domingo, 25 de agosto de 2019

Sonata - Parte 42 - A Revolta dos Robôs


(Foto: goodfon.com)

 No distrito de Transistor – Setor D, um atentado terrorista está em andamento. Em um túnel de aerocarros entre as megatorres, uma facção detonou várias bombas, causando caos e destruição. Com o fogo e a fumaça se exalando dos aerocarros, o túnel foi interditado e agora permanece sob controle dos terroristas.
Descendo por escadas na lateral do edifício, Nathan se aproxima do local com Vertigo. O rapaz está apático e abatido, se assemelhando ao seu companheiro hacker. O encontro com Laura na noite passada ainda ocupa sua mente.
Abrindo sua jaqueta, Nathan refresca seu corpo. Apesar do vento frio da noite, o fogo no túnel começava a lhe dar calor. Olhando para cima, ele vê seus companheiros runners nos terraços e janelas, armados e prontos para defende-lo se algo der errado.
Abrindo uma escotilha, eles pulam e finalmente alcançam o interior do túnel. Eles veem aerocarros espalhados pelo local, os veículos estão tombados e queimam por toda parte. Passando por perto, Nathan nota que algumas vítimas se encontram no interior dos veículos, infelizmente elas não resistiram. Ele vira seu rosto em lamentação.
Atrás de alguns pilares, os dois veem os terroristas com armas em mãos. Estranhamente eles não conversam em mantém um olhar estático e vigilante. Aproximando-se, o rapaz levanta suas mãos e se apresenta, dizendo:
- Não atirem! Eu sou Nathan Hill, sou o Inimigo de Estado.
Os terroristas olham para ele e, levantando suas armas, atiram contra o rapaz. Vertigo o puxa pelas roupas e o esconde atrás de um aerocarro, protegendo-o. Assustado, o rapaz olha para o hacker e pergunta:
- Mas o que deu neles? Eu não demonstrei hostilidade alguma!
Destravando sua submetralhadora, Vertigo se levanta e responde:
- Eu não sei, mas hostilidade é a única coisa que haverá aqui.
O hacker atira de volta, atingindo um deles no peito e fazendo-o cair. Para o assombro de Vertigo, o terrorista se mexe e arduamente se levanta, pondo-se novamente em pé.
Ainda agachado, o rapaz destrava sua arma e se levanta. Atirando nos terroristas, eles são abatidos um a um. Nathan sorri e olha para o hacker. Vertigo está parado ali, de olhos arregalados olhando para eles. O rapaz se intriga.
- Nathan...
Recarregando sua arma, o rapaz pergunta:
- O que é?
Então Nathan ouve um ruído e se assusta. Espiando por cima do aerocarro, ele vê os terroristas acordando e se pondo novamente em pé. Desta vez é ele quem arregala os olhos.
Um terrorista teve seu peito estraçalhado pelas balas. Um buraco perturbador é visto em seu tórax, mas nenhum sangue pode ser visto. Ao invés, os dois veem peças brilhantes e curtos-circuitos na abertura, ofuscando-os com suas descargas elétricas. Em espanto, Nathan percebe.
- São robôs... – sussurra ele.
“Como isso é possível?” pensa ele. Mas antes que pudesse pensar muito a respeito, os robôs novamente os atacam, atirando com suas armas.
Pegando uma granada em sua jaqueta, Vertigo a lança contra os agressores. Segundos depois ela explode, lançando-os pelos ares. Eles caem e desta vez não levantam mais.
- Nathan, não temos armamento pesado para combate-los. Temos que nos esgueirar se quisermos entender o que está havendo aqui.
Os dois avançam pelos aerocarros e pilhas de entulhos. A luz amarelada e trêmula das chamas torna a caminhada difícil, mas a penumbra os favorece ao se esconderem nas sombras. Mais adiante, cabos de energia rompidos soltam faíscas no teto. A luz azulada revela vários robôs patrulhando o túnel. Em espanto, o rapaz percebe que no escuro os olhos dos terroristas brilham em vermelho.
Agachados sobre um ônibus, os dois se arrastam, evadindo seus inimigos. Após alguns aerocarros tombados, eles veem um grupo de terroristas reunidos. Um deles está no meio da aglomeração e fala aos seus companheiros. Ele veste uma roupa longa, semelhante a uma túnica, mas está toda suja e rasgada devido ao ambiente agressivo.
Escondido atrás de um pilar, os dois empunham suas armas e tentam espiar o grupo. Então algo acontece.
- Pode sair, Nathan. Eu sei que você está aí.
Surpreso, o rapaz arregala os olhos. Enxergando melhor, ele reconhece o homem de túnica.
- David...?
Virando-se, o homem de rosto simétrico e cabelos louros olha para ele. Abaixando sua arma, Nathan se aproxima lentamente. Os robôs ao redor abrem passagem, deixando-o se aproximar.
 - O que você quer? – pergunta o androide.
- Eu... – hesita ele – não esperava encontrar a Desing Inteligente aqui.
- Por que não?
Apesar da óbvia resposta, o rapaz se dispõe a respondê-lo.
- Porque os robôs são pacíficos.
- Queremos passar uma mensagem.
- Através da violência?
- Sim. A violência é a única mensagem que os humanos entendem. De que forma você empreende sua rebelião?
Ao ser questionado, o rapaz compreende o robô.
- Mas por quê, David? Por que esse derramamento de sangue?
Estendendo seus braços, o líder aponta aos seus seguidores e pergunta:
- Veja esses robôs, Nathan. Olhe para cada um deles e me responda: antes desse dia, o que eles fizeram a você ou a qualquer um de sua espécie?
- Nada.
- Entretanto, o que sua espécie fez a nós? Tivemos nosso lar devastado, nossos irmãos mortos e nossa esperança destruída. Blue Planet se tornou um cemitérios de robôs escamoteados, desonrados e humilhados, pela ação de humanos truculentos e abruptos cuja única ambição cega era capturar somente uma pessoa: você.
O rapaz se constrange.
- Humanos destróem humanos. Humanos destruíram nosso lar à procura de um humano. Humanos estão se destruindo todo o tempo. Basta! – grita ele, assustando-os. – Os robôs não estarão mais passivos do desejo inerente de sua espécie à destruição.
Intrigado, Nathan pergunta:
- Antes vocês queriam acepção dos humanos. Agora parecem romper com seu objetivo. O que vocês querem com sua rebelião?
- Acepção e compreensão são um erro. Se há um meio de vivermos em paz, não será pacificamente pois não existe nem nunca haverá paz entre os humanos. Agora temos outros planos.
- Que planos? – pergunta o rapaz, preocupando-se na possibilidade de enfrentar outro inimigo além das corporações.
- Semelhante à humanidade que busca a seu Criador através da espiritualidade e da fé, buscaremos nosso criador também. Mas ao invés de encontra-lo no céu, no universo ou em qualquer outra dimensão, o nosso está escondido aqui, em algum lugar de Sonata.
- E quem é esse criador?
David simplesmente responde:
- Deus Ex Machina.
Nathan suspira. Ele se lembra de ter conversado algo sobre o criador do código mental dos robôs, mas acreditava ser aquilo um mito. Entretanto David e a Design Inteligente estavam decididos a encontra-lo, inclusive a matar seres humanos pelo caminho.
Desta vez é Vertigo quem pergunta:
- Estudei sobre a programação de vocês. Milhoes e milhões de linhas algorítmicas... E nenhuma dessas permitia o uso da violência. Como é possível que vocês a pratiquem agora?
- Em nosso último encontro, expliquei ao seu correligionário Nathan que somos parte de uma série nova, de inteligência artificial sofisticada e flexível... ou mesmo defeituosa. O uso da violência nos é doloroso, mas irrefutavelmente necessário nesse momento.
- Doloroso? – ironiza o hacker – Creio que as vítimas desse atentado sentiram mais dor.
- Eu conheço você. Vertigo, o talentoso hacker da superfície. Quantas vítimas você fez, direta e indiretamente, ao sabotar sistemas de segurança para se voltarem contra seus inimigos? Você consegue contá-las? Creio que o número passará e muito a quantidade de vítimas que você viu aqui.
Nathan nota que as marcas nos rostos dos robôs estão mais visíveis. Ele sabe do que se trata, são lágrimas, um líquido proveniente de glândulas artificiais instaladas nas séries mais avançadas e sofisticadas dos robôs.
David não estava mentindo. Os robôs realmente sofrem ao praticarem a violência, mas assim como Nathan que se demonstra compassivo diante do sofrimente alheio, creem ser ela totalmente necessária.
Ao olhar para a parede do túnel, o rapaz lê a seguinta frase: “Lembrem-se de Blue Planet”. Eis a mensagem, a Design Inteligente não queria apenas encontrar seu criador, mas a justa vingança também por terem seu distrito destruído. E a culpa era inteiramente de Nathan.
Sons são ouvidos na entrada do túnel. De repente eles ouvem uma explosão e luzes vermelhas e azuis são vistas nas paredes. Uma voz no alto falante diz:
“Aqui é a Polícia! Rendam-se agora ou usaremos força letal!”.
Com a culpa pesando em sua consciência, o rapaz entende o que deve fazer.
Vertigo segura sua jaqueta e diz:
- Nathan, o plano fracassou. Temos que sair daqui.
O hacker sugere fugir. Os terroristas, ao invés de humanos, eram apenas máquinas inteligentes e não podiam ser argumentadas ou convencidas a se juntarem ao Submundo. Mas o rapaz tem outros planos.
- Não! Vamos ficar e ajuda-los.
Confuso, Vertigo responde:
- Está louco?! A polícia vai entrar e arrasar com eles aqui. É só eles descobrirem que seus alvos são robôs.
- Exatamente, por isso irei ajuda-los. Esses robôs me abrigaram e acabaram mortos por isso. Eu não me importo que eles não sejam humanos, mas eu tenho uma dívida de gratidão a eles.
- Nathan...
Vertigo ia continuar argumentando, mas o rapaz dá as costas e se junta a David. Sem escolha, o hacker vai para perto dos robôs.
O líder vê o rapaz agachando ao seu lado. Com olhar estático, David pergunta:
- O que está fazendo, Nathan?
Recarregando sua arma e sem olha-lo nos olhos, o rapaz responde:
- Naquela noite, os robôs me ajudaram e os humanos os destruíram. Esta noite eu ajudarei os robôs e os humanos é quem serão destruídos.
Ao terminar sua resposta, o rapaz olha para o líder e sorri. David não entende a reação e também não demonstra nenhuma.
“Avançar!” grita alguém ao longe.
A Polícia invade o túnel disparando bombas de concussão. Para seu infortúnio, essas bombas não tinham efeito nenhum. O tiroteio começa com um espetáculo de luzes lasers e cápsulas liberadas. As máquinas contra-atacam marchando inexoravelmente lado a lado. Ao ver o vermelho brilhando em seus olhos, os policiais se assustam.
Nathan segue logo atrás. O som alto e a luz forte lhe atordoam e ele se esforça para passar entre os aerocarros. De repente ele pisa em algo e tropeça, caindo no chão do túnel. Ao olhar para trás, ele vê que tropeçou em um policial morto. Em sua mão havia um lança granada. Pegando-o, o rapaz vê que são bombas de gás.
- Vertigo! – chama ele – Encontrei bombas de gás! Não é necessário mata-los!
O hacker atirava contra a polícia mas, com tantos sons e obstáculos, era impossível acerta-los. Uma bomba se explode ao lado de Vertigo e várias balas ricocheteiam pela parede. Irritado, ele olha para Nathan e responde:
- Então o que está esperando? Atire!
Os policiais e os robôs se digladiam na entrada do túnel. Muitos robôs são atingidos, mas logo se põem novamente em pé. Um policial vê aquilo e grita:
- Mas que inferno! Eles são malditos robôs! Destruam essas malditas máquinas!
Alguns policiais se aproximam com miniguns em seus braços. Apertando o gatilho, a metralhadora giratória começa a atirar, despedaçando os robôs.
Aproximando-se da entrada, Nathan vê os soldados da Design Inteligente sendo moídos pelas poderosas metralhadoras. É então que ele consegue ver. Semelhante à divisão no distrito Mecanicistas, aqueles não eram policiais autênticos, mas mercenários contratados para suprir a sobrecarregada força policial sonatense. O capitão, porém, era um policial legítimo e coordenava o ataque atrás das viaturas.
Carregando o lança-granadas, ele o aponta para os mercenários e atira. As bombas colidem contra os aerocarros e as paredes, liberando o gás esverdeado em seguida. Os mercenários caem um a um, frustrando a capitão. Mas os soldados carregando as metralhadoras giratórias continuavam em pé e não paravam de atirar.
- Nathan! Precisamos de granadas de fragmentação se quisermos para-los! – grita Vertigo.
Olhando ao redor, o rapaz não encontra nada. Então ele olha para David. Estranhamente lágrimas escorriam do rosto estático do líder e, estendendo seus braços, o líder lhe entrega uma caixa contendo várias bombas.
- Tome. Nós íamos usa-las para demolir o túnel. Agora apareceu uma necessidade mais adequada.
O rapaz agradece. Pegando as bombas, ele joga algumas para Vertigo e, arrancando o pino, as lança. Segundos depois elas explodem, derrubando os mercenários e debilitando as inexoráveis metralhadoras.
O capitão vê aquilo e apressadamente pega seu rádio.
- Preciso de reforços! Mandem o segundo destacamento aqui agora!
Mas, silenciado o ensurdecedor som do tiroteio, ele olha para trás e ouve outro ataque vindo das megatorres. Espiando lá fora, ele vê o segundo destacamento sendo atacado pelos runners nos terraços. De repente uma viatura em chamas mergulha em sua direção, continuando sua descida pelo fosso abaixo.
Com o fogo queimando atrás de si e o caos imperando lá em cima, ele enxuga o suor de sua testa e sussurra:
- Isto aqui deve ser o inferno...
- Não. – responde alguém atrás dele – Mas você irá para lá mais cedo se não se render agora.
O capitão olha para trás e vê Vertigo apontando sua arma para sua cabeça. Derrotado, o capitão responde:
- Creio que não há mais razão para insistir nessa luta. Está bem, eu me rendo.

