sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Sonata - Parte 22 - O Inimigo de Estado



Funcionando como um bordel de luxo no distrito Zênite – Setor E –, o local é famoso por receber os ministros e dirigentes das corporações de Sonata. Seus profissionais, belíssimas mulheres e homens, entretém seus poderosos clientes com danças exóticas, bebidas caras e serviços eróticos.
Aquela era mais uma noite normal no estabelecimento. O bordel realizava espetáculos e divertia seus frequentadores. A forte fumaça de cigarro e a embriaguez do álcool compunham o ambiente e causavam muita diversão.
A prostituta, uma belíssima mulher de quadris largos e cabelos negros, ergue uma garrafa de cabernet sauvignon e derrama seu líquido na boca de um cliente, molhando suas roupas. De repente eles ouvem um tiro e a garrafa se estoura em centenas de pedaços. Assustados, um segurança grita:
- É uma invasão!
A porta se explode em uma bola de fogo e em seguida as janelas, criando um terrível ruído. O ambiente é invadido por dúzias de homens encapuzados e portando rifles de assalto. Virando as mesas, os seguranças se protegem e atiram nos invasores. Eles revidam e atiram de voltam, começando um sangrento tiroteio.
Os encapuzados invadem pelas janelas destruídas, eles estavam pendurados por cordas na lateral do edifício aguardando o momento certo de agir. Os seguranças são pegos desprevenidos e muitos são alvejados na confusão. As prostitutas se lançam ao chão e gritam histericamente, outras correm de um lado ao outro tentando fugir. Os clientes se protegem atrás dos sofás e mesas, mas muitos são mortos pelo poder dos penetrantes projéteis.
O barman, que esteve agachado durante a invasão, se levanta empunhando um belo lança-mísseis em seu ombro direito. Os invasores se intimidam por um momento, mas o barman era só um misturador profissional de bebidas. Desajeitado, ele se desequilibra e atira o míssil no teto, errando completamente o alvo e destruindo o colorido forro. A explosão lança as mesas e cadeiras ao redor em um poderoso sopro. O barman é atingido em seguida, caindo atrás do balcão.
A poeira do entulho se abaixa, mas uma fumaça diferente se forma vinda dos disparos das inexoráveis armas. A histeria e o caos são atordoantes, e o tempo parece se prolongar. Os rifles de assalto expelem as cápsulas fumegantes e vazias em uma fascinante cascata de fogo. Buracos de balas se formam nas paredes, criando rastros pela glamorosa decoração.    
O superior poder de fogo dos invasores domina o confronto e finalmente a situação se acalma. De braços erguidos, os seguranças – aqueles que restaram – soltam suas armas e se rendem. Deitadas nos pedaços de mobília e entulho, as prostitutas choram assustadas. Mas não foi por elas que os invasores estavam ali.
Alguém caminha pelas poças de sangue e cacos de vidro. À sua frente ele vê um palco com uma barra de pole dancing no meio. Com seu rifle em mãos, ele fala para alguém atrás dele:
- Saiam!
De mãos erguidas, vários homens se levantam e caminham assustados. São homens mais velhos, vestindo roupas caras e refinadas. Alguns estão feridos e tentam estancar seus sangramentos, mas outros não resistem e sangram até morrer no chão.
- Quem é você? – pergunta um deles.
O invasor tira sua máscara e imediatamente eles o reconhecem.
- É o Inimigo de Estado! – eles respondem entre si.
- Também podem me chamar de Nathan.
Um homem com um emblema do Ministério de Segurança Pública o ameaça dizendo:
- Você nunca vai se safar do que fez aqui. Nós temos nossos melhores agentes procurando-o!
Irônico, o rapaz responde:
- Então eles estão fazendo um ótimo trabalho.
- O que você vai fazer conosco? – pergunta outro.
- Apenas temos algumas perguntas.
Desafiante, um deles diz:
- Vai nos levar para um interrogatório, não é? E o que vai fazer depois? Nos executar a sangue frio como um bom revolucionário, defensor da paz, faria?
Nathan ri.
- Isso vai depender de vocês. Aliás, não somos nós quem executamos os dissidentes aqui. – responde ele, apontando para seus uniformes com o emblema das corporações.
Alguém se aproxima do rapaz e diz:
- Nathan, temos que ir.
Assentindo, ele responde:
- Podem leva-los.
Os invasores então levam os dirigentes sobreviventes para fora.   
Caminhando pelo bordel em ruínas, o rapaz se depara com as prostitutas e michês escondidos atrás das mobílias. Eles vestem roupas íntimas e têm maquiagens em seus rostos. As mulheres, observa Nathan, são belíssimas e muito sensuais. Ele diz:
- Não se preocupem. Vocês estão livres dos abusos corporativos. O Inimigo de Estado os libertou.
Um pouco confusas, os trabalhadores se levantam. Uma mulher, aparentemente a mais velha, se levanta e então pergunta:
- Você deve estar se sentindo muito orgulhoso, não?
Nathan olha para ela.
- Perdão?
- Olhe só para você, com essa jaqueta de couro e esse lenço xadrez em seu pescoço. Um dócil e amigável cidadão tornado um insurgente rebelado. O que te ofereceram para mudar tanto assim? A suposta liberdade da metrópole, ou você apenas explode coisas e atira nas pessoas por diversão?
O rapaz não sabe o que responder.
- Eu combato a tirania corporativa e a ameaça do Protótipo #8...
- Não me faça rir! – interrompe ela – Sua vida inteira foi exposta após a Grande Revelação. Toda a metrópole te conhece agora, até mais do que você mesmo. Você era um ninguém até cair nas ruínas, e agora me aparece liderando uma equipe e fazendo inflamados discursos políticos? Tem alguém te controlando nas sombras, não é mesmo? Alguém oculto planejando seus passos para tomar o poder.
Lembrando-se de Database, o rapaz responde:
- Eu não sou controlado por ninguém.
A mulher muda de assunto.
- Você acaba de destruir meu bordel. Isso faz você se sentir bem?
Então o rapaz percebe que falava com a cafetina.
- Destrui-lo não era o meu plano.
- É claro que não, afinal os heróis lutam pela vida, não é mesmo? – responde ironicamente ela, apontando para os cadáveres espalhados pelo chão.
- Como eu disse, eu luto pela libertação.
- Mas você já se perguntou se queremos ser livres?
Novamente Nathan não compreende.
- O que está dizendo?
A cafetina sorri.
- Isso não te passou pela cabeça, não é? Talvez tivesse lhe ocorrido se não estivesse ocupado explodindo tudo e atirando em todo mundo. Nós, os “honestos e esforçados trabalhadores de Sonata” – ironiza ela o seu próprio ofício – não queremos libertação. Ao contrário, nós dependemos das corporações para sobreviver! E não apenas nós, mas muita gente lá fora também.
O rapaz se intriga.
- Você não sabe do que está falando. As corporações são uma ameaça muito maior e tem por objetivo o nosso extermínio.
- E curiosamente só você sabe disso. – responde ela – Ouça-me, querido. Nossas vidas eram confortáveis com as corporações. Alguns trabalhavam mais, outros menos, mas todos desfrutavam de seu trabalho e conseguiam sobreviver. E então apareceram vocês e viraram a metrópole de pernas para o ar. Você realmente acha que a população está feliz com isso?
Ponderando, o rapaz responde:
- A mensagem foi clara. A sobrevivência da metrópole depende de nossa luta e de quem quiser lutar ao nosso lado.
- Então comece a considerar a hipótese de que as pessoas escolham não lutar ao seu lado, e que nem todos trocarão a certeza das corporações pela promessa duvidosa dos rebeldes e do Inimigo de Estado.
Em seguida a mulher lhe dá as costas e leva suas funcionárias para um local seguro. Nathan fica parado ali, em silêncio e ponderando no que acabara de ouvir.
  
§

De volta à superfície, o rapaz se encontra no quartel-general da rebelião, um bunker construído próximo ao Mystique que os runners humoradamente apelidaram de Submundo.
Sentado em um sofá, ele bebe um pouco de cerveja e reflete sobre as palavras da cafetina. “Poderia ela estar certa, afinal?” pensa ele. O rapaz teme que a rebelião, que ele mesmo iniciou há cerca de um ano, possa terminar em um amargo fracasso.
Database aparece e o parabeniza pelo sucesso da missão. Nathan se mostra indiferente, apático às palavras do chefe. Ele pergunta:
- Está tudo bem, Nathan?
- Sim. – responde ele, sem se importar – Está indo bem no interrogatório?
O rapaz se refere aos dirigentes capturados.
- Eles vêm se mostrando bem resistentes. Está difícil de extrair algo.
Preocupado, Nathan pergunta:
- Você acha que eles vão falar?
- Oh, não se preocupe. Eles vão falar... – responde Database com tom ameaçador.
- Está bem.
O rapaz volta a tomar sua cerveja. O chefe então refaz sua pergunta:
- O que está te incomodando, Nathan?
Um pouco zonzo, Nathan responde:
- Estamos lutando há um ano, Database. Apesar da instabilidade nos níveis superiores, boa parte da população ainda se nega a se rebelar. E se a cultura corporativa estiver de tal modo enraizada nos cidadãos sonatenses que, apesar da ameaça do Projeto Gemini, eles persistirem e até mesmo defenderem seus opressores?
