade não será um trabalho fácil, mas em nosso governo reinará um líder benevolente e atento às necessidades do povo.
Nathan arrisca uma pergunta, já suspeitando da resposta.
- E quem será esse líder?
O profeta responde:
- Eu.
Então os membros intitulam o profeta John August como “Vossa Santidade”. Ele recebe a veneração de seus seguidores, humilde e honrosamente, abençoando-os.
Ignorando aquela bando de malucos, Nathan vai direto ao assunto.
- “Eminência”... – diz ele, com ironia –, venho lhe propor uma aliança entre os Clérigos do Recomeço e o Submundo.
O profeta parece não compreender o rapaz.
- Nathan, vejo que você veio de longe e tem trabalhado bastante para encerrar a rebelião. Está tarde, você e seus companheiros devem estar cansados. Rogo-lhes que passem a noite em nossa sede. Discutiremos esse assunto amanhã. Até lá, pondere nas palavras que eu te falei.
Sentindo-se ameaçado, o rapaz pergunta:
- Pretende nos prender aqui também?
John August ri.
- E repetir o erro dos Trans-humanistas? É claro que não. Nosso compromisso é com a caridade. Não estamos aqui para prender ninguém, afinal, esta catedral não é um cárcere para os descrentes e os hereges.
Nathan não se convence.
- Por que eu confiaria em você? Após tudo o que aconteceu, como eu poderia?
Pacientemente o profeta responde:
- Vejo que há muitas dúvidas em sua mente. Descanse primeiro. Meus cardeais os levarão aos seus aposentos. Se depois de amanhã você quiser ficar e se juntar à nossa nobre causa, nós o receberemos de braços abertos.
Então os cardeais do profeta John August aparecem. Eles vestem longas roupas vermelhas e portam rifles em suas mãos. Apesar do conclave pertencer a uma hierarquia na extinta igreja católica, aquela organização utilizava-se desse título para designar seus mais valorosos soldados.
Os runners protestam a decisão de John August, mas pela diplomacia e aliança com os clérigos, Nathan não tem outra escolha.
Desconfiado, o rapaz então se deixa levar por aqueles homens.


sábado, 23 de fevereiro de 2019

Sonata - Parte 29 - Uma Visita Inesperada



Sentado em uma banqueta, Maynard come seu macarrão com legumes em uma barraca de comida chinesa sobre a plataforma. Chovia em Sonata, e no distrito de Obedience – Setor D, as pessoas voltavam apressadas para casa.   
Usando seus hashis, ele come assistindo ao noticiário na televisão. O apresentador informa sobre o aumento alarmante de atentados terroristas na metrópole no último ano. As facções entraram em um frenesi de violência desde o começo da rebelião e as autoridades culpavam exclusivamente o Inimigo de Estado. Em uma coletiva de imprensa, o Ministro de Segurança Pública diz:
“Encontraremos o Inimigo de Estado, esse Nathan Hill que nos causou tanto transtorno e sofrimento, e ele pagará por seus crimes contra a população sonatense”.
Alguém pergunta se há previsão para o fim das hostilidades. O ministro responde.
“Quando desmantelarmos essa organização paramilitar de rebelados, as hostilidades cessarão. Capturaremos o Inimigo de Estado, vivo ou morto se necessário”.
Maynard continua assistindo tranquilamente. A chuva cai no telhado da barraca e algumas gotas molham seu casaco. Virando-se, ele tenta se proteger quando percebe algo. Enquanto os pedestres passavam pela plataforma, ele vê algumas pessoas em outras barracas, sentadas distantes umas das outras, olhando para ele.
Levantando-se, ele paga o atendente e discretamente deixa o local.
Entrando no túnel, ele caminha com as mãos nos bolsos e de cabeça baixa, tentando se misturar. Olhando para trás, ele não vê ninguém, mas ainda se sente observado. Entrando na megatorre, ele caminha pelo corredor e se dirige ao elevador. Emitindo um som de sino, as portas se abrem e Maynard entra, apertando o botão de seu andar em seguida.
Antes das portas se fecharem, ele vê de relance duas pessoas estranhas entrarem no corredor logo atrás. Disfarçando, ele limpa sua garganta e olha para baixo.   
Dez minutos se passam. Maynard está calmamente encostado na parede do corredor. Ao ouvir o som da explosão, ele confirma sua suspeita. Alguém tentou invadir seu apartamento, explodindo-o com o objetivo de mata-lo.
Bocejando, Maynard olha para o seu relógio. Apertando os botões no painel da porta, ele entra em outro apartamento e deixa a porta aberta atrás de si. Passos são ouvidos no corredor. Duas pessoas correm apressadamente, aproximando-se de sua posição.
- Ei! – grita ele ao ver os dois – Estão procurando por mim?
Ao ligar a luz, os dois se espantam ao ver o mercenário sentado em uma poltrona de frente para eles. Sem dizer uma única palavra, um homem vestido de azul retira sua arma do coldre e aponta para o seu rosto. Maynard se joga para trás ao ouvir o disparo. Segundos antes, o mercenário havia ativado seu Campo de Força, fazendo o projétil se achatar contra uma parede verde e quase invisível. A parede protetora tremula calmamente, como se fosse o efeito de uma pequena pedra lançada na água.
Ao ver a bala cair no chão, o mercenário diz:
- Ah! Arma de fogo? Não sabia que mais alguém usava essas armas arcaicas e ultrapassadas...
Uma runner, companheira do homem de azul, aperta os botões na parede e logo aparecem mesas e sofás retráteis. Os dois se escondem atrás deles e continuam atirando. O mercenário retira de seu bolso um objeto cilíndrico, era o dispositivo de seu campo de força, e se repreende ao ver que se esqueceu de recarrega-lo.
Tirando uma bomba de gás de sua jaqueta, Maynard a atira contra os invasores. Ao estourar e exalar o gás, ele empunha sua pistola laser e se levanta. Antes de poder mirar, ele é surpreendido pela mulher apontando sua arma para seu peito. Atirando, o impacto o lança violentamente contra a parede.
O corpo do mercenário brilha em uma cor amarelada. Os invasores se intrigam ao vê-lo se levantar novamente e sem nenhum ferimento visível. Ele mexe em seu cinto e os invasores conseguem ver. O mercenário estava usando um cinto Escudo, um dispositivo altamente tecnológico, mais eficiente que os robustos coletes a prova de balas.
Maynard atira na mulher e ela cai atrás do sofá. O homem ainda está sufocando com o gás, então o mercenário corre em sua direção e lhe dá uma voadora, fazendo-o voar contra a parede do corredor. Os dois entram em luta corporal e Maynard, sendo mais experiente e mais bem treinado, o puxa de volta para o apartamento e o empurra contra a janela, fazendo-o cair junto com os estilhaços lá embaixo.
- Androide! – grita a mulher.
- Androide?! – intriga-se Maynard – Por acaso seu amigo é um robô?
Enfurecida, ela se levanta e entra em luta corporal com ele. Suas habilidades e agilidade são formidáveis, surpreendendo Maynard, que apesar de seu treinamento militar, sente dificuldade em manter a briga.
O invasor cai alguns andares, colidindo com alguns tubos de refrigeração. Ele consegue se agarrar a uma grade e interrompe a enorme queda, salvando-se da morte. Ferido e desarmado, ele olha para cima e começa a escalar de volta, ele tinha que ajudar a runner.
Além da dor em seu corpo, seus olhos, seu nariz e sua garganta ardiam devido ao gás. Além disso, ele vê que sofreu alguns danos em suas próteses biomecânicas.
Escalando a lateral da megatorre, ele passa por algumas janelas e consegue ver os apartamentos por dentro. O isolamento termoacústico das janelas inibe os ruídos e as pessoas nem mesmo percebiam sua presença. Em um apartamento, ele vê uma mulher fazendo atividade física com seu personal trainer holográfico. Acima, um homem vestido com uniforme de operário injeta drogas estimulantes em seu braço antes de ir trabalhar. Em outro apartamento, o invasor vê um garoto se masturbando enquanto assiste a um filme pornográfico no computador. O homem sentia um mórbido interesse ao espionar a privacidade alheia.
O tal Androide chega ao seu objetivo e, ao se agarrar na beirada, vê sua companheira sozinha e imóvel no meio da sala. Ele se joga para dentro e grita:
- Alexia!
- Não! Não se aproxime!
O homem corre em sua direção. Algo se espeta em sua jaqueta e o eletrocuta, fazendo-o gritar e cair no chão. Percebendo que o local estava seguro, Maynard se levanta, calmamente recarrega suas armas e por último abana suas roupas.
O mercenário se aproxima do invasor e o algema. Chutando-o levemente, ele diz:
- Ei, rapaz. Acorde.
A runner o encara ferozmente. Então ele pergunta:
- Quem são vocês? Quem os enviou aqui?
A mulher cospe em seu rosto. Maynard ri e balança negativamente a cabeça.
- Pela cara de vocês vejo que não são da polícia, são assassinos de aluguel. Vieram aqui para eliminar o alvo e encerrar o problema, sem satisfações ou perguntas desnecessárias... – Maynard sorri, ele gostava disso. – Quem os enviou? Cellgenesis? Cybersys? As facções? Ou foram os fascistas da polícia corporativa?
- Não somos da polícia. – responde o invasor.
- Então quem são?
Eles não respondem. Tirando sua arma da jaqueta, Maynard a aponta para a cabeça da mulher.
- Não! Eu falo o que quiser, mas não a machuque!
- Estou esperando. – responde ele com a arma ainda apontada para ela.
- Somos do Submundo.
O mercenário se surpreende. O Submundo é a sede dos rebelados e do Inimigo de Estado. Seus agentes são os runners, os famosos mercenários da superfície. Hackers, couriers, ladrões e até assassinos, não importava a classe. Eles agiam em causa própria, sem ligações políticas ou religiosas a nenhuma facção. São habilidosos e ágeis, o melhor subproduto que Sonata tinha a oferecer.
- Por que o Submundo me quer morto?
O homem ia responder, mas a mulher intervém.
- Me diga você.
Maynard pondera. Eles ouvem sons de sirene no lado de fora, as viaturas policiais estavam por perto. O mercenário ia dizer algo, mas uma bomba de luz se estoura, cegando seus olhos. Caindo de joelhos, ele põe as mãos no rosto e grita.
Alguns minutos se passam. A visão do mercenário retorna lentamente e então ele consegue ver. Os invasores haviam desaparecido.
As viaturas se aproximam, iluminando o ambiente com suas cores vermelhas e azuis. Os residentes dos outros apartamentos também aparecerem, fazendo olhares assustados e curiosos. Sem tempo para procurar pelos invasores, o mercenário se levante e diz para si mesmo.
- Tenho que sair daqui.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Sonata - Parte 28 - Para Sempre



Novamente deitado em uma mesa cirúrgica, os puristas cuidam das feridas de Nathan. O rapaz teve várias fraturas pela perna direita, mas graças aos seus avançados sistemas de regeneração celular e restauração óssea, Nathan estará curado em um décimo do tempo.
Movendo seus braços, ele percebe que não está mais amarrado como antes. O rapaz se felicita ao saber que, diferente dos trans-humanistas, os puristas não querem arrancar seus olhos e implantar um dispositivo capaz de transforma-lo em um morto-vivo.
Observando-o de longe, Laura pensa em seu amigo Vertigo. O hacker não voltou com eles. A decisão da garota foi difícil, mas – confiando na capacidade e experiência de seu amigo – ela escolheu por salvar Nathan e deixa-lo para trás. Mas agora essa decisão pesava em sua mente e ela se preocupa.
O celular de Laura toca. Ao ver o vídeo-chamada, ela o atende.
- Oi, Database.
A face de Database aparece iluminada por neons púrpuras.
“Laura, você está bem?”.
Parecia legítima sua preocupação. A runner se surpreende.
- Sim, chefe. Eu estou bem.
“Você deve estar muito orgulhosa, não? Trabalhando para os nazistas da fisiologia humana”.
- Eu sou uma runner, Database. Eu trabalho para quem me pagar. Aliás, eu não estou aqui por nenhum serviço, eu vim para resgatar o Vertigo.
O chefe sorri.
“E você foi pedir ajuda justamente para os puristas? Não haviam fanáticos mais civilizados e razoáveis para você procurar?”.
- E o que você queria que eu fizesse? Esperasse você decidir como iríamos reagir?
“É claro. Eu iria encontrar um jeito mais prudente de resolver isso”.
- Como? Pedindo ajuda à 4 de Julho? Chefe, eles mal estão se aguentando em pé após o confronto com a Polícia. E os puristas são inimigos mortais dos Trans-humanistas, não havia ninguém mais ideal para isso.
“Ainda assim, pedir ajuda aos puristas foi um pouco irresponsável. O fanatismo dessa facção é muito volátil. Expor o Submundo nos deixará vulneráveis a esses extremistas. Eu mesmo ia alertar o Nathan quando ele os contatasse pessoalmente”.
Mantendo-se firme, Laura responde:
- Lamento, mas já está feito. A única coisa que eu pensei era que Vertigo estava nas mãos de outros extremistas, iguais ou piores a esses, e em situações assim atrasos podem ser fatais.
Database concorda. Mudando de assunto, ele pergunta:
“É verdade o que eu ouvi? Que os Trans-humanistas iam implantar um sistema de controle mental em Nathan?”.
- Sim. Se eu não chegasse a tempo, o Inimigo de Estado seria um fantoche na mão dos mecanicistas agora.
O chefe parece se consternar.
“E quanto a Vertigo? Ele está com você?”.
A garota lamenta:
- Não. Houve confrontos e Nathan acabou gravemente ferido. Tive que socorre-lo e deixar Vertigo para trás.
“E onde Vertigo está agora?”
- Eu não sei.
Pesaroso, Database responde:
“Laura, eu não quero parecer insensível, mas a rebelião precisa do Inimigo de Estado para prosseguir. Sem ele, nossa luta estará fadada ao fracasso. Lamento pelo desaparecimento de Vertigo, mas ao salvar Nathan você agiu bem”.
- Eu sei. Essa “luta” é pela salvação de toda metrópole, mas também parece corresponder bem aos egoísmo de alguns megalomaníacos por aí.
Database ri.
“Pensaremos em encontrar o Vertigo depois, está bem? Estarei esperando-os no Submundo. Te vejo depois, Lótus”.
E então o chefe rapidamente encerra a ligação. Laura rosna de ódio, pois ele fez de propósito para ela não ter tempo de corrigi-lo como sempre fazia.
Nasier se aproxima. Parando ao seu lado, ele comenta:
- Apesar dos ferimentos, o Submundo não precisa se preocupar. O Inimigo de Estado vai ficar bem.
A garota não se importa.
- Bom para eles.
- Eu suponho que ele tenha uma aliança a nos propor, não é mesmo?
Sem nenhum interesse, ela responde:
- Talvez.
- Talvez...? – repete ele.
- Eu não sei, Nasier. É melhor você perguntar isso direto para ele.
O líder sorri.
- De fato. Quer me acompanhar enquanto tratamos do assunto?
- Não. – responde ela, pensando em outros assuntos – Daqui a pouco eu tenho que ir.
- Vai deixar o Inimigo de Estado sozinho? – intriga-se ele.
- Eu tenho cara de babá, por acaso?
Então Laura lhe dá as costas e se afasta. Nasier diz:
- Não se esqueça do nosso acordo, Laura. E principalmente do que eu já lhe disse.
Nasier se refere ao castigo dos traidores. Ela responde:
- Eu não esqueci.
Aproximando da mesa cirúrgica, o líder se apresenta oferecendo-lhe a mão. Nathan ainda estava atordoado, mas lhe estende seu braço para cumprimenta-lo. Ao ver que era um braço biomecânico, ele contém a repugnância, se controla e diplomaticamente aperta sua mão. Os médicos se surpreendem.
- Senhor Nathan, creio que você tem algo a nos propor.
- Onde eu estou? – pergunta ele, de antemão.
- Você está no distrito Conaissance, em meu hospital. Bem-vindo à sede da Resistência Purista.
O rapaz olha ao redor e vê os fanáticos ao redor de si. Ele se assusta.
- Senhor Nasier, quanto ao que aconteceu no distrito industrial Phalanx, eu não tive culpa. Eu estava no lugar errado e na hora errada. Aquilo foi um acidente.
Ao relembra-lo, os soldados puristas odiosamente o encaram. Levantando as mãos, o líder responde:
- Não se preocupe, Nathan. Isso é passado. Ademais, após o insucesso de meu agente, eu nunca quis machucar você.
Os médicos se entreolham. Nasier estava mentindo.
- Bem, eu não gostaria de conversar nessas condições, mas como o senhor já deve saber, eu tive complicações na sede dos Trans-humanistas. – comenta ele, sorrindo, mas os puristas se mantém friamente sérios, constrangendo-o – O que eu lhes proponho é uma aliança entre a Resistência Purista e o Submundo.
O líder olha para seus correligionários, levantando um silêncio desconfortável no local.
- Uma aliança? – pergunta ele, por fim – Uma aliança entre os runners delinquentes e rebelados do Submundo, e a filantrópica e honrosa facção da Resistência Purista?
 Sentindo-se ridicularizado, o rapaz espera ser escarnecido, mas não é isso o que acontece. Eles se mantém friamente quietos. Nathan então confirma:
- Exatamente.
Ponderando, o líder responde:
- Em nome da Resistência Purista, nós aceitamos sua proposta.
O rapaz se intriga. “Simples assim?” pensa ele.
- Então temos uma aliança?
- Certamente. Acreditamos que uma aliança entre o Submundo e a Resistência Purista será benéfica para ambos.  
Nathan não consegue esconder a surpresa.
- Bem... – começa ele – Em nome do Submundo, nós agradecemos sua aceitação.
Então, finalmente, todos sorriem. Mas Nathan, ao vê-los rindo, acha tudo aquilo medonho e preferiria que eles tivessem permanecido sérios.