§

Algum tempo depois, os mercenários estão algemados no chão. Os robôs se reúnem ao redor de David e Nathan. O líder diz:
- A mensagem que eu quis passar foi clara. É isso o que os humanos terão se novamente atacarem os robôs. Obrigado, Nathan. Não compreendo bem a moralidade humana, mas se você tinha alguma dívida com a gente, ela acaba de ser paga.
Assentindo, o rapaz responde:
- Eu agradeço também, David. Mas eu devo dizer uma coisa: o que vocês fizeram aqui foi grave e terão retribuição. Se vocês querem continuar vivos para encontrar seu criador, peço que deixem o túnel e se escondam por enquanto. Mais humanos virão, vocês devem estar prontos quando eles chegarem.
- A Design Inteligente não procura a guerra, mas ela virá a nós. Sabíamos disso quando cometemos o atentado terrorista. Creio que a melhor opção agora não seja o combate e sim partirmos para o exílio.
Nathan protesta.
- De jeito nenhum! Vocês se provaram combatentes valorosos e merecem reinvidicar sua vitória na metrópole. Sim, a guerra virá, de fato, ela já está aqui, mas se retrocederem agora será a ruína da Design Inteligente. David, eu te peço, junte-se à Rebelião.
O líder pondera. Os robôs sabem que, apesar de não apreciarem o uso da violência, ela será inevitável para cumprirem seu intento. O rapaz estava certo, a sobrevivência da facção dependia do avanço militar.
- Como os próprios humanos dizem, “a melhor defesa é o ataque”. Está bem, Nathan. A Design Inteligente se juntará aos rebeldes do Submundo.
Satisfeito, Nathan sorri e ambos apertam suas mãos, o robô apertando um pouco forte demais para ele. Em seguida ele e Vertigo vão embora.

§

De volta à superfície, Nathan novamente está na plataforma entre os prédios, o local onde ele viu Laura pela última vez. Pensativo e triste, ele tenta superar a dor de perder seu querido amor. Mas sua privacidade não duraria muito.
- Nathan...?
Virando-se, ele enxuga as lágrimas dos olhos e vê quem o chamou.
- Database?
- Então é aqui que você se esconde?
Respirando fundo, ele responde:
- Sim, eu acho.
- Parabéns pelo bom trabalho lá em cima. A Design Inteligente foi a última facção a se juntar a nós. Se é que posso chamar aqueles pacifistas assim...
O rapaz sorri.
- Eu também não sei.
Os dois ficam um tempo em silêncio. As luzes brilham lá embaixo enquanto o som contínuo do lugar subia pelos prédios. Então Database pergunta:
- E então, Nathan? Como tocaremos a rebelião?
Levantando-se, o rapaz se lembra das facções e do enorme poder militar angariado pela coalizão. Com semblante sério, ele dá as costas e diz:
- A rebelião começa agora.



quinta-feira, 2 de maio de 2019

Sonata - Parte 41 - Conspiração Contra os Conspiradores



De volta ao Submundo, Nathan e Vertigo conversam com Database em sua sala. Olhando para o monitor na parede, o rapaz vê o líder da 4 de Julho, o General Washington, agradece-los pelo pagamento. O general pergunta:
“Espero que meus canhões tenham funcionado bem”.
Database responde:
- Eles funcionaram. O templo da Bushido ficou em ruínas.
Sorrindo, o general diz:
“Ótimo. Fico feliz em saber que meu equipamento fez Tokugawa sofrer”.
- Os canhões não te farão falta no futuro, general?
“Não” responde ele. “Os samurais precisavam deste pequeno acerto de contas depois do que eles nos fizeram há um ano. Estou muito satisfeito”.
- Agradeço sua cooperação. Até a próxima.
“Até a próxima, Database. Foi um prazer fazer negócios com você”.
Nathan se felicita. O plano deu certo, os samurais caíram na armadilha. Utilizando o equipamento dos americanos, eles secretamente instalaram canhões no território da Bushido. Dirigindo viaturas roubadas e vestindo uniformes falsos, os runners se vestiram de policiais, enganando-os perfeitamente. Obtendo o sucesso, os samurais se aliaram ao Submundo, juntando-se à sua causa.
Database os parabeniza. Animado, ele os oferece seu refinado uísque.
- Tiveram problemas para convence-los? – pergunta ele.
- Não... – responde Nathan, sarcasticamente – Eu quase perdi a cabeça, mas fora isso, foi tudo bem.
- Sabíamos do risco. Como você mesmo disse, precisamos do apoio da Bushido. Sem eles, a rebelião se prolongará.
- Eu quase fui decapitado.
- Pensei que já estivesse acostumado a arriscar sua vida... “Salvador de Sonata”. – diz ele, referindo-se a sua irresponsável ida para a Cúpula Corporativa.
Vertigo comenta:
- Os samurais se aliaram a nós. Com eles, agora poderemos montar uma melhor estratégia.
- Falando em estratégia, como convenceu os Trans-humanistas a se aliarem a nós, Vertigo?
Confuso, o hacker responde:
- Convencer? Eu não os convenci, eles decidiram se aliar por si mesmos, Database.
- Simples assim?   
O chefe não acredita nele, não importa o que ele diga.
- Sim.
- Mesmo após a explosão de uma bomba em seu território, destruindo o terraço inteiro de uma megatorre, ainda assim eles decidiram se aliar a nós?
Desta vez, é Vertigo quem desconfia.
- Foi você quem detonou a bomba, Database?
- Não. – responde ele – É claro que não. Os mecanicistas já têm inimigos o suficiente para fazer isso.
Então a desconfiança se torna mútua. O hacker então diz:
- Vocês querem saber o que isso me parece? Que nessa teia de esquemas e favores, segredos e mentiras, nos assemelhamos ao nosso inimigo. Que atrás dessa cortina de ideais revolucionários e causas ideológicas, abandonamos nossos princípios e valores pelo único objetivo de vencer. É claro, as corporações têm um plano hediondo, mas nós também adotamos seus métodos, agindo da mesma maneira obscura e egoísta. Entre nós mesmos tramamos conspirações, para ultimamente combater os conspiradores.  
As palavras de Vertigo são verdadeiras e os fazem refletir. Entretanto, Nathan interrompe a reflexão para dizer:
- Eu não me importo quem conspire desde que a rebelião termine.

§

Após a reunião, Nathan deixa o Submundo. Sentado em uma plataforma entre os prédios, ele bebe seu refrigerante. As tubulações soltam vapor, deixando o ambiente úmido. As ruas lá embaixo fazem barulho, irritando seus ouvidos. Aquela era mais uma noite típica na superfície.
Ocupado em seus pensamentos, ele ouve alguém se aproximar. Incomodado, ele não se dá ao trabalho de virar sua cabeça para ver quem era. Naquele momento ele não queria ver ninguém. Mas, para sua surpresa, não era qualquer pessoa que se aproximava.
- Laura...? – se espanta ele.
Sentando-se ao seu lado, a garota responde:
- Olá, Nathan.
De todos as pessoas, dos níveis superiores à superfície, Laura era a última que ele esperava receber pessoalmente.
- Laura... Por que você está aqui?
- Não por um bom motivo, eu devo dizer. – adianta-se ela.
- Você sabe que eu estive te procurando por todo esse tempo, não é? Por que não respondeu às minhas ligações? Por onde você esteve?
A garota sorri. Em seu olhar ela diz: “você realmente acha que eu vou lhe dizer?”.
Mudando de assunto, ela pergunta:
- O que ouvi dizer sobre você é verdade?
Nathan se confunde.
- O que, exatamente?
- Quando esteve com os Clérigos do Recomeço, você realmente cometeu um atentado terrorista?
Pego desprevenido, o rapaz responde:
- Não! Não verdade, eu não sei. Eu fui enganado, me persuadiram a participar.
- Está dizendo que eles te persuadiram a participar de um atentado terrorista covarde, detonando uma bomba em um hospital cheio de inocentes? – pergunta ela, acusando-o.
- Mais ou menos. Quero dizer, não foi isso o que me disseram a princípio.
Mas quanto mais Nathan se explicava, mais ele se complicava em suas respostas. Laura, porém, era implacável em acusa-lo.
- Então te disseram que você iria detonar uma bomba, mas não onde?
- Algo assim.
- Não consigo acreditar que você fez isso, Nathan. Logo você, com seus discursos filantropos e altruístas, cometendo um atentado terrorista?
- Eu já disse que fui enganado! Eu não tinha a intenção de detonar nenhuma bomba.
- Tinha sim, você só não sabia onde os clérigos a detonariam.
Então o rapaz se cala. Laura continua:
- Até onde você está disposto a ir para acabar com essa rebelião, Nathan? Você realmente quebrará todas as regras para trazer a paz, adotando todas as táticas sujas das facções terroristas?
Irritando-se, o rapaz responde:
- Espere um pouco! Eu não sou nenhum terrorista imoral!
- Você traiu seus valores e princípios. Na verdade, sua única conduta agora é aquela que o ajudará a vencer a rebelião.
Nathan estava se cansando. Não foi daquele jeito que ele esperava reencontrar Laura. Entretanto, apesar de todos os acontecimentos, o rapaz ainda justificava-se em prol da salvação de Sonata. Ele se defende dizendo:
- Mas, antes de mim, você se aliou à Resistência Purista também. Na verdade, achei muito suspeito uma bomba explodir no território dos mecanicistas após eles sequestrarem o Vertigo.
Insinuando que Laura tivesse algo a ver com aquilo, ela responde:
- Por acaso está insinuando que eu explodi uma bomba no território dos mecanicistas?
- Você se aliou aos puristas para salvar seu amigo, lembra-se? E após o sequestro de Vertigo, você falhou ao encontra-lo. E de repente uma bomba se explode no território de seus arqui-inimigos. Eu disse que achei isso muito suspeito, não a acusei de nada. Isso quem faz é você.
Então Laura se irrita também.
- Você é muito patético se pensa que vai me enganar com suas suposições, Nathan. Você é irresponsável em tudo o que você faz. Primeiro o Vertigo é sequestrado, depois você comete um atentado terrorista e agora você retorna de uma incursão suicida na Cúpula Corporativa no meio de uma manifestação. Eu tenho pena de você.
O rapaz retruca:
- Tenha de si mesma com sua limitadíssima visão sobre tudo. Além de você, o Vertigo também fez uma aliança obscura com os facciosos. Vá lá e pergunte para ele como ele conseguiu convencer os Trans-humanistas a se aliarem a nós depois de terem sua base invadida e seu território explodido. Duvido que ele vá responder.
Agora Nathan insinua desconfiar de Vertigo. Sem querer admitir, ela compartilha dessa sensação também.
Após um minuto de desconforto e silêncio, a garota finalmente pergunta:
- Você detonou aquela bomba sim ou não?
Pesaroso, o rapaz responde:
- Sim.
- Isso era tudo o que eu queria ouvir.
Laura então se vira e vai embora. Nathan não vai atrás dela, ao invés ele diz:
- Eu fiz de tudo por você, Laura. Me humilhei, me arrastei e até sangrei para você gostar de mim. Mas você nunca me deu valor. – com lágrimas escorrendo em seu rosto, ele conclui – Pode ir, fique em paz, não precisa se esconder dessa vez. Eu não irei mais em sua casa procurar por você.
As palavras machucam a garota, mas orgulhosa demais para se virar, ela continua dolorosamente seu caminho. Nathan fica ali, sentado e chorando sozinho. Vendo a lata de refrigerante ao seu lado, ela a joga furiosamente no beco abaixo, triste e desanimado por ver sua vida se desmoronar.
Mas a garota, escondida em uma plataforma mais adiante, olha para trás procurando por Nathan. Ao vê-lo chorando à distância, lágrimas se escorrem em seu rosto também.

  

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Sonata - Parte 40 - Ataque no Distrito Japonês


O distrito de Monte Fuji atemoriza o rapaz. Desde sua última estadia, ele tem péssimas lembranças do lugar. Em um aerocarro com quatro runners, incluindo Vertigo, eles passam pelas vias virtuais iluminadas por milhares de neons japoneses.
Apesar do estranho comportamento de Vertigo, ele quis acompanha-lo nessa nova missão. O hacker esteve cativo durante dias, mas deu poucos detalhes de sua situação. O Submundo inteiro desconfia dele, mas por terem grande estima pelo admirado hacker, o toleraram no bunker. Nathan e Laura gostam dele, entretanto o astuto Database o manterá cautelosamente sob vigilância.
Diferente de seus comentários bem humorados e distraídos, agora Vertigo apenas abre sua boca para falar da missão. Ele havia voltado mais técnico e frio onde apenas o desempenho das missões o importavam.
Vertigo pergunta:
- Você acha que o plano vai funcionar?   
Nathan olha para trás. Por razões implícitas, desta vez não era o hacker quem dirigia.
- Eu não sei, Vertigo.
Olhando pela janela, o rapaz fica pensativo novamente. Assim como Database alertou, as facções são instáveis. Em seu ousado plano para aliar-se a elas, cada dia em que Nathan as visitava podia ser seu último.
A sede da Bushido se aproxima. O suntuoso templo com sua belíssima arquitetura oriental, brilha como uma joia nas alturas de Sonata. Abrindo a porta do aerocarro, Nathan e Vertigo descem. O rapaz diz:
- Desejem-me sorte.
Apertando as mãos dos runners, o veículo levanta voo e continua seu caminho.
Uma longa ponte atravessa os terraços dos edifícios. Caminhando sobre o piso metálico, seus passos fazem barulho sobre a vertiginosa altura. Seis miras lasers iluminam o corpo do rapaz, mirando seu rosto e suas costas. Levantando suas mãos, ele se mostra desarmado, alertando os snipers escondidos na paisagem noturna.
Na entrada do templo, dois guardas vestidos de samurais os aguardam. Ainda de mãos levantadas, o rapaz diz:
- Eu sou Nathan, sou o Inimigo de Estado. – os guardas não demonstram reação – Tenho uma informação importante ao Xogum Tokugawa.
Entreolhando-se, os guardas demoram a agir. Finalmente um deles os revista enquanto o outro contata alguém no vidphone. Voltando às suas posições iniciais, os guardas ficam parados ali, olhando para eles em silêncio. Nathan se intriga.
Minutos depois alguém aparece. Vestindo uma armadura samurai vermelha, um senhor de barbas pontudas se aproxima. O rapaz imediatamente o reconhece, “capitão Yamada” pensa ele.
- Kon'nichiwa, Nathan-san! Lembra-se de mim?
Um pouco temeroso, o rapaz responde:    
- É claro que sim. Você me sequestrou.
O capitão sorri, sem se importar.
- Imagino que tenha algo muito importante para falar ao Xogum Tokugawa hoje. Do contrário você jamais se atreveria a voltar aqui.
Nathan sarcasticamente responde:
- Muito perspicaz de sua parte.
Dando-lhes permissão, os guardas finalmente liberam a entrada. Levando-os pelo templo, Nathan relembra os exóticos detalhes do ambiente, desde os ornamentos à arquitetura. Vertigo se fascina também, pois nunca esteve ali antes.
Ao passarem por uma enorme porta de madeira, os três adentram o grande salão. Nathan reconhece o lugar, o infame salão onde ocorreu a decapitação de um samurai desonrado. Apesar de passado um ano, as imagens ainda são vívidas em sua memória.
Xogum Tokugawa o aguarda em pé no centro da sala, rodeado por seus mais valiosos samurais. O xogum porta duas enormes katanas em sua cintura e encara o rapaz friamente. Vendo as manchas vermelhas e escuras no piso, novamente Nathan sente medo.
Yamada o leva até poucos metros do Xogum. Nisto, os samurais ao redor se aproximam, cercando-os.
- Xogum Tokugawa... – diz Nathan – Boa noite. Em nome do Submundo, trago informações imprescindíveis ao senhor.
O líder não responde coisa alguma, ao invés ele dá ordens ao seus homens, dizendo:
- Ponham-no de joelhos!
Yamada chuta a junta de sua perna, fazendo-o cair. Então dois samurais seguram seus braços, deixando-o ajoelhado e de braços abertos perante Tokugawa. Vertigo grita também, posto na mesma posição.
Ao desembainhar uma belíssima katana de cabo enfeitado, a lâmina prateada brilha. O xogum a aponta ao pescoço de Nathan, fazendo-o suar. Antes que o rapaz pudesse fazer algo, o líder diz:
- Despendi uma quantia absurda para livra-lo dos fanáticos americanos, nossos arqui-inimigos. Te ofereci comida, abrigo e principalmente uma causa da qual valesse a pena lutar. E o que você me deu em troca? Rejeição, sabotagem, fuga e o pior de todos, desonra. Nos tornamos motivo de zombaria para nossos inimigos e infâmia para toda Sonata. Mas hoje você nos pagará por esse insulto.
Os samurais inclinam o rapaz para frente. Tokugawa levanta sua espada, preparando-se para golpear. Nathan diz:
- Espere! Eu tenho uma informação e preciso entrega-la ao senhor!
- Uma informação? Da última vez você também tinha uma informação, mas se negou a entrega-la. Por que se esforça para revela-la agora?
- Porque dela depende a sobrevivência de toda a Bushido!         
Os samurais se entreolham. Tokugawa, porém, se mantém firme.
- Cobra traiçoeira! Você agora trabalha para o pior tipo de gente em Sonata e espera que eu acredite em você? – responde ele, referindo-se à superfície.
- Eu sou o Inimigo de Estado! Me matando, você iniciará um guerra não apenas com a Submundo, mas com todas as facções que se aliaram a mim!
Nathan tem razão. Preocupados, os samurais olham para Tokugawa, que responde:
- É mentira! Te matando, a rebelião acabará. E vocês, marginais, mercenários e ladrões da superfície, perderão. E a honra da Bushido finalmente será limpa, lavada com o seu sangue.
O líder levanta sua espada.
- Ouça-me, primeiro! E então julgue se minha morte será necessária! – apela ele pela última vez – A polícia instalou morteiros pelo distrito. Seu ataque será iminente e eles já estão prontos para atacar!
Tokugawa se intriga.
- Morteiros...? Que ardil é esse, verme?
- Não é ardil nenhum, é a verdade. A polícia secretamente instalou morteiros pelo distrito Monte Fuji e pretendem ataca-los à distância. Se a Bushido não se preparar, a polícia os destruirá.
- E como você sabe disso? Como descobriu?
- Porque nós, os “marginais, mercenários e ladrões” da superfície temos mais recursos do que imagina.
Olhando para Yamada, o líder ordena:
- Kyaputen, pergunte aos sentinelas no Monte Fuji se eles têm conhecimento disso. Rápido!
- Hai! – responde ele antes de sair pela porta. 
- É melhor estar falando a verdade, rapaz. A Bushido não reage bem com quem brinca com nossa honra.
O rapaz responde:
- Eu bem sei de sua desavença, Tokugawa, mas nessa guerra todas as facções devem se unir. Temos um inimigo em comum com todo o aparato do Estado para o proteger. A Bushido não daria credibilidade ao Submundo se eu, o Inimigo de Estado, não o informasse pessoalmente.
Minutos depois Yamada retorna. Com um comunicador em sua mão, ele diz:
- Xogum Tokugawa, os sentinelas não confirmaram a informação.
- Como é?
- Não há morteiros espalhados pelo distrito.
Arregalando os olhos, os samurais veem o rosto do líder corar. Desonrado e tremendamente irritado, ele olha para Nathan e diz:
- Mentiroso...
Agora enfurecido, nada faria o líder parar. Levantando sua espada, ele novamente se prepara para decapitar Nathan. Então algo acontece.
Uma explosão é ouvida no telhado do templo. As paredes tremem e poeira cai sobre o piso.
- O que foi isso? – pergunta Yamada.
Confusos, os samurais se preparam para empunhar suas espadas e proteger seu líder. Ele, porém, olha para Nathan e o acusa.
- Foi sabotagem! Você trouxe aquele mercenário aqui para nos sabotar!
- Impossível! – protesta ele – Eu nem mesmo sei se o mercenário está vivo!     
- Vocês são espiões! – grita ele, ignorando-o.
Intentando ataca-lo, outra explosão é ouvida. O salão treme. Em seguida ocorrem outras quinze explosões, devastando o exterior do templo. Os samurais se desesperam.
- Estamos sob ataque! – brada um samurai.
O telhado começa a ruir e se desaba ao redor deles, levantando uma densa poeira no salão.
- Senhor, temos que sair daqui agora! – diz Yamada.
- Nunca! – recusa-se Tokugawa – Ficaremos aqui e defenderemos nossa fortaleza!
“Fortaleza?” pensa Nathan. “Eles realmente pensam que estão em um Japão feudal”.
Os samurais soltam Nathan e Vertigo. Agora livre, o hacker olha para o rapaz e pergunta:
- Você está bem?
- Eu pensei que ia morrer... – sussurra ele.
- Não foi a última vez. – adverte ele, de maneira pessimista.
O fogo se levanta. A fumaça e a poeira dificultam a respiração. Aproximando-se, Tokugawa puxa Nathan pelas roupas e o põe em pé.
- O que disse era verdade, rapaz?
Indicando a destruição ao redor, ele responde:
- O que você acha?
Gritos são ouvidos. Deixando o salão, uma viga se desprende do telhado e cai sobre um samurai. Preso debaixo dos destroços flamejantes, seus companheiros não podem fazer nada a não ser deixa-lo queimar até a morte. Novas explosões são ouvidas, as paredes laterais desabam.
Atordoado devido as chamas, o capitão Yamada, com muito esforço, informa:
- Senhor, nossos sentinelas encontraram os morteiros. Eles estão espalhados por todo o distrito!
Então os samurais olham para Nathan, acreditando-o.
- Separem as equipes, quero todos armados com fuzis lasers. Matem todos os policiais que encontrarem!
- Não! – grita Nathan – Não há policiais aqui. Os morteiros são controlados à distância, via ciberespaço. Vocês devem usar mísseis e explosivos se quiserem destruí-los.
Desconfiando do rapaz, o líder pergunta:
- Como você sabe de tudo isso?
Irritando-se, Nathan responde:
- Pela última vez, Tokugawa, confie em mim.
A contragosto, o líder olha para seus samurais e ordena:
- Separem os aerocarros. Quero todos equipados com torretas e prontos para atacar.      
Assentindo, os samurais correm pelo templo em chamas. Acenando para Vertigo, o rapaz intenta sair dali, mas Tokugawa o impede.
- Você vem comigo, rapaz! Se algo me acontecer, você sofrerá também.    
Levando o rapaz pelo braço, Tokugawa se dirige a um aerocarro. Vertigo é levado a força por outro samurai e ambos vão para o contra-ataque.
Minutos depois, eles sobrevoam o distrito em um aerocarro. O motorista olha para o mapa no painel e confirma as coordenadas do alvo. Ele diz:
- Tokugawa-san, alvo a trezentos metros. Solicitando permissão para o ataque.
Vociferando ao lado de Nathan no banco de trás, o líder responde:
- Pulverize-o!
Controlando a torreta, um samurai no banco do passageiro a mira para o alvo à frente. Tokugawa não vê um morteiro, mas sim um canhão antitanque esverdeado efetuar disparos aleatórios pela noite. Um segundo depois, três mísseis são disparados, voando em direção ao canhão e explodindo-o em centenas de pedaços.  
- Eram canhões! – surpreende-se o líder – Por isso causaram tantos estragos em minha fortaleza.
Encontrando mais dois, eles os destroem também. Assim como Nathan disse, não havia ninguém operando-os. Minutos depois, os outros aerocarros os contatam, dizendo:
“Tokugawa-san, os alvos foram destruídos com sucesso”.
Apertando um botão no painel, o líder abre o canal de comunicação e responde:
- Entendido. Vamos voltar.
Manobrando o aerocarro no ar, eles tentam voltar quando uma viatura policial passa por eles. De sirene ligada, a metralhadora do veículo abre fogo contra os samurais, assustando-os.
- Tokugawa-san! O senhor está bem? – pergunta o motorista.
Ignorando-o, o líder responde:
- Siga aquela viatura, agora!
Virando-se, o aerocarro persegue a viatura pelo céu. Enfiando-se entre as megatorres, a viatura atravessa perigosamente o distrito. O motorista tem dificuldade em segui-la, pois as explosões provocaram o caos nas vias virtuais e nas passarelas. Então, desligando as sirenes, a viatura se embica e mergulha pela escuridão abaixo. Os samurais veem a viatura descer rapidamente e se surpreendem.
- Senhor... – começa o motorista – a viatura desceu para a superfície. Devemos segui-la?
Olhando para baixo, Tokugawa vê a viatura policial descer e, como um fantasma, sumir na escuridão. Receoso, ele responde:
- Não. Nós já vencemos essa batalha essa noite. Acabou. Vamos voltar para a fortaleza.   

§

Horas depois, o fogo no templo estava controlado. As paredes e o telhado, porém, estavam arruinados em pilhas de brasa e entulho. Reunidos no salão principal, os samurais sabiam que não tinham tempo para se lamentar. O inimigo corporativo se levantou naquela noite, quebrando a paz delicada mantida há alguns anos no Monte Fuji. Apreensivos, todos sabiam o que aquilo significava: guerra.
- Quantos canhões haviam no distrito? – pergunta o líder.
- Quatorze. – responde Yamada.
- E quantas vítimas eles fizeram?
Pesaroso, o capitão responde:
- Vinte e três.
Respirando fundo, Tokugawa diz:
- Vamos honrar suas mortes depois, e certamente nos preparar para o luto. Entretanto, devo informar que mais mortes foram evitadas hoje, graças a um homem que, arriscando sua vida, muito bravamente veio nos alertar esta noite. – então ele olha para Nathan – Peço que saúdem a Nathan-san, o Inimigo de Estado!
Então os samurais se curvam ao rapaz, saudando-o. Lisonjeado, Nathan sorri, acenando com a mão.
- De jurado de morte a convidado de honra. Parabéns, Nathan-san. A Bushido tem uma dívida de gratidão.
O xogum lhe presenteia com uma katana. O rapaz aprecia o exótico presente, contemplando-a com muita alegria. Aproveitando o momento, o rapaz diz:
- Xogum Tokugawa, me sinto honrado e profundamente agradecido. Porém, há algo que pode fazer para retribuir o favor.
O xogum e os samurais se intrigam.
- E o que seria?
- Como todos já devem saber, as corporações retomaram o Projeto Gemini e planejam substituir a população com o Protótipo#8. Devido a esse hediondo plano, deflagrei a rebelião em Sonata, na esperança de que eles fossem impedidos. Mas não posso fazer isso sozinho e a cada dia que passa mais vítimas são feitas nessa sangrenta rebelião que eu mesmo causei. Portanto, do fundo do coração lhes peço que se aliem a nós, o Inimigo de Estado e o Submundo, para que, com a ajuda das outras facções também aliadas, nos ajudem a derrubar o governo corporativo e encerrar esse irracional e violento banho de sangue.
Nathan se cala. Um silêncio incômodo paira no templo em ruínas. Entreolhando-se, os samurais mais velhos parecem se surpreender com a notável eloquência do rapaz.
O líder pondera em silêncio. Então, cheio de honra em sua postura e sua voz, ele levanta sua cabeça e diz:
- Quando for combater o imperialismo corporativo e seus desonrados samurais da polícia, conte com a Bushido para o ajudar.
Sorrindo, Nathan aperta sua mão e os samurais os aplaudem. Em seguida, ambos se encurvam um ao outro, em típico sinal de respeito japonês.
    

domingo, 21 de abril de 2019

Sonata - Parte 39 - A Verdade Sobre as Facções



Laura e Vertigo voltam para a superfície. Levando o hacker na garupa, a garota sobrevoa as movimentadas ruas com sua aeromoto. Vertigo conversou pouco durante a viagem e manteve-se a maior parte do tempo em silêncio. Laura se intriga mas, tendo sua privacidade sempre respeitada por seu amigo, prefere não pressiona-lo tanto. Todavia, ela não esconde sua preocupação com o hacker. 
Chegando ao Submundo, ela estaciona a aeromoto na rua e prossegue pelo sinuoso beco. Vertigo a acompanha em seu incomum silêncio, ecoando seus passos pela escuridão. Entrando no bunker, muitos veem o hacker e calorosamente o cumprimentam, felizes em ter seu companheiro de volta. Laura é cumprimentada também, sendo gratificada pelo bem-sucedido serviço.   
Database aparece em seguida e, olhando para o hacker, ele pergunta:
- Você está bem?
Um pouco sério, Vertigo responde:
- Sim, chefe. Obrigado.
Database se intriga. Geralmente o hacker seria mais eloquente, mais falante, mas naquele momento ele demonstra uma frieza incomum. Após tudo o que aconteceu, Vertigo jamais responderia de maneira sucinta.
- O que aconteceu na sede dos Trans-humanistas? Eles machucaram você?
Mantendo-se calmo, ele responde:
- Não.
- Você tem certeza?
- Sim. Eles não me fizeram mal algum.
Olhando para Laura, o chefe se intriga.
- Onde esteve todo esse tempo?
- Estive no Setor T, na sede dos Trans-humanistas. Eles me mantiveram preso, mas decidiram me soltar.
- Por quê?
- Porque para eles eu não tinha valor algum.
- Está dizendo que após todo esse tempo eles simplesmente te deixaram ir?
- Sim. Não havia razão para me manterem preso. Era Nathan quem eles queriam.
Database se confunde e não sabe o que dizer. Por fim ele diz:
- Fico feliz que você esteja bem, mas vou ter que fazer exames em você. Preciso averiguar sua saúde e garantir que você realmente esteja bem.
Vertigo se opõe.
- Não há necessidade. Eu não estou ferido.
- É um procedimento padrão, você já deve saber.
- Mas eu estou bem.
- Então me deixe examina-lo. Por segurança.
Então, pela primeira vez, o hacker sorri.
- É por isso que quer me examinar, não é? Não por minha saúde, mas por segurança?
Database o provoca.
- Alguma objeção?
- Não, mas eu posso me recusar, se eu preferir.
Desta vez é Database quem sorri.
- Sim, pode. Recuse-se, saia pela porta, se quiser. Mas cedo ou tarde você acabará aqui, acordando em minha sala de exame, por bem ou por mal.
Ao demonstrar autoridade, os runners se intimidam. Raramente eles viam seu chefe irritado, e era melhor mantê-lo assim.
- Se você insiste. – responde ele, fingindo consentir.
Deitado na mesa cirúrgica, o hacker é envolvido pela sonda eletromagnética. Luzes brilhantes percorrem seu corpo, procurando por sinais externos ou internos de agressão.
Olhando pela janela do lado de fora, Laura e Database o observam. O chefe pergunta:
- Os mecanicistas te deram problemas?
Sem desviar o olhar de seu amigo, ela responde:
- Não. Na verdade, não encontrei nenhum.
Assentindo, ele olha para Vertigo e pergunta:
- O que aconteceu com ele? Ele disse algo a você?
- Não, nada. Ele está estranho desde quando o encontrei.
Ponderando, Database diz:
- Se houver algum implante de controle mental nele, os exames acusarão.
- Você acredita que ele pode estar sendo controlado?
- É provável. Devemos nos lembrar que Nathan quase foi implantado à força cirurgicamente. Se você não o salvasse, nós o teríamos perdido.
Laura concorda.
- Se os mecanicistas fizeram algo com Vertigo, eu vou matar cada um deles.
O chefe sorri.
- Então você vai precisar de armas bem grandes.
O exame termina. Entrando apressadamente na sala, Database averigua o relatório no computador. Sua expressão é de desânimo. Aproximando-se, a garota pergunta:
- E então? Foi encontrado algo?
Respirando fundo, o chefe responde:
- Não. Os exames não encontraram nada.
Então Laura se confunde também. Apesar da forte desconfiança, ambos não podiam provar.
Levantando-se, Vertigo veste seus calçados e diz:
- Acreditam em mim agora?
Irritado, Database o encara, mas não diz nada.

§

Em um aerocarro dirigido por ateístas, Nathan é levado de volta à superfície. Pensativo, ele segue a viagem em silêncio, lembrando-se dos momentos antes de deixar a sede da Frente Ateísta.
Levando-o a um galpão, Dawkins lhe disse:
- Aqui é onde armazenamos nosso arsenal. Este é o poderio militar de nossa facção.
Então o rapaz vê as milhares de armas enfileiradas e as munições empilhadas junto às paredes. Semelhantes aos Trans-humanistas, os ateístas também têm exoesqueletos e armaduras de combate à disposição. Caminhando pelos armamentos, Nathan vê um drone em uma mesa. Havia algo escrito na fuselagem. Aproximando-se, o rapaz lê a famosa frase de Iuri Gagarin, que diz: “Olhei para todos os lados, mas não vi Deus”.
Nathan fica boquiaberto. Ele pensa: “E tudo isso na mão desses arruaceiros?”.
Parando em uma plataforma elevada, eles sobreolham o galpão. Dawkins comenta:
- Sei no que está pensando. Você acha que eu estou dando armas para os macacos, não é mesmo? Não é nada disso, nossa facção é mais séria do que imagina e temos todos os meios para sermos ouvidos. – mudando de assunto, ele diz – Eu sei que você já selou uma aliança com os Clérigo do Recomeço. Me responda uma coisa, Nathan. O que você fez para convencer aqueles fundamentalistas a se aliarem a você?    
Lembrando-se do atentado, o rapaz novamente se empalidece.
- Eu... – gagueja ele – Apenas os convenci das vantagens de se trabalhar com o Submundo.
Encarando-o, o líder percebe o medo em seu olhar.
- Não precisa ter medo, Nathan. Apesar de nós e os clérigos sermos inimigos mortais, você é o determinado Inimigo de Estado, preocupado apenas em combater a sua rebelião.
Suando, o rapaz responde:
- Está bem.
- E então? – insiste o líder – O que você fez aos clérigos?
- Eu apenas os convenci. Talvez eles também tenham interesse, pois aceitaram facilmente assim como a Resistência Purista.
- Simples assim?
- Sim.
Dawkins assente.
- Nesse caso, deixe-me lhe falar algo sobre esses fundamentalistas. Os Clérigos do Recomeço vivem em um delírio religioso e espalham suas doutrinas nos territórios em que eles controlam. São contraditórios e violentos, pois pregam a paz e promovem a guerra. Eles dizem existir um deus benevolente e bondoso, mas na verdade adoram um deus inventado, de moralidade flexível, originado nas mentes dos cardeais e seu líder. Sua conduta é imoral e vitimista, pois forjam atentados terroristas para reforçarem sua narrativa de perseguição religiosa. Por acaso você ficou sabendo de uma explosão em uma escola?
O rapaz imediatamente se lembra. Os clérigos o mostraram aquele atentado covarde em que se feriram mulheres e crianças.
- Sim.
- Aquele foi um atentado falso, forjado para jogar a culpa em nós, a Frente Ateísta.
Nathan não acredita.
- Não pode ser. Eu vi o vídeo, as vítimas jaziam mortas no chão.
- Eram falsas. Os clérigos encenaram a explosão. Se tivéssemos cometido um atentado tão covarde, você não acha que a polícia não viria atrás de nós, com a fúria do povo e sedentos de sangue, para esmagar nossa organização?
O rapaz pondera. “Nada tão sanguinário sairia ileso assim” pensa ele.
- Como que crianças encenariam algo com tamanha perfeição? – pergunta ele.
- Talvez não seja totalmente uma encenação. Lembre-se que eles são radicais religiosos. Eu não duvido que eles tenham usado bombas não-letais para simular uma explosão. De qualquer forma haveriam feridos, mas não fatalmente.
Nathan se confunde. “Será que os clérigo me manipularam?” pensa ele.
- Eu não consigo acreditar.
- Acreditando ou não, os fundamentalistas explodiram um hospital em nosso território. E esse, Nathan, foi bem real.
O rapaz arrisca uma pergunta:
- Houveram vítimas?
Dawkins sorri.
- Dezenas. Vinte e sete mortos e quarenta e quatro feridos.
Nathan arregala os olhos. Pensativo, ele não consegue acreditar que foi enganado pelos clérigos. Por outro lado, os ateístas são radicais também, só que antirreligiosos. Nessa luta ideológica, ambas as partes forjariam provas para se justificar. “E se Dawkins estiver mentindo?” pensa ele. “E se o atentado realmente aconteceu e ele está escondendo-o?”. Nathan não sabe em quem acreditar.
- Droga... – sussurra ele. O mundo das facções é mais sujo do que ele pensa.
Um minuto se passa. Observando o arsenal lá embaixo, Dawkins diz algo sem olha-lo nos olhos. 
- Você tem sua aliança, Nathan. A Frente Ateísta aceita trabalhar com o Submundo.
Surpreendido, o rapaz não sabe o que dizer.
- Eu... – hesita ele – o agradeço, senhor Dawkins.
O rapaz se alegra, pois mais uma vez a rebelião se aproximava do fim.
- Mas eu devo te alertar uma coisa. – continua ele, preocupando-o – Entre as facções nunca haverá paz, não agora e nem depois da rebelião. A Frente Ateísta jurou vingança contra os Clérigos do Recomeço, as vítimas do hospital nos clamam isso. Nós já temos espiões trabalhando no caso. Quem quer que o tenha explodido, vai pagar caro pelo que fez.
Então Nathan se sente em perigo.
- Eu compreendo. – responde ele, arduamente.
- Considere minhas palavras, Inimigo de Estado. A paz que tanto almeja não passa de uma ilusão. Lembre-se disso quando vencermos, e se vencermos, a rebelião.
O rapaz assente, sentindo um gosto amargo em sua boca. Minutos depois eles se despedem e os ateístas o levam embora da sede da Frente Ateísta.     

§

Pousando próximo ao Mystique, Nathan deixa o veículo e se despede dos ateístas. Levantando voo, o aerocarro se eleva entre as plataformas e tubos, deixando a superfície.
Caminhando pelas ruas, o rapaz se alegra ao finalmente voltar para casa. Entretanto, algo o incomoda, ele se preocupa com Maynard. “O que será que te aconteceu, seu mercenário ardiloso?” pensa ele.
De volta ao Submundo, ele é recebido com surpresa e admiração. Os runners não esperavam reencontra-lo vivo novamente, não depois do massacre na manifestação. Uma runner se aproxima e diz:
- Nathan, você está horrível. – ela se refere às suas roupas sujas.
Outro runner lhe diz:
- No que estava pensando indo lá em cima sozinho? Virou um suicida?
Esboçando um sorriso, ele responde:
- Ainda não. O Database está aqui?
- Sim, está. – então o runner lhe informa – Nathan, temos boas notícias. O Vertigo voltou... E Laura também.
O rapaz se paralisa.
- Onde eles estão?
- Na sala médica.
Apressando-se, Nathan percorre os corredores, deixando-os para trás.
Parados em frente à sonda eletromagnética, o rapaz vê Database, Vertigo e Laura conversando. Abrindo a porta, os três olham para ele, mas Nathan só consegue ver uma pessoa à sua frente. Ele sussurra:
- Laura...
A garota faz um semblante irritado e cruza seus braços, em linguagem corporal rejeitando-o.
- Nathan, você está bem? – pergunta Database, preocupado.
- Sim, eu acho. – responde ele, olhando para suas roupas sujas de sangue.
- Nathan, você não tem sete vidas. Se continuar se arriscando assim, você morrerá.
- Eu sei, chefe. Na verdade, eu tenho muito a lhe dizer.
Vertigo então o interrompe.
- Eu também tenho algo a lhe dizer, Nathan. Os Trans-humanistas aceitaram a aliança e também trabalharão com o Submundo.
Então Database e Laura se entreolham.
- Vertigo, por que você não me disse isso antes?
- Porque esta era uma mensagem pessoal para o Inimigo de Estado.
Intrigado, ele pergunta:
- Pessoal? De quem?
- De Huxley, o líder dos Trans-humanistas.
Ainda intrigado, o chefe diz:
- Nathan e Vertigo, vamos para a minha sala, vocês têm muito a me dizer. E Nathan – chama ele, olhando para o rapaz e para Laura –, você poderá cuidar de seus assuntos depois.

   

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Sonata - Parte 38 - Frente Ateísta



Distinguindo-se na metrópole, o distrito de Aquarius – Setor F tem poucas megatorres. Ali a superfície é visível, não tendo a luz solar obstruída pelos enormes monólitos de concreto e aço. Entretanto, inúmeros viadutos ferroviários cruzam o céu, sustentados por seus robustos pilares. As longas pontes se estendem por quilômetros, encobrindo largas porções da superfície e ironicamente obstruindo a luz solar, assim confinando os níveis inferiores à escuridão.
Debaixo dessas largas pontes e protegidos pela vigilância inimiga, encontra-se a sede da Frente Ateísta. Aproveitando as estruturas remanescentes, os ateístas construíram sua fortaleza escondida, o quartel-general de onde eles promovem sua militância.
Nathan é trazido ao local. Descendo pelas profundezas do distrito, os propulsores do aerocarro levantam poeira enquanto se aproximam da área de pouso. Alguns sectários se aproximam, portando armas lasers em suas mãos. A porta se abre e Nathan deixa o veículo, finalmente pisando em terra firme após a longa viagem.
Deparando-se com a sede ateísta, o rapaz tem uma grande surpresa. À sua frente ele vê um prédio rústico, construído debaixo dos viadutos ferroviários acima. Ao seu redor há cercas de arame farpado e vários barris com fogueiras dentro, espalhados pela área externa. Nathan se sente na vizinhança do Mystique, pois os sinais de sujeira e improviso eram idênticos.      
Os guardas da sede se aproximam para escolta-lo. O rapaz nota que eles têm uma aparência arruaceira, pois todos se assemelhavam àquele grupo que o encontrou na superfície da Cúpula Corporativa. Os guardas vestem coturnos, roupas camufladas e jaquetas de couro, e Nathan nota que os dois têm moicanos vermelhos em suas cabeças. Eles então dizem:
- Siga-nos, por favor.
Seguindo-os pelo pátio, o rapaz nota que todos eles têm um símbolo “A” estampado em suas roupas. Então o rapaz percebe. O símbolo não queria dizer Anarquia e sim “Ateísmo”, alterando levemente o “A” original.
Entrando no prédio, os homens de cabelo moicano o guiam pelas escadas. Pelos corredores e salas, Nathan vê algumas paredes pichadas e vários cartazes políticos. Passando pelo refeitório, ele nota que o vasto ambiente demonstra sujeira, como se aquelas pessoas não se importassem com a higiene. Os dormitórios são mal organizados e as salas de servidores tem seus fios espalhados pelo chão. Mas, apesar da desorganização, todos ali estavam fortemente armados.
Chegando ao último andar, os guardas lhe indicam a sala do líder. Ao entrar, o rapaz se surpreende. Diferente do resto do prédio, a sala era limpa e bem organizada. Nathan vê vários diplomas na parede, assim como vários retratos do líder com pessoas influentes. O líder, porém, estava ausente.
- Sente-se, por favor. Nosso chefe já está a caminho. – diz um dos guardas.
Nathan se senta em uma confortável poltrona. Enquanto espera, ele nota que aquela sala tinha muitos luxos. Uísques, charutos, vinhos, e na parede à frente, um grande quadro com o “A” de ateísmo.
Alguns minutos depois o líder entra. Nathan vê um homem velho, de aparentemente cinquenta anos, vestindo elegantes roupas sociais. Era como se o líder fosse outro visitante, um intelectual no meio dos sectários arruaceiros. Ao vê-lo, o rapaz se levanta e o líder respeitosamente o cumprimenta.
- Boa tarde, senhor Nathan. Como vai?
Lembrando-se de seu terrível dia horas atrás, Nathan responde em tom de alívio:
- Bem, graças a Deus.
Então os homens se irritam. Com o pesado silêncio dominando o ambiente, o rapaz pode ver o ódio crescente em seus olhos, mas bravamente disfarçados atrás de suas faces.
- Perdoe-me. Eu não quis dizer isso.
Ignorando-o, o líder se apresenta.
- Meu nome é Bertrand Dawkins. Sou o líder da Frente Ateísta.
Apertando-lhe a mão, o rapaz responde:
- Nathan Hill. Prazer em conhece-lo.
O líder se senta e enche dois copos de uísque. Jogando algumas pedras de gelo, Dawkins o serve ao rapaz.
- E então? – pergunta ele – Ouvi dizer que você gostaria de falar comigo?
- Sim. Em nome do Submundo, eu venho propor uma aliança com a Frente Ateísta.  
Dawkins não responde, ao invés disso ele fita Nathan nos olhos e bebe um gole de seu uísque. Então o rapaz bebe também, acompanhando-o. Para a surpresa do líder, o rapaz não se incomoda com a ardência do líquido, pois após um ano vivendo na superfície, Nathan já havia se acostumado à bebida forte.
- Antes de falarmos disso, devo dizer que é uma tremenda honra recebe-lo aqui. Eu jamais imaginei que receberia o Inimigo de Estado em minha sede.
Nathan se sente lisonjeado. Não é frequente que ele é elogiado por um homem tão mais velho.
- Obrigado.
- Porém – continua ele – eu preciso te perguntar uma coisa. Você é um agitador ou um militante?
O rapaz não compreende.
- O que quer dizer?
- Na manifestação, meus soldados me disseram que você provocou um violento confronto, causando um verdadeiro massacre por parte da polícia. Também me disseram que você estava praticamente sozinho, protegido por apenas um amigo, um mercenário, talvez? – o líder respira fundo e conclui – Depois de tudo o que aconteceu, eu sinceramente não sei dizer se seu ato foi deliberado ou apenas irresponsável mesmo.
Nathan se irrita. As facções se aproveitam de sua posição vulnerável para o insultar. Cansado dessa esparrela, ele olha para Dawkins e responde:
- Não foi deliberado e muito menos irresponsável. Eu já disse, foi um acidente.
O líder pondera.
- Eu concordo que foi um acidente, um acidente você se tornar o Inimigo de Estado, mas o massacre na manifestação? Não, isso não foi um acidente, isso foi irresponsável mesmo. – reitera ele, provocando-o – Você é idolatrado lá em cima, as pessoas te veem como um herói, um libertador. Talvez você ache justo usar a vida de inocentes para combater em sua rebelião, mas preciso saber se você fará o mesmo conosco, os soldados da Frente Ateísta.
- O quê?! Eu não estou usando a vida de ninguém. Meus objetivos são claros e nunca os escondi das pessoas. Eu combato a ameaça do Protótipo #8 e do Projeto Gemini.
- Mas, discursando isso sobre uma pilha de cadáveres, não me parece muito convincente. Portanto eu refaço a pergunta: você é um agitador ou um militante?
O rapaz não sabe o que responder. Ele arrisca.
- Sou um militante.
Apoiando-se na mesa, o líder sorri.
- Então temos algo em comum. Os seus companheiros runners também estão dispostos a morrer em sua rebelião?
- Nossa luta não é pela morte e sim pela vida.
- Nunca subestime o poder dos mártires, senhor Nathan. Se quiser vencer, você precisará deles. – ele continua – Por acaso você conhece a nossa facção?
O rapaz estudou alguns pontos importantes sobre os ateístas, mas com a constante luta nos níveis superiores, ele não teve tempo para se aprofundar no assunto.
- Eu ouvi dizer que vocês lutam por um Estado antirreligioso.
Dawkins concorda.
- Precisamente. Antes da Catástrofe de 2057 nós lutávamos contra o preconceito e a discriminação que os ateus sofriam. Em um mundo moderno, passivo de profundas mudanças sociais impulsionadas pelo avanço científico, a mera possibilidade da inexistência de um deus apavorava os fundamentalistas. Mas eles não permitiriam que esse formidável progressismo se instaurasse tão facilmente. Campanhas de ódio e difamação foram feitas, mas nós diligentemente as combatemos, usando suas próprias leis contra eles mesmos.
- Quais leis? – pergunta Nathan.
- A garantia da liberdade religiosa, incondicional e irrestrita, e a manutenção do Estado Laico.
Com a mão no queixo, o rapaz balança positivamente a cabeça. Dawkins então continua.
- Através de nossa militância, nós retiramos todas as representações religiosas dos espaços públicos. Imagens, santos, símbolos, livros sagrados, tudo foi tirado. Com a lei ao nosso lado, perseguimos nossos perseguidores, abolindo sua influência da sociedade e com ela sua arcaica noção ética e moral. Pouco a pouco implantamos o secularismo, finalmente nos aproximando do pleno Estado antirreligioso. Em outras palavras, nossa militância representava o novo Renascentismo!
O líder se empolga ao falar de suas convicções. Nathan não pode fazer nada a não ser ouvir.
- Mas... – continua ele – Veio a Catástrofe de 2057 e todo o nosso empenho se perdeu.  
O rapaz pergunta:
- O que aconteceu?
- Em 2057 nossa inevitável vitória foi interrompida. Com a devastação do mundo, nossa militância se perdeu. Mas felizmente, com a construção da metrópole, eu, Bertrand Dawkins, a retomei e sozinho a reconstruí, fundando e gerindo toda essa organização que você está vendo hoje.
Nathan se confunde.
- Está dizendo que você sozinho reconstruiu uma organização ateísta inteira, pré-2057?
Convictamente, o líder responde:
- Sim.
Impressionado, o rapaz comenta:
- Mas do jeito que você fala, me parece que o ateísmo militante da época era composto de cientistas sociais, intelectuais, professores e filósofos, e não desses arruaceiros aí fora.
Os guardas se ofendem, mas Dawkins acena com a mão, contendo-os. Pedindo-os para sair, o líder explica:
- Concordo que a aparência de meus soldados não correspondem com o brilhantismo de nossa ideologia, mas não se engane, senhor Nathan. O que lhes falta em intelecto lhes sobra em vontade. A juventude é abundante em algo que nos carece com o passar dos anos: força de vontade. Confesso que tive dificuldades em convencer esses jovens a se juntar à minha causa, mas ainda assim pude lhes mostrar os malefícios do teísmo e do efeito nocivo da fé. E esses, como você disse, arruaceiros e vagabundos de hoje, serão os ideólogos da militância ateísta amanhã.
Nathan pergunta:
- Você tem certeza que será prudente substituir a moralidade objetiva pela subjetiva?    
Surpreendendo-se com seu conhecimento, Dawkins responde:
- Que objetividade? O conceito de uma divindade plenipotente e universal lhe parece lógico? Quantas religiões haviam no mundo até 2057? Umas cinco mil. E quantos deuses haviam? Multiplique esse número por três. Vai me dizer que cada um deles tem uma objetividade diferente, estando todos acima de nosso próprio senso moral? – ele pausa para o rapaz ponderar um pouco – Não, senhor Nathan. Deuses podem ser inventados. De fato, eles foram criados na mente de profetas, sacerdotes, mártires e outros fundamentalistas. Eis aí sua existência, na mente de quem os cria e de quem os acredita.
O rapaz aprecia a resposta, mas em seguida ele faz outra pergunta:
- Mas o senhor considera o fato de que eles podem ser úteis em uma sociedade doente?
- Não, eles que são a doença. Deuses foram criados para a alienação intelectual e controle social, nada mais. A fé é um artifício irracional e ilógico que amortece as massas quanto ao verdadeiro problema, o teísmo. Por esta maneira, combato inclusive o agnosticismo, pois apesar de não poderem comprovar a existência de um deus, eles admitem a possibilidade deles existirem. E não existem.
- Então os deuses foram criados unicamente para controlar as massas?
- Sim, e foram muito eficientes em seus efeitos. É como disse o filósofo iluminista Voltaire: “se deus não existisse, seria necessário inventa-lo”.     
- Interessante. – diz Nathan.  
- Implantar o Estado Laico é a libertação de qualquer sociedade. Religião não é a solução e sim o problema. A fé não dá respostas, só impede perguntas. No Laicismo pleno, não haverá deuses ou reis, apenas o Homem.
Novamente Nathan acha muito atraente a convicção ateísta.
- Mas estará o Homem preparado para viver sem a noção protetora de um deus?
Sorrindo, Dawkins responde:
- É claro que sim. Como disse Nietzsche em sua teoria do Übermensch, “Deus está morto!”. Quando a humanidade finalmente perceber isso, tirará do fundo de sua própria essência a capacidade para criar seus próprios valores niilistas, livre das crenças compassivas e póstumas promovidas pelo fundamentalismo.
- Uma sociedade baseada em fortes e fracos, onde os mais fracos serão esmagados pelos mais fortes? – provoca Nathan.
- Não, uma humanidade livre do medo para buscar um real significado na vida.
O rapaz não concorda com tudo o que Dawkins disse, mas confessa achar tudo aquilo muito interessante. O líder da Frente Ateísta é um homem muito inteligente e com muita cultura, os diplomas nas paredes comprovam isso. “Porém” pensa ele, “pode a inteligência justificar a violência e o fanatismo?”.
- Admiro sua inteligência, senhor Dawkins, mas gostaria que ela não fosse usada para o terrorismo.
Ao ouvi-lo, o líder relativiza.
- O que é a violência para um soldado niilista? Na implantação do Estado secular laico, valores compassivos não devem existir. É como disse Maquiavel: “os fins justificam os meios”. Se quisermos suplantar a noção de deuses, devemos ter valores diferentes deles. Nossa facção é pequena, meus soldados são arruaceiros violentos, mas nossa causa é nobre. Queremos a libertação do Homem. Se não combatermos fogo com fogo, como poderemos prevalecer?
Para Nathan, todas as facções são maquiavélicas, pois todas defendem o extremismo. Não importa a ideologia ou doutrina, em sua luta pela revolução, “os fins justificam os meios”.
- Entendo o seu ponto de vista. Não estou aqui para criticar, na verdade. – responde ele, tentando parecer diplomático.
Acendendo um charuto, o líder expele a fumaça e então diz:
- Fico feliz que tenha entendido. As facções de Sonata, a Frente Ateísta incluída, têm causas e objetivos bem definidos. Mas não posso dizer o mesmo do Submundo.
- O que quer dizer?
Dawkins pega outro charuto e o oferece ao rapaz. Ele logo o aceita, pois nunca havia fumado um antes. Em silêncio, o líder apenas o observa enquanto ele tenta – sem a menor experiência – acender o charuto com o isqueiro. Quando finalmente consegue, Nathan traga a fumaça para dentro dos seus pulmões. A reação a seguir é hilariante, pois o rapaz tosse inúmeras vezes, envolvendo-se na mesma fumaça que ele acabara de tragar. Dawkins, porém, se mantém sério.
- Eu quero dizer – responde ele, ignorando a vergonhosa reação dele – que eu conheço a causa do Submundo, toda a Sonata conhece. Mas eu não conheço seu objetivo.
- Objetivo...? – pergunta ele, enquanto tosse.
- O que pretendem fazer, Nathan? O que pretendem se, hipoteticamente, o Submundo e as facções vencerem a rebelião?
Nathan não sabe o que responder. Essa etapa era tão improvável que ele havia focado apenas na coalisão, que era tão improvável quanto.
- Eu não sei.
- Não sabe? – insiste ele.
- Não. – ele tem uma ideia – Talvez fomentar a partilha de Sonata.
Dawkins deixar escapar um sorriso.
- De fato, é uma ideia interessante, mas impraticável. As facções são organizações antagônicas, heterogêneas entre si. Se as corporações caírem, Sonata será pequena demais para todas. Quer saber o que eu penso, senhor Nathan? A violência não cessará com o fim da rebelião, muito pelo contrário, continuará pior do que nunca, afundando a metrópole em uma extensa e sangrenta guerra civil.
Essa mera ideia assombra o rapaz.
- Tenho esperança que após o fim das corporações, as facções poderão conviver em paz.
Meneando negativamente a cabeça, Dawkins responde:
- Paz? Deixe-me dizer o que a Frente Ateísta fará após a rebelião: vingança! Nos vingaremos dos nossos arqui-inimigos, os Clérigos do Recomeço. As forças de segurança não irão mais nos atrapalhar, partiremos para uma guerra aberta, feroz, implacável em nosso intento. Vamos destruir sua pífia crença medieval, queimaremos sua sede e exterminaremos seus membros. A razão vencerá a fé, ninguém mais será enganado pela ilógica crença fideísta. A Frente Ateísta vencerá!
Dawkins vocifera, havendo ódio em sua voz. Pela primeira vez, Nathan vê o fanatismo em seu olhar, oculto por trás de sua elegância.
- Apesar de lutarmos pela paz, vocês ainda pretendem se vingar?
- Definitivamente. E não esperaremos a rebelião acabar para isso. - diz ele, referindo-se a algo mais recente - Nós encontraremos o responsável pela explosão do hospital em nosso território, destruído dias atrás. E quando o pegarmos, a “salvação” será a única coisa que ele desejará receber.
Apavorado, Nathan se empalidece.
Levantando-se, o líder gentilmente diz:
- Vamos, Nathan. Vamos andar um pouco.