O chefe se intriga. Ponderando um pouco, ele percebe que uma sabotagem cultural poderia atrasar a revolução em anos, talvez décadas. Sabiamente dissuadindo Nathan, ele responde:
- Não se trata de cultura, Nathan. Se trata de mostrar a eles que nós podemos ser a melhor opção.
O rapaz respira fundo.
- E nós podemos provar isso? 
- Provar? - pergunta ele - Não. Nós seremos a melhor opção. Por isso devemos alcançar o poder, para eliminar a ameaça corporativa e tornar a metrópole novamente próspera.
- Mas estamos lutando há um ano e não chegamos nem perto da cúpula corporativa no centro de Sonata.
O rapaz se refere a uma megatorre no Setor M, onde se encontra a cúpula corporativa e a sede do poder combinado das corporações sonatenses.
- Um passo de cada vez, Nathan. Por enquanto precisamos angariar um poder de fogo maciço para o ataque. Ainda não estamos prontos.
Então o rapaz tem uma ideia.
- É claro! É exatamente disso o que precisamos!
Database não compreende.
- O que quer dizer?
- Para acabar com essa guerra e esse derramamento de sangue, precisamos de um poder de fogo maior. – ele continua – Precisamos unificar as facções.
Ao ouvir esse absurdo, o chefe ri.
- Nathan, as facções são ferrenhamente opostas umas às outras, pregando abertamente a aniquilação. Elas não são estáveis e muito menos confiáveis.
- É por que sua causa não é compartilhada por um aliado neutro. Elas precisam de alguém de fora para se unirem, um catalisador, se preferir.
Intrigado, o chefe pergunta:
- Está dizendo que tentará unir esses fanáticos e terroristas com o Submundo?
- Não. – responde ele – Tentarei uni-los ao Inimigo de Estado, ou seja, a mim.
Database se espanta.
- Você não pode estar falando sério.
- Eu estou.
- Nathan, você é jurado de morte na Bushido e na Resistência Purista. Se você fracassar em seu plano você poderá morrer.
Bem humorado, o jovem Nathan responde:
- Não se preocupe, Database. Se eu tiver que dar a minha vida em troca da vida de milhões de inocentes, este é um preço que eu certamente pagarei.



terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Sonata - Parte 21 - O Chamado do Mercenário



CAPÍTULO II

Sonata. 2280.
Correndo através das movimentadas passarelas, Maynard foge. Atrás dele estão alguns membros da Frente Ateísta, uma outra facção terrorista que contamina Sonata.
Devido à forte presença comercial naquele distrito, as passarelas mais largas estão abarrotadas de barracas de ambulantes. Todos falam alto e chamam seus clientes, na mais antiga maneira de promover seus produtos. O cheiro de comida preparada recentemente lhe abre o apetite, apesar de estar fugindo de alguns fanáticos e homicidas atrás de si.
Os clientes e transeuntes atrapalham seu caminho, forçando-o a empurrá-los e causando grande confusão. Nos televisores Maynard vê o rosto de Nathan, assim como em centenas de cartazes colados nas paredes. Seu discurso, que todos se referem como a “Grande Revelação”, repete-se incessantemente pela metrópole, tornando-se um vídeo tão viral que nenhum mecanismo corporativo foi capaz de censurar.
O vídeo de Nathan causou um distúrbio social generalizado que estremeceu as fundações da distópica sociedade, mergulhando-a em uma espiral decadente de caos e violência. Para os cidadãos que têm suas vidas confortáveis baseadas no entretenimento e consumo, a consequência foi trágica. Para os cidadãos que são explorados diariamente nas desgastantes linhas de produção, a desordem não pôde vir em melhor hora. E para pessoas como Maynard, que lucram do caos e da violência – se importando somente consigo mesmas – a desordem não passa de mais um motivo para tratar a metrópole como um enorme parque de diversões.
Os Ateístas o avistam e então disparam suas armas. Os tiros atingem algumas garrafas de vidro, fazendo-as se estourar. Ao perceber a ação terrorista diante de seus olhos, as pessoas imediatamente se desesperam, começando a correr pela passarela. Algumas se deitam e são pisoteadas, outras correm em direção aos Ateístas e são baleadas, e outras se esbarram em Maynard e são atingidas nas costas. O agente se assusta ao vê-las se atirando do parapeito para a morte certa lá embaixo.
Ativando uma bomba de fumaça, Maynard a lança para trás e continua correndo. Logo toda a passarela desaparece em uma cortina de fumaça tão grande que mesmo os aerocarros, sobrevoando acima e abaixo, são afetados.
Ao criar a distração necessária, ele pula sobre alguns dutos de ventilação e escala a lateral da megatorre. Os gigantescos painéis de neon brilham em centenas de cores, ofuscando-o, mas Maynard prossegue sem hesitar. Estando à beira do precipício, seu pé se escorrega e ele se empalidece de horror. Paralisado, ele observa os fragmentos do edifício caírem lentamente entre a infindável frota de aerocarros lá embaixo.
Prosseguindo em seu caminho, Maynard pendura-se em um cabo de aço e desce à uma plataforma adjacente. As pessoas observam atônitas a passarela acima ser tomada por gritos e uma fumaça branca. Aproveitando que as pessoas estão ocupadas, Maynard põe as mãos nos bolsos e passa discretamente, evitando chamar atenção.
Ao longe ele vê um velho gesticulando e falando sozinho, suas roupas são velhas e rasgadas, a barba em seu rosto é comprida e ele fala impetuosamente, esforçando-se para ser ouvido. O velho também avista Maynard e o encara. “É apenas um velho louco e doente” pensa ele. Sobrecarregados com a eclosão de tantos distúrbios, a opressão policial se abrandou e aumentou o número de vagabundos por aí. Ignorando-o, o agente continua seu caminho quando o velho se põe à sua frente. Ele aponta para algo atrás de Maynard e, incomodado, o agente olha para trás. Então alguém grita atrás de si:
- Cuidado!
Um aerocarro repleto de bombas voa deliberadamente em direção à passarela, explodindo com a colisão. A explosão é tão forte que ilumina a movimentada noite, lançando Maynard vários metros pelo ar.
Em meio a intervalos de consciência, Maynard ouve gritos, choros e prantos. Ele sente que alguém está puxando-o pelas roupas. Pessoas correm ao seu lado, várias vezes ele as ouve dizer “atentado terrorista”.
- Não se preocupe. – diz alguém – Estou levando-o para um lugar seguro.
Recobrando a consciência, Maynard segura o pulso do desconhecido e o puxa para perto de si. Ele se surpreende. É o velho.
Encostando-o na parede do túnel, o velho gesticula freneticamente. Ele parece estar delirando.
- Por que está me ajudando? – pergunta o agente.
O velho olha para trás e vê os transeuntes com manchas enormes de sangue em suas roupas. Apontando para eles, ele responde:
- Isto é o que eu vejo todos os dias, morte e sofrimento em toda parte! Eu tento avisá-los, mas eles sempre me ignoram. Não há como escapar... Por que avisá-los então?
Maynard o puxa pela camisa e diz:
- Mas do que é que você está falando?
- Por que se importa? Ninguém nunca se importa. E quando ninguém se importa você morre por dentro muito antes de realmente morrer.
Sem conseguir entendê-lo, o agente pergunta:
- Quem é você, afinal?
- Sou isso que você está vendo, um velho decrépito à beira da loucura. Meu corpo está se deteriorando, minhas palavras cheias de desgraça me consumiram. E agora esse câncer dentro de mim me destrói. Quando eu estiver morto vocês se lembrarão das palavras que eu tentei dizer? Quando eu estiver apodrecendo no chão, vocês se importarão?
O velho tenta expressar a tremenda agonia dentro de seu peito. Ainda confuso, o agente pergunta:
- O que está tentando dizer?
- Você não entende? Não deixarei nada para trás se minhas palavras caírem em ouvidos surdos. Ouça, você tem que me ajudar, você tem que me ouvir! – o velho tenta se controlar antes de continuar – Eu vi a decadência, eu vi o que está prestes a acontecer. O que ocorre aqui hoje é somente uma fração do que virá em seguida, este é o prelúdio de algo ainda maior!
O agente ri desta grande loucura. O velho se enfurece.
- Como eu odeio o jeito que vocês olham para mim! Me zombando e me ridicularizando como se eu fosse uma aberração! Isso será a sua ruína!
Cheio de altivez e desprezo, Maynard responde:
- Louco...!
O velho parece se consternar.
- Ouça-me, eu te imploro. Você é o único que pode detê-lo, que pode apelá-lo à razão! Não deixe que ele se engane, ideais nobres são sabotagens, liberdade é rebelião! Mais do que nunca, o futuro de nossa metrópole depende de você... – e então o velho conclui – Maynard!
O agente se intriga. Puxando-o novamente, ele pergunta:
- Como você sabe o meu nome?!
Mas o velho se desvencilha e foge, correndo pelo túnel e desaparecendo na multidão.