§

Horas depois, passado o efeito da anestesia, Nathan nota algo estranho em sua aparência. Ele estava usando uma roupa verde, branca e prateada, o exótico uniforme da Resistência Purista. Em seu peito há o emblema da facção, o desenho simplório de um homem de braços abertos.
Em uma pequena mesa ao lado da cama, ele vê um panfleto. Ao pegá-lo, Nathan lê o título: "Introdução ao Humanismo”. Ele entendeu a mensagem, eles estavam tentando doutrina-lo.
A câmera no alto da parede o monitorava, eles sabiam que Nathan estava acordado. Aproximando-se com dificuldade da porta, ele aperta o botão, mas ela não se abre. Irritado, ele bate com os punhos fechados na folha, incitando-os a abri-la. Então ele ouve a porta se destrancar.
A porta se desliza para cima. Ao sair, ele caminha pelo hospital. Os sectários olham para ele, os médicos, os enfermeiros, os soldados puristas... Mas ninguém lhe diz nada. Com suas armas em punho, alguns guardas caminham em sua direção, mas passam por ele e vão embora. Confuso, o rapaz continua seu caminho e dirige-se até a saída.
Parando em um balcão, ele vê uma recepcionista e pergunta:
- Vocês sabem onde está a Laura?
Confusa, ela responde:
- Quem?
- Ele está falando da runner. – comenta um segurança próximo.
- No terraço. – responde ela.
Indicando-lhe um elevador, Nathan agradece e então deixa o saguão do hospital.
Pelos monitores, duas pessoas o observam da sala de segurança.
- Devo dar a ordem, senhor?
- Não. – responde Nasier – Deixo-o que vá. Já conseguimos nossa aliança, o próximo passo virá a seguir.
- E quanto à runner? Sua parte no acordo é extremamente valiosa para a nossa causa.
- Não se preocupe. – tranquiliza o líder – Conseguiremos o que queremos, no tempo certo.

§

No terraço do hospital, Laura observa a paisagem à frente. Anoitecia no distrito Conaissance e em poucas horas a runner sairia para trabalhar. Ela sempre preferiu os trabalhos à noite, pois além de gostar de se mesclar à escuridão, a temperatura era mais agradável quando as megatorres bloqueavam a luz do sol.
Caminhando com dificuldade, Nathan se aproxima atrás dela.
- Laura?
Fazendo uma expressão de tédio, a garota diz:
- Oi, Nathan.
- Você já vai?
Sem olha-lo nos olhos, ela responde:
- Sim.
- Eu só queria agradece-la – começa ele – por ter me socorrido na sede dos Trans-humanistas.
- Não precisa. Eu fui lá por Vertigo, não por você.
Com a dura resposta, o rapaz se assusta.
- Mas você escolheu a mim, me socorrendo no lugar de Vertigo.
- Vertigo é um hacker experiente e sabe se cuidar, e não estava tão ferido quanto você.
- Mas ainda assim você se importou. Você podia ter me deixado lá, mas não me deixou.
Ainda sem olha-lo nos olhos, ela responde:
- Então é melhor você agradecer a ele, pois foi ele quem me pediu para socorre-lo.
Irritado, o rapaz pergunta:
- Você é sempre assim tão fria?
Ainda entediada, ela responde:
- Dependendo da pessoa, sim.
- Eu só queria agradece-la por salvar a minha vida. Só isso. Não precisa ficar sempre na defensiva.
A garota ri.
- E por acaso eu preciso me defender de você?
Confuso, Nathan responde:
- Não, mas... Eu só acho que não vai doer se você me der um sorriso.
Cansada daquela conversa, Laura diz:
- Eu tenho que ir.
- Não, você não vai!
Em uma atitude impulsiva e inesperada, o rapaz a segura pelo braço. Arregalando os olhos, Laura vira sua cabeça e, quase vociferando, diz:
- Tire sua mão de mim, senão eu a quebro.
- Então quebre, então! – exclama ele, assustando-a – Pode quebrar minha mão, minha cara, meu corpo inteiro se você quiser! Mas me deixe morrer desta vez, sem me socorrer por necessidade ou pena como fez da última vez! Mas agora você vai ficar aqui e você vai me ouvir!
Puxando seu braço de volta, a garota – um pouco intrigada – responde:
- Não seja ridículo! Eu não tenho nada para falar com você. Você é só mais um garoto fraco dos níveis superiores, que sem merecer se tornou o Inimigo de Estado. A rebelião precisa de alguém forte, decido, ou seja um líder de verdade.
Sempre que podia, Laura o desprezava. Afrontando-a, Nathan retruca:
- Que também não é você. Eu ouvi boatos, Laura, e sei que você esconde algo em seu passado. Você não é tão forte quanto parece. Ou será que devo te chamar por seu codinome? "Lótus"...?
Imediatamente a garota se enfurece. Fechando o punho, ela se prepara para soca-lo, mas ao olhar para seu rosto ela hesita. Algo no olhar de Nathan a aplacava.
- Eu não tenho que dar satisfações a você! – responde ela, toda confusa – Eu estou indo. Salvar você foi um erro.
Caminhando para o parapeito, o rapaz diz:
- Ora, vejam só! A corajosa e durona runner foge mais uma vez! Vá, Laura, fuja! Pois fique você sabendo que a única pessoa capaz de te fazer fugir sou eu!
Ao entrar em sua mente, a garota subitamente para. Mais uma vez irritada, ela se vira e diz:
- Como você...
Mas ela não pôde terminar sua fala. Aproximando-se por detrás dela, Nathan a segura pela cintura e a beija. No começo ela tenta empurra-lo, mas seu corpo se amolece e ela o corresponde, tendo sua língua e seus lábios finalmente experimentados pelo apaixonado rapaz.
A garota não entende. Nathan era tudo o que ela desprezava em um homem, mas no redemoinho de emoções confusas e sentimentos sinceros, ela não conseguia pensar com clareza. Naquele momento tudo era o mais sublime prazer, puro e sem maldade, que ela experimentava na vida pela primeira vez.
O tempo passa devagar, segundos ou minutos, ela não podia dizer. As mãos firmes de Nathan a puxam para mais perto, as mãos da garota tocam suas costas e sua nuca, ela sentia um calor mais forte que o fogo que a queimava, mas não doía.
Ao retornar a razão, ela o empurra e finalmente se desvencilha. Ela enxuga os lábios com a roupa, mas vê Nathan lambendo os seus, não querendo perder nada do néctar da garota.
Envergonhada, ela tenta disfarçar a timidez dizendo:
- Isso foi um erro.
Mas o rapaz não responde nada, ele apenas fica contemplando-a em silêncio. É então que Laura percebe. Os olhos do rapaz tinham docilidade, ternura e principalmente inocência, algo que – devido à adversidade do ambiente – não se encontravam na superfície. De fato, a superfície era um local para pessoas duras, perspicazes e embrutecidas pelas ásperas condições de sobrevivência, mas Nathan não era de lá. Vindo dos níveis superiores, o rapaz cresceu longe dessa triste marginalidade, preservando em si a decência de quem tinha um coração bom.
Os olhos de Nathan irradiavam amabilidade, e essa inextinguível luz se alastrava por todo o seu rosto. Pela primeira vez Laura pôde ver quem era o rapaz por trás do Inimigo de Estado, o jovem e alegre Nathan.
Mas a garota não compartilhava dessa luz. Ela era mais uma nativa dos níveis inferiores, atribulada e solitária, crescendo longe dos confortos que a sociedade corporativa podia lhe dar. Como tudo o que cai do topo das megatorres e alcança o solo, ela era uma rejeitada da superfície, um dos milhares de detritos que são lançados lá embaixo para apodrecer. Laura não era um produto da rebelião e sim um subproduto da sociedade que se esforçava para oculta-la, e dela se esquecer.
Sendo uma rejeitada social, criada em um local opressivo e com objetivos pessoais bem egoístas, a garota se lamenta por dentro.
- Eu tenho que ir. – repete ela.
A garota lhe dá as costas. Nathan, do fundo de seu coração, diz:
- Eu te amo.
Lembrando-se dos fantasmas que assombram sua vida, Laura olha para trás e pergunta:
- Para quê?
Nathan responde:
- Para sempre.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Sonata - Parte 27 - Extração



- Você teve muita coragem por ter vindo aqui.
Laura o ignora e então pergunta:
- Vai me ajudar ou não?
O homem encapuzado olha para seus companheiros, sete ao todo. Apesar da baixa luminosidade no túnel, a runner conseguia vê-los nas sombras e na penumbra.
- E colocar o Setor P inteiro na mira dos nossos inimigos e da Polícia?
A garota ri.
- Isso vocês já fazem sozinhos.
O homem pondera.
- Nada feito. O risco é alto demais.
Irritada, Laura pergunta:
- Então é isso? Você vai me dar as costas quando eu mais preciso?
- Não se trata disso, Lótus. – responde ele – É como eu disse, o risco é alto demais.
Virando-se, os homens se preparam para ir embora. Pressionada, a garota faz uma última apelação.
- Você não diria não se fosse a minha mãe.
Ao ouvi-la, o homem para. Com as palavras de Laura, sua mente se enche de memórias. Um pouco confuso, o homem abaixa sua cabeça, respira fundo e lentamente se volta para ela.
- Ninguém, Lótus – começa ele – diria não à sua mãe. Nem eu, nem meus inimigos e nem ninguém. Sua mãe era uma lenda, um mito entre os runners, e seu legado jamais será esquecido.
Animada, a garota pergunta:
- Então você vai me ajudar...?
- Mas – interrompe ele – você não é sua mãe, e eu não posso tomar uma decisão baseado somente nisso.
- Mas eu já provei meu valor antes, ao trabalhar tantas vezes para vocês no passado.
- Não, Lótus, você fraquejou. Sua mãe jamais fraquejaria em serviço. Você até abandonou seu codinome por isso. Como é que você chama a si mesmo agora? Laura...?
Ainda pressionada, ela responde:
 - Eu estou disposta a ressuscitar a Lótus se for preciso, até a me equiparar com a minha mãe.
O homem se impressiona. Encarando-a, ele se aproxima. Percebendo o risco, Laura enrijece o corpo, preparando-se para agir.
- Responda-me uma coisa, Lótus. A vida de seu amigo vale tanto assim?
Amolecendo por dentro, ela sente as lágrimas se formarem em seus olhos. Ela se reprime, pois por mais que se esforçasse, ela jamais seria como sua mãe, uma lenda de verdade. Ela responde:
- Totalmente.
Assentindo, o homem diz:
- Está bem. Nós ajudaremos você.
Controlando seu sorriso, Laura dá as costas e então vai embora. Mas o homem a interrompe dizendo:
- É melhor você cumprir a sua parte no acordo, Lótus. Nós não toleramos traidores.
Dado o recado, a garota se vira em silêncio e continua seu caminho.

§

Acordando em seu confinamento, Nathan abre os olhos e se levanta. Ao olhar pela janela, ele observa sua prisão, a sede dos Trans-humanistas. As máquinas de produção não paravam de funcionar, e isso muito o incomodava. Os irritantes ruídos das serras e dos martelos faziam sua cabeça doer, tirando sua concentração.
Algo chama sua atenção, a porta de sua cela estava aberta. Apertando o botão, a porta se desliza e ele caminha para fora. Ao seu lado aparecem dois guardas, eles o encaram e exibem seus braços protéticos. De repente os antebraços se desmontam, formando armas lasers. Nathan se surpreende, ele entendeu o recado.
Encostando-se na parede, ele novamente olha para a fábrica à sua frente. Distraído em seu mau-humor, alguém lhe pergunta:
- Com licença, está tudo bem?
Olhando para a esquerda, ele vê uma jovem garota de cabelos negros vestindo o uniforme da facção.
- Sim.
- Você é um novato? Você parece perdido.
O rapaz não acredita. “Como ela não reconheceu o Inimigo de Estado?” pensa ele.
- Não exatamente.
A garota se apresenta e lhe estende o braço. Nathan se assusta ao ver uma arma laser onde deveria haver uma mão.
- Oh, me desculpe. Isso sempre acontece. Ainda estou me acostumando.
A arma se retrai para dentro de seu braço e os dedos aparecem, formando uma mão. Um pouco sem jeito, ele lhe estende seu braço e também a cumprimenta.
- Vejo que você também tem um braço protético. Por que o substituiu? Está escondendo uma arma também?
- Não estou escondendo arma nenhuma.
- Então por que o substituiu?
- Porque eu precisava aumentar meu desempenho no trabalho.
Ao ouvi-lo, a mulher pensa que ele está brincando. Nas facções, todos repudiam o trabalho nas corporações, e o combatem trabalhando ilegalmente para si próprios como os operários ali.
- Bem, eu costumava trabalhar nas corporações também, mas logo que eu conheci a nobre causa dos Trans-humanistas, deixei essa vida de escravidão e alienação para trás. Hoje eu sou uma recruta, uma novata na facção, mas já posso dizer que o combate ao consumismo...
Interrompendo-a, o rapaz diz:
- Desculpe-me, mas eu quero ficar sozinho.
Então ele lhe dá as costas e volta para sua sala. Naquele momento ele não tinha a mínima vontade de ouvir uma garota irritante falar de seus motivos ingênuos para se filiar a uma organização terrorista.
Dez minutos depois, Huxley aparece e pergunta:
- Vejo que você já está se enturmando com os novos recrutas.
Irritado, Nathan pergunta:
- Eu quero ver meus amigos.
- Eu já disse que eles estão bem.
- Não interessa! Eu quero vê-los agora!
Olhando para seus seguranças, o líder suspira e então responde:
- Creio que devo conceder-lhe um último desejo antes da operação.
- Que operação? – intriga-se ele.
Evasivo, Huxley responde:
- Uma coisa de cada vez, Nathan.
Levando-o pelos corredores, os sectários lhe indicam a cela de seus companheiros. Vertigo e os outros estão sentados no piso, aparentando irritabilidade e preocupação.
- Vertigo!
Ao ver Nathan, o hacker se levanta e calorosamente aperta sua mão.
- Você está bem, você foi ferido? – pergunta Nathan.
- Não, mas não se preocupe comigo. É você quem eles querem.
Sussurrando discretamente, o rapaz pergunta:
- Você conseguiu contatar os outros?
- Não. – responde ele – Eles têm bloqueadores de sinal por toda a base.
O rapaz se lamenta.
- Muito bonita a amizade de vocês, mas o Inimigo de Estado dever ir agora. – diz o líder.
Vertigo o afronta.
- Você deveria se envergonhar, Huxley! Depois do valioso serviço que prestei a vocês, é assim que você retribui?
O líder não compreende.
- Do que está falando, rapaz?
- Nós dois sabemos que se eu não tivesse conseguido o módulo EMP para vocês, seus soldados estariam morrendo tentando roubá-lo até hoje. 
O runner estava certo. Huxley perdeu dez dos seus soldados tentando roubar o módulo EMP da corporação Cybersys. Fundamental para os seus planos, ele pretende fritar os sistemas corporativos usando o pulso eletromagnético, reprogramá-los e usá-los contra elas próprias. Seria uma guerra virtual aberta no ciberespaço e discreta na realidade, onde as turrets, bots e securitrons se voltariam contra os agentes corporativos, eliminando-os. Com a vantagem em mãos, os Trans-humanistas poderiam deixar suas bases e atacar abertamente, tomando o poder e moldando a sociedade segundo seus mirabolantes planos.
- Não seja soberbo, Vertigo. Se o que eu planejo for executado hoje, sua contribuição para a nossa causa será apenas uma fração do que nós vamos conseguir.
Puxando Nathan pelas roupas, os seguranças o tiram da sala. Levando-o pela sede, eles passam pelas linhas de produção e o rapaz entra em uma ala hospitalar de paredes brancas. Entrando por uma porta dupla, ele vê uma mesa cirúrgica com um médico e enfermeiras esperando-o.
O ar condicionado deixa a temperatura agradável. A porta fechada conseguia isolar os irritantes ruídos das máquinas trabalhando ao longe. Deitando-o na mesa, os sectários amarram seus braços e pernas. Apavorado, o rapaz pergunta:
- O que vocês vão fazer comigo?
- Por acaso você está familiarizado com a tecnologia dos VANTs, Nathan?
O rapaz não compreende.
- Do que está falando?
- Esta tecnologia era muito conhecida no início do século 21. Os VANTs, ou Veículos Armados Não Tripulados, eram os famosos bombardeiros drones, dos quais podiam fazer travessias ultramarinas e serem controlados remotamente por operadores em solo americano. Hoje nós, os Trans-humanistas, aprimoramos essa tecnologia, introduzindo a inteligência artificial e instalando-a em hospedeiros humanos. Desta forma, conseguimos anular seus sinais e ondas cerebrais e controla-los remotamente, como ciborgues involuntários, escravos dos nossos comandos. – pegando um frasco na estante, Huxley exibe olhos artificiais a Nathan – E este é o dispositivo onde tudo isso é possível. Ao o instalarmos em você, seus sinais cerebrais serão anulados e você obedecerá somente a nós, e assim como os VANTs, seus olhos serão como as câmeras que usaremos para monitorar seu progresso.
Então um médico aproxima uma mesa contendo vários utensílios cirúrgicos. Ao ver os afiados bisturis, Nathan se desespera.
As enfermeiras tentam esterilizar seu rosto com um pano, mas era difícil com o rapaz gritando e esperneando o tempo todo. Alguém injeta algo em seu braço, fazendo-o se atordoar. O rapaz então luta para não perder a consciência.           
Vestindo uma máscara cirúrgica, um médico pega um bisturi e o aproxima de seu olho. Nathan sente a expectativa agoniante do corte esmaga-lo com a aproximação. Então algo acontece.
As luzes se apagam de repente, escurecendo totalmente a sala. Cinco segundos depois, as luzes de emergência se acendem, mas Huxley tem uma terrível surpresa. Toda a equipe médica estava desacordada no chão, com exceção de uma.
Vendo uma enfermeira mexer em algo sobre o balcão, o líder exasperadamente pergunta:
- Mas o que é que está havendo aqui?!
Então ela se vira e, rápida como um relâmpago, atira uma injeção em seu pescoço. Huxley arregala os olhos, mas incapaz de resistir ao efeito, ele se desaba em seguida.
A enfermeira desamarra Nathan. O rapaz vê apenas uma mulher de máscara e touca cirúrgica, mas daqueles olhos ele jamais se esqueceria.
- Laura...?
A garota olha para ele. Autoritária, ela somente responde:
- Silêncio.
Levantando-o, ela passa seu braço sobre seus ombros e o leva pelos corredores.
Ouvindo os guardas robóticos se aproximando da ala hospitalar, Laura toca o comunicador em seu ouvido e diz:
- Ativem as bombas EMP agora!
Então uma onda azulada e brilhante de explosões varre a sede dos Trans-humanistas, fritando os equipamentos eletrônicos e debilitando a movimentação dos soldados.
“Laura, responda”. – chama a voz no comunicador.
- Estou ouvindo.
“Onde você está?”.
- Estou indo buscar o Vertigo e os outros.
“Rápido! Não temos muito tempo”.
Atravessando a linha de produção, um sectário mira seu braço à runner e tenta ativar sua arma acoplada. Mas o antebraço sofre mal funcionamento e se desativa, soltando faíscas pelo ar. Os demais soldados estavam caídos, tendo espasmos enquanto sofriam a pane em seus sistemas.  
Finalmente alcançando seu objetivo, Vertigo a avista e exclama:
- Laura!
- Espere um pouco, eu vou te tirar daí.
Sentando Nathan no chão, ela retira um decodificador do bolso e tenta destrancar a porta. Enquanto está ocupada, Vertigo olha para o corredor e novamente grita:
- Laura! Cuidado!
Uma trans-humanista, a mesma que Nathan conversou instantes atrás, aparece portando um lança-mísseis e atira contra os runners. Laura se abaixa e o míssil explode a porta da cela, espalhando seus pedaços por toda parte. Fogo e fumaça se alastram pelo corredor. Com grande agilidade, Laura saca sua arma e atira na recruta. O tiro acerta sua garganta e ele cai em espasmos e esguichos de sangue no chão.
Ainda atordoados, a garota indica o caminho aos dois runners e eles fogem pela sede da facção. Mas ao procurar por Nathan e Vertigo, ela tem uma terrível surpresa. Os dois estavam gravemente feridos.
Vertigo tem ferimentos pelo corpo, mas resiste bem à dor. Nathan, por outro lado, tem um ferimento grave em sua perna e agoniza dolorosamente no chão. É então que Laura percebe. O rapaz agoniza, fazendo expressões de choro e dor. As lágrimas do rapaz lhe revelam algo, Nathan não era um experiente e embrutecido runner da superfície como eles, nem mesmo um combatente das facções. Naquele momento, Nathan era apenas um rapaz frágil e indefeso que se esforçava para provar algo, para conquistar o seu espaço e principalmente impressionar alguém, passando por todo o tipo de perigo e arriscando a sua vida se fosse preciso. E este alguém era a Laura.
A garota sente pena dele, sua fragilidade lhe causava desprezo. Dando-lhe as costas, ela então vai socorrer o seu amigo, afinal aquela era a razão dela estar ali. Mas ela hesita. Olhando para trás, ela pensa: “Nathan é um fraco, um imprestável, um menino escondido atrás de uma máscara de herói libertador, mas...” ela pondera enquanto emoções e emoções inundam sua mente. “Por que eu estou sentindo pena dele?”
Vendo sua amiga parada e confusa, o hacker diz:
- Laura, vá! Eu consigo me virar aqui.
Voltando, ela se agacha e socorre o rapaz. Nathan chora dolorosamente. Novamente suspendendo-o, ela se levanta e o conduz para a saída.
Tiros e explosões são ouvidos ao longe. Enquanto avançam, Nathan deixa um rastro de sangue pelo caminho. Passando por uma abertura feita na parede, os dois chegam a uma plataforma debaixo do galpão. O vento sopra suas roupas, subindo o cheiro de sangue e lhe causando aflição. Mas ele também sente outro cheiro, um milhão de vezes mais agradável, forte e ao mesmo tempo suave, capaz de imediatamente aplacar a sua dor. Era o cheiro de Laura, que se exalava de seu pescoço e seus cabelos e lhe deixava louco.
Adiante eles veem um furgão escondido. Então quatro homens vestidos com roupas verdes, brancas e prateadas aparecem. Sua aparência austera e olhar fanático deixavam o rapaz tenso, mas eram seus corpos que lhe chamavam a atenção, puramente de carne e osso. Então o rapaz sente medo. Aqueles homens eram da Resistência Purista.
O mais velho, provavelmente seu líder, olha para Laura e diz:
- Está atrasada.
- Nasier, o Inimigo de Estado está ferido e precisa de tratamento médico urgente.
Abrindo a palma de suas mãos, o homem responde:
- E por acaso eu não sou médico? Vamos, entre no furgão. Precisamos sair logo daqui.
Levantando voo, o furgão avança pelas chaminés e deixa o distrito de Entropia para trás.

         

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Sonata - Parte 26 - Trans-humanistas



Entardecia em Sonata. Em um aerocarro com Vertigo e mais dois runners no banco de trás, Nathan segue em direção à sede dos Trans-humanistas. O rapaz estava com um mal pressentimento quanto aquela missão, mas prefere não pensar nisso. Levando seu rifle entre seus pés, ele pretende se garantir se algo der errado. Olhando ao redor, ele vê os os aerocarros com os outros runners. Sabendo que todos estão fortemente armados, ele se tranquiliza.
Eles avançam mais um pouco. Nathan consegue ver a muralha da Contenção nos limites da metrópole. Abaixo havia um distrito industrial chamado Entropia – Setor T, onde se localizava a sede daquela facção. Eles descem até chegarem a um galpão sobre uma enorme plataforma de concreto e aço.
Caminhando pela plataforma, Nathan olha ao redor e vê os caminhões, gruas e containers. Alguns operários estão trabalhando e parecem não nota-los ali. Era como se fosse mais um local de trabalho e não houvesse atividade criminal aparente. Ao entrar por uma porta, o rapaz passa por seguranças robóticos semelhantes aos que ele viu na prisão.
Adiante de si eles veem um grupo de sectários aguardando-os. Ao vê-los melhor, Nathan se assusta. Alguns deles eram tão mecanizados que não se pareciam pessoas, eles se pareciam ciborgues.
O líder do grupo, um homem alto e loiro, os recebe. Vestido com roupas brilhantes como o plástico, suas vestimentas de estilo moderno o assemelhavam a um cirurgião, um tipo bizarro de cientista louco dos filmes clássicos de terror. Nathan nota que seus braços e pernas eram biomecânicos, suas próteses, diferentes do braço bioprotético do rapaz, eram as mais sofisticadas do mercado, tão realistas que apenas bons observadores poderiam identifica-las. Nathan também nota que os olhos do homem eram artificiais, com globos oculares de retina azul. Aqueles olhos com certeza tinham identificadores aeroespaciais, pois o homem os observava desde o momento em que os viu entrar.
Nathan se aproxima com Vertigo e os outros runners ao seu lado. Todos portam seus rifles, além das pistolas ocultas em suas cinturas e pernas.
- Olá, Nathan. Acredito que esse encontro será pacífico, não?
O rapaz está tenso. Olhando ao redor, ele se vê cercado por homens-robôs em um bizarro covil terrorista.
- Olá, Huxley, prazer em conhece-lo. E sim, esse será um encontro pacífico.
O líder sorri.
- Então por que as armas? O Submundo não confia na palavra dos Trans-humanistas?
Nathan sorri de volta.
- Por quê? Deveríamos desconfiar dela? – responde o rapaz com outra pergunta.
Desafiado, o líder se irrita. Os sectários de Huxley ficam tensos, preparando-se para agir. Vertigo e os runners se entreolham.
- Você deveria confiar na hospitalidade de seus anfitriões, garoto, e não desrespeita-los com desconfiança e insultos.
O rapaz pressente o perigo.  
- Não quis desrespeita-los, mas acredito que se houver respeito e confiança mútua, ambas as partes se beneficiarão.
- Pois você não demonstrou os dois. – responde rudemente Huxley – Diga-me o que você quer, Inimigo de Estado.
- Uma aliança. Juntem-se ao Submundo e nos ajudem a derrubar as corporações e acabar com essa sangrenta rebelião.
Ao ouvirem-no, os trans-humanistas se silenciam por algum tempo. Em seguida eles gargalham longa e abertamente, com exceção do líder.
- Eu bem sei o que você conseguiu, Nathan, aliando-se aos americanos fanáticos da 4 de Julho. E o que você quer agora? Que os Trans-humanistas e seus arqui-inimigos puristas deem as mãos e marchem juntos em uma improvável coalizão?
Constrangido pelos sectários, o rapaz responde:
- As corporações nunca serão vencidas se as facções continuarem lutando entre si, e desunidos todos certamente morreremos.
Huxley se intriga.
- Ah, você realmente acredita na ameaça do Projeto Gemini? Se toda a metrópole, com seus milhões e milhões de habitantes morrerem, creio que será bem difícil para as corporações se livrarem de uma montanha de corpos.
- Se você está falando de espaço, as corporações tem o mundo inteiro lá fora para isso.
Ao fracassar em ridicularizar Nathan, o líder e seus companheiros se calam.
Com semblante sério, Huley diz:
- Você é ousado, Nathan, e muito corajoso, eu devo admitir. Você seria muito valioso em nossa facção. Mas eu tenho outros planos, e melhores do que essa aliança absurda que você acaba de sugerir.
Acenando para seus companheiros, eles apontam suas armas para os runners. Atrás deles aparecem dois soldados enormes vestindo exoesqueletos. Com voz robótica, um deles ordena:
- Larguem suas armas.
Nathan protesta.
- O que você está fazendo?!
- Não se preocupe, você é mais útil para nós vivo.
- Eu tenho runners espalhados por todo o distrito!
Então os sectários trazem os demais runners à presença de Huxley, fazendo-os se ajoelhar ao lado de Nathan.
- Você realmente pensou que podia esconder algo de mim em meu próprio território? Pobre rapaz ingênuo...
Temendo por sua vida, o rapaz pergunta:
- O que vocês vão fazer comigo?
- Por enquanto vamos prendê-lo, sua influência trará grandes vantagens para nós.
- Você não pode me prender! Isso causaria uma guerra com o Submundo!
- Não, Nathan, não queremos uma guerra com o Submundo. Na verdade, são os runners que se juntarão a nós após você os convencerem.
O rapaz se surpreende.
- Os runners jamais se juntariam à causa dos Trans-humanistas! Esta não é uma guerra ideológica, Huxley! O que proponho é combater um inimigo em comum!
- Não é desta forma que eu enxergo, Inimigo de Estado. – olhando para seus companheiros, o líder diz – Podem leva-los!
Sem poder resistir, Nathan é levado cativo pelos trans-humanistas. Um sectário se aproxima de Huxley e diz:
- Senhor, um dos runners conseguiu fugir. Devemos ir atrás dele?
- Não. – responde o líder – Lidaremos com o Submundo depois.

§

Ao entrarem em um longo corredor, Nathan vê oficinas com pessoas trabalhando. Ele nota que, assim como em qualquer outra facção onde esteve, eles vestem roupas inusitadas e exóticas. Haviam portas que davam acesso à vários outros estabelecimentos. Eles veem uma sala escrito “Manutenção Robótica”, em seu interior há centenas de braços e pernas robóticos pendurados no teto. Em uma estante o rapaz vê as modernas próteses biomecânicas, tão sofisticadas que se assemelhavam a membros de carne e osso por tamanha perfeição.
Haviam outras pessoas ali, mas elas não pareciam ser integrantes da facção. Elas passavam pelas estantes analisando as peças bioprotéticas como se estivessem comprando. É então que Nathan percebe, elas não eram integrantes e sim clientes. Ali funcionava um comércio clandestino onde a facção vendia seus produtos industrializados ilegalmente.
Eles passam por uma oficina e veem dezenas de poltronas onde os clientes se sentavam para consertar suas próteses. Os técnicos usam cabos e computadores para calibrar, reparar e substituir as próteses danificadas. Alguns clientes seriam verdadeiros aleijados sem suas próteses, pois alguns não tinham mais seus membros orgânicos, considerando-os frágeis, limitados e deterioráveis com o tempo.
Assim como a imensa maioria da população, os clientes optaram por substituir seus membros originais pelas máquinas de capacidades infinitas. Enquanto aguardavam nas poltronas, era interessante ver suas próteses se movendo sozinhas sobre as mesas. Na parte amputada de seus corpos, Nathan vê cabos conectados aos seus nervos e tendões, e isso lhe causava certa repulsão. Os técnicos trabalhavam com soldas elétricas, lixadeiras e parafusadeiras como modernos cirurgiões de androides.
Eles entram em um elevador. Descendo um nível do imenso galpão, Nathan vê um ambiente não muito diferente das sedes da 4 de Julho e da Bushido. Haviam hackers operando os computadores ao lado de centenas de servidores, os sectários andavam de um lado ao outro, parecendo ser muito inteligentes e elegantes em seus ternos e gravatas.
Em uma sala com paredes de vidro está escrito “Desenvolvimento”, em seu interior há engenheiros construindo protótipos de novas próteses e robôs. Ele também vê físicos experimentais testando a intensidade do raio laser de suas novas armas. Apesar do impressionante nível intelectual, científico e tecnológico de seus membros, Nathan não vê muitas pessoas armadas ali, dando a impressão de que essa organização preferia lutar virtualmente com sabotagem e espionagem do que com força bruta. Mas sua impressão estava inteiramente errada.
Ao som das máquinas pesadas trabalhando, ele vê a poderosa máquina de guerra trans-humanista. Passando pelas linhas de produção, equipamentos, armaduras e armas são processados, sendo achatados em prensas, soldados por robôs e montados por operários semi-humanos. Armaduras enormes são fabricadas, tão tecnológicas e versáteis que, ao testá-las, os usuários são automaticamente vestidos por elas. Sentado em uma caixa de madeira, um imenso soldado trans-humanista calmamente fuma seu charuto enquanto três operários consertam a pesada armadura em seu corpo.
Vestindo exoesqueletos, alguns sectários passeiam pelo lugar carregando pesadas caixas em seus braços. Telas de LCD e hologramas também são vistos, e alguns cabos de fibra ótica se confundem com as luzes de neon. Nathan percebe que eles são obcecados por tecnologia, verdadeiros idólatras. “Talvez este pequeno laboratório de novas ideias esteja tecnologicamente mais avançado do que a metrópole em pelo menos dez anos” pensa ele.
Em uma sala de testes, um soldado ativa um lançador de foguetes em seu ombro e atira contra um monte de palha, pulverizando-o. Isto muito impressiona os runners. Haviam armas em abundância ali, ele vê rifles, metralhadoras e pistolas pelo salão.
- Bem-vindos à sede dos Trans-humanistas. – diz Huxley.
Nathan é separado de seus companheiros. Ele é levado para outra sala no fim do corredor, com uma cama e uma janela de vidro inquebrável na parede.
Novamente o rapaz estava sozinho. Olhando pela janela, ele vê a sede da facção, um local estranho e cheio de fanáticos em sua luta pela supremacia tecnológica.
O rapaz não se esqueceu de como aquele pesadelo começou. O maldito terrorista no táxi, membro da Resistência Purista, querendo explodir aquela sede. Obviamente o local onde estavam naquele dia – à beira do muro de Contenção e do Setor L – estava muito longe dali, “mas e se outro homem-bomba aparecesse e finalmente terminasse o serviço?” pensa ele.

§

Dois dias se passam. Em seu confinamento, Nathan vê os sectários conversando normalmente, eles pareciam não se importar com a armadura pesada e fria em seus corpos. Então Huxley entra na sala e, trazendo uma cadeira, o convida para conversar.
- Boa tarde, Nathan. Espero que esteja gostando da sua estadia.
Sem dar atenção, o rapaz pergunta:
- Onde estão os meus amigos?
- Amigos? – surpreende-se ele – Não se preocupe, eles estão bem. Mas, mudando de assunto, posso te fazer uma pergunta pessoal?
Vendo o líder adiante de si, com seus seguranças enormes e armados no lado de fora, o rapaz percebe que não tem escolha.
- Sim.
- Você acredita em Deus?
Com a estranha pergunta, Nathan se intriga.
- O que quer dizer?
- Quero dizer se você acredita em uma força maior que criou a vida e o universo.
Um pouco desconfortável, ele responde:
- Sim.
- Por quê?
- Porque eu não acredito que tudo o que existe foi obra do acaso.
- Não, é claro que não... – responde Huxley, pensativo – E quanto à evolução? Você acredita no processo natural e evolutivo?
O rapaz pensa um pouco antes de responder.
- Eu realmente não sei nada sobre isso.
- Nós acreditamos na evolução. Na evolução da mente, do intelecto, da ciência... A inteligência evoluiu com o passar do tempo, e a sociedade a acompanhou através do conhecimento. O que as gerações anteriores não usufruíram, as gerações futuras certamente usufruirão, pois este é o seu legado sublime. Ora, se Deus, deuses ou extraterrestres nos criaram, nos dotando de inteligência, então a tecnologia é o legado dela, evoluída através dos séculos de descobertas e de desenvolvimento. – Huxley pausa por um momento e então continua – Devemos continuar de onde nossos antepassados pararam. Devemos ir além de onde os Homo Sapiens jamais foram. Nós, a raça humana, através dos avanços tecnológicos e da inteligência infinita, devemos evoluir!
Ao ouvi-lo, Nathan se silencia por um momento. “O discurso dos terroristas é sempre o mesmo, homens visionários com discursos inflamados” pensa ele. “Eles parecem viver em uma realidade exclusiva, arquitetada apenas para eles mesmos”.
Nathan responde:
- Através da tecnologia nosso mundo foi destruído. É isso o que pretendem com os avanços tecnológicos de vocês? Produzirem mais armas, travarem mais guerras até destruírem o pouco de mundo que ainda nos resta?
O trans-humanista se ofende.
- Não somos os portadores da morte e sim os preservadores da vida. Se você ainda não entendeu que para sobreviver temos que nos defender, então não posso fazer nada a não ser sentir pena de você.
Um sectário entra na sala e sussurra ao líder:
- Senhor, nosso território foi atacado pelos puristas.
- Houve baixas? – pergunta ele.
- Sim, senhor. Várias.
Assentindo, o líder olha para o rapaz e diz:
- Parece que mais gente está morrendo por sua causa, Nathan. Eis aí o resultado de sua rebelião.
Pesaroso, o rapaz abaixa sua cabeça.
- Vamos supor que não fosse você o Inimigo de Estado e sim outro azarado por aí. Você já pensou o que faria para escapar da rebelião causada por ele?
Nathan não tinha pensado nessa hipótese.
- Eu só pensaria em me esconder ou fugir.
- Fugir? – repete Huxley, quase debochando-o – E você já sabe para onde?
- Eu não sei. Provavelmente para a superfície.
Então o líder e seus seguranças deixam escapar um sorriso.
- Apesar de viver no Submundo há um ano, você não conhece bem a superfície, não é mesmo?
O rapaz não sabe nada sobre o vasto território obscuro da superfície.
- Sei o suficiente.
- Pois eu lhe ofereço algo melhor. Fique em nossa organização, junte-se aos Trans-humanistas. Você estará seguro aqui, podemos protege-lo. Você não precisará fugir ou se esconder, aqui a polícia nunca irá encontra-lo. Te daremos um abrigo, armas, até um uniforme se assim o quiser. Aceite! É muito mais do que te ofereceram.
Desta vez é Nathan quem sorri.
- Eu prefiro trabalhar com os terroristas, e não ser um deles.
O líder descarta sua resposta.
- E o que te faz pensar que pode escolher?
O rapaz se sente ameaçado.
- Você não pode me controlar.
- Tem certeza? Em nossa organização temos os mais talentosos cirurgiões plásticos, e nossas próteses biomecânicas são produzidas aqui, em nossa sede. E você sabe... Aparelhos de controle mental podem ser produzidos pela mais avançada tecnologia. Você não quer que um desses seja instalado em você, não é mesmo?
Nathan se apavora. Antes que pudesse responde-lo, Huxley se levanta e vai embora.