Distinguindo-se
na metrópole, o distrito de Aquarius – Setor F tem poucas megatorres. Ali a
superfície é visível, não tendo a luz solar obstruída pelos enormes monólitos
de concreto e aço. Entretanto, inúmeros viadutos
ferroviários cruzam o céu, sustentados por seus robustos pilares. As longas
pontes se estendem por quilômetros, encobrindo largas porções da superfície e
ironicamente obstruindo a luz solar, assim confinando os níveis inferiores à escuridão.
Debaixo dessas
largas pontes e protegidos pela vigilância inimiga, encontra-se a sede da
Frente Ateísta. Aproveitando as estruturas remanescentes, os ateístas
construíram sua fortaleza escondida, o quartel-general de onde eles promovem
sua militância.
Nathan é trazido
ao local. Descendo pelas profundezas do distrito, os propulsores do
aerocarro levantam poeira enquanto se aproximam da área de pouso. Alguns sectários
se aproximam, portando armas lasers em suas mãos. A porta se abre e Nathan
deixa o veículo, finalmente pisando em terra firme após a longa viagem.
Deparando-se com
a sede ateísta, o rapaz tem uma grande surpresa. À sua frente ele vê um prédio
rústico, construído debaixo dos viadutos ferroviários acima. Ao seu redor há
cercas de arame farpado e vários barris com fogueiras dentro, espalhados pela
área externa. Nathan se sente na vizinhança do Mystique, pois os sinais de
sujeira e improviso eram idênticos.
Os guardas da
sede se aproximam para escolta-lo. O rapaz nota que eles têm uma aparência
arruaceira, pois todos se assemelhavam àquele grupo que o encontrou na
superfície da Cúpula Corporativa. Os guardas vestem coturnos, roupas camufladas
e jaquetas de couro, e Nathan nota que os dois têm moicanos vermelhos em suas
cabeças. Eles então dizem:
- Siga-nos, por
favor.
Seguindo-os pelo
pátio, o rapaz nota que todos eles têm um símbolo “A” estampado em suas roupas.
Então o rapaz percebe. O símbolo não queria dizer Anarquia e sim “Ateísmo”,
alterando levemente o “A” original.
Entrando no
prédio, os homens de cabelo moicano o guiam pelas escadas. Pelos corredores e
salas, Nathan vê algumas paredes pichadas e vários cartazes políticos. Passando
pelo refeitório, ele nota que o vasto ambiente demonstra sujeira, como se
aquelas pessoas não se importassem com a higiene. Os dormitórios são mal
organizados e as salas de servidores tem seus fios espalhados pelo chão. Mas,
apesar da desorganização, todos ali estavam fortemente armados.
Chegando ao
último andar, os guardas lhe indicam a sala do líder. Ao entrar, o rapaz se
surpreende. Diferente do resto do prédio, a sala era limpa e bem organizada.
Nathan vê vários diplomas na parede, assim como vários retratos do líder com pessoas
influentes. O líder, porém, estava ausente.
- Sente-se, por
favor. Nosso chefe já está a caminho. – diz um dos guardas.
Nathan se senta
em uma confortável poltrona. Enquanto espera, ele nota que aquela sala tinha muitos
luxos. Uísques, charutos, vinhos, e na parede à frente, um grande quadro com o
“A” de ateísmo.
Alguns minutos
depois o líder entra. Nathan vê um homem velho, de aparentemente cinquenta
anos, vestindo elegantes roupas sociais. Era como se o líder fosse outro
visitante, um intelectual no meio dos sectários arruaceiros. Ao vê-lo, o rapaz
se levanta e o líder respeitosamente o cumprimenta.
- Boa tarde,
senhor Nathan. Como vai?
Lembrando-se de
seu terrível dia horas atrás, Nathan responde em tom de alívio:
- Bem, graças a
Deus.
Então os homens se
irritam. Com o pesado silêncio dominando o ambiente, o rapaz pode ver o ódio
crescente em seus olhos, mas bravamente disfarçados atrás de suas faces.
- Perdoe-me. Eu não
quis dizer isso.
Ignorando-o, o
líder se apresenta.
- Meu nome é
Bertrand Dawkins. Sou o líder da Frente Ateísta.
Apertando-lhe a mão,
o rapaz responde:
- Nathan Hill.
Prazer em conhece-lo.
O líder se senta
e enche dois copos de uísque. Jogando algumas pedras de gelo, Dawkins o serve
ao rapaz.
- E então? –
pergunta ele – Ouvi dizer que você gostaria de falar comigo?
- Sim. Em nome do
Submundo, eu venho propor uma aliança com a Frente Ateísta.
Dawkins não responde,
ao invés disso ele fita Nathan nos olhos e bebe um gole de seu uísque. Então o
rapaz bebe também, acompanhando-o. Para a surpresa do líder, o rapaz não se
incomoda com a ardência do líquido, pois após um ano vivendo na superfície,
Nathan já havia se acostumado à bebida forte.
- Antes de
falarmos disso, devo dizer que é uma tremenda honra recebe-lo aqui. Eu jamais
imaginei que receberia o Inimigo de Estado em minha sede.
Nathan se sente
lisonjeado. Não é frequente que ele é elogiado por um homem tão mais velho.
- Obrigado.
- Porém –
continua ele – eu preciso te perguntar uma coisa. Você é um agitador ou um
militante?
O rapaz não
compreende.
- O que quer dizer?
- Na
manifestação, meus soldados me disseram que você provocou um violento confronto,
causando um verdadeiro massacre por parte da polícia. Também me disseram que
você estava praticamente sozinho, protegido por apenas um amigo, um mercenário,
talvez? – o líder respira fundo e conclui – Depois de tudo o que aconteceu, eu
sinceramente não sei dizer se seu ato foi deliberado ou apenas irresponsável
mesmo.
Nathan se irrita.
As facções se aproveitam de sua posição vulnerável para o insultar. Cansado
dessa esparrela, ele olha para Dawkins e responde:
- Não foi
deliberado e muito menos irresponsável. Eu já disse, foi um acidente.
O líder pondera.
- Eu concordo que
foi um acidente, um acidente você se tornar o Inimigo de Estado, mas o massacre
na manifestação? Não, isso não foi um acidente, isso foi irresponsável mesmo. –
reitera ele, provocando-o – Você é idolatrado lá em cima, as pessoas te veem
como um herói, um libertador. Talvez você ache justo usar a vida de inocentes
para combater em sua rebelião, mas preciso saber se você fará o mesmo conosco, os
soldados da Frente Ateísta.
- O quê?! Eu não
estou usando a vida de ninguém. Meus objetivos são claros e nunca os escondi
das pessoas. Eu combato a ameaça do Protótipo #8 e do Projeto Gemini.
- Mas, discursando
isso sobre uma pilha de cadáveres, não me parece muito convincente. Portanto eu
refaço a pergunta: você é um agitador ou um militante?
O rapaz não sabe
o que responder. Ele arrisca.
- Sou um
militante.
Apoiando-se na
mesa, o líder sorri.
- Então temos algo
em comum. Os seus companheiros runners também estão dispostos a morrer em sua
rebelião?
- Nossa luta não
é pela morte e sim pela vida.
- Nunca subestime
o poder dos mártires, senhor Nathan. Se quiser vencer, você precisará deles. –
ele continua – Por acaso você conhece a nossa facção?
O rapaz estudou
alguns pontos importantes sobre os ateístas, mas com a constante luta nos
níveis superiores, ele não teve tempo para se aprofundar no assunto.
- Eu ouvi dizer
que vocês lutam por um Estado antirreligioso.
Dawkins concorda.
- Precisamente.
Antes da Catástrofe de 2057 nós lutávamos contra o preconceito e a
discriminação que os ateus sofriam. Em um mundo moderno, passivo de profundas
mudanças sociais impulsionadas pelo avanço científico, a mera possibilidade da
inexistência de um deus apavorava os fundamentalistas. Mas eles não permitiriam
que esse formidável progressismo se instaurasse tão facilmente. Campanhas de
ódio e difamação foram feitas, mas nós diligentemente as combatemos, usando suas
próprias leis contra eles mesmos.
- Quais leis? –
pergunta Nathan.
- A garantia da
liberdade religiosa, incondicional e irrestrita, e a manutenção do Estado
Laico.
Com a mão no queixo, o rapaz balança positivamente a cabeça. Dawkins então continua.
Com a mão no queixo, o rapaz balança positivamente a cabeça. Dawkins então continua.
- Através de
nossa militância, nós retiramos todas as representações religiosas dos espaços
públicos. Imagens, santos, símbolos, livros sagrados, tudo foi tirado. Com a
lei ao nosso lado, perseguimos nossos perseguidores, abolindo sua influência da
sociedade e com ela sua arcaica noção ética e moral. Pouco a pouco implantamos
o secularismo, finalmente nos aproximando do pleno Estado antirreligioso. Em
outras palavras, nossa militância representava o novo Renascentismo!
O líder se
empolga ao falar de suas convicções. Nathan não pode fazer nada a não ser
ouvir.
- Mas... – continua
ele – Veio a Catástrofe de 2057 e todo o nosso empenho se perdeu.
O rapaz pergunta:
- O que
aconteceu?
- Em 2057 nossa inevitável
vitória foi interrompida. Com a devastação do mundo, nossa militância se perdeu.
Mas felizmente, com a construção da metrópole, eu, Bertrand Dawkins, a retomei
e sozinho a reconstruí, fundando e gerindo toda essa organização que você está
vendo hoje.
Nathan se
confunde.
- Está dizendo
que você sozinho reconstruiu uma organização ateísta inteira, pré-2057?
Convictamente, o
líder responde:
- Sim.
Impressionado, o rapaz comenta:
Impressionado, o rapaz comenta:
- Mas do jeito
que você fala, me parece que o ateísmo militante da época era composto de
cientistas sociais, intelectuais, professores e filósofos, e não desses arruaceiros aí fora.
Os guardas se
ofendem, mas Dawkins acena com a mão, contendo-os. Pedindo-os para sair, o
líder explica:
- Concordo que a
aparência de meus soldados não correspondem com o brilhantismo de nossa
ideologia, mas não se engane, senhor Nathan. O que lhes falta em intelecto lhes
sobra em vontade. A juventude é abundante em algo que nos carece com o passar
dos anos: força de vontade. Confesso que tive dificuldades em convencer esses
jovens a se juntar à minha causa, mas ainda assim pude lhes mostrar os
malefícios do teísmo e do efeito nocivo da fé. E esses, como você disse,
arruaceiros e vagabundos de hoje, serão os ideólogos da militância ateísta
amanhã.
Nathan pergunta:
- Você tem
certeza que será prudente substituir a moralidade objetiva pela subjetiva?
Surpreendendo-se
com seu conhecimento, Dawkins responde:
- Que
objetividade? O conceito de uma divindade plenipotente e universal lhe parece
lógico? Quantas religiões haviam no mundo até 2057? Umas cinco mil. E quantos
deuses haviam? Multiplique esse número por três. Vai me dizer que cada um deles
tem uma objetividade diferente, estando todos acima de nosso próprio senso
moral? – ele pausa para o rapaz ponderar um pouco – Não, senhor Nathan. Deuses
podem ser inventados. De fato, eles foram criados na mente de profetas, sacerdotes,
mártires e outros fundamentalistas. Eis aí sua existência, na mente de quem os
cria e de quem os acredita.
O rapaz aprecia a
resposta, mas em seguida ele faz outra pergunta:
- Mas o senhor considera
o fato de que eles podem ser úteis em uma sociedade doente?
- Não, eles que
são a doença. Deuses foram criados para a alienação intelectual e controle
social, nada mais. A fé é um artifício irracional e ilógico que amortece as
massas quanto ao verdadeiro problema, o teísmo. Por esta maneira, combato
inclusive o agnosticismo, pois apesar de não poderem comprovar a existência de um
deus, eles admitem a possibilidade deles existirem. E não existem.
- Então os deuses
foram criados unicamente para controlar as massas?
- Sim, e foram
muito eficientes em seus efeitos. É como disse o filósofo iluminista Voltaire:
“se deus não existisse, seria necessário inventa-lo”.
- Interessante. –
diz Nathan.
- Implantar o
Estado Laico é a libertação de qualquer sociedade. Religião não é a solução e
sim o problema. A fé não dá respostas, só impede perguntas. No Laicismo pleno,
não haverá deuses ou reis, apenas o Homem.
Novamente Nathan
acha muito atraente a convicção ateísta.
- Mas estará o
Homem preparado para viver sem a noção protetora de um deus?
Sorrindo, Dawkins
responde:
- É claro que
sim. Como disse Nietzsche em sua teoria do Übermensch, “Deus está morto!”.
Quando a humanidade finalmente perceber isso, tirará do fundo de sua própria
essência a capacidade para criar seus próprios valores niilistas, livre das
crenças compassivas e póstumas promovidas pelo fundamentalismo.
- Uma sociedade
baseada em fortes e fracos, onde os mais fracos serão esmagados pelos mais
fortes? – provoca Nathan.
- Não, uma
humanidade livre do medo para buscar um real significado na vida.
O rapaz não
concorda com tudo o que Dawkins disse, mas confessa achar tudo aquilo muito
interessante. O líder da Frente Ateísta é um homem muito inteligente e com
muita cultura, os diplomas nas paredes comprovam isso. “Porém” pensa ele, “pode
a inteligência justificar a violência e o fanatismo?”.
- Admiro sua
inteligência, senhor Dawkins, mas gostaria que ela não fosse usada para o
terrorismo.
Ao ouvi-lo, o líder
relativiza.
- O que é a
violência para um soldado niilista? Na implantação do Estado secular laico,
valores compassivos não devem existir. É como disse Maquiavel: “os fins
justificam os meios”. Se quisermos suplantar a noção de deuses, devemos ter
valores diferentes deles. Nossa facção é pequena, meus soldados são arruaceiros
violentos, mas nossa causa é nobre. Queremos a libertação do Homem. Se não
combatermos fogo com fogo, como poderemos prevalecer?
Para Nathan,
todas as facções são maquiavélicas, pois todas defendem o extremismo. Não importa
a ideologia ou doutrina, em sua luta pela revolução, “os fins justificam os
meios”.
- Entendo o seu
ponto de vista. Não estou aqui para criticar, na verdade. – responde ele,
tentando parecer diplomático.
Acendendo um
charuto, o líder expele a fumaça e então diz:
- Fico feliz que
tenha entendido. As facções de Sonata, a Frente Ateísta incluída, têm causas e objetivos
bem definidos. Mas não posso dizer o mesmo do Submundo.
- O que quer dizer?
Dawkins pega
outro charuto e o oferece ao rapaz. Ele logo o aceita, pois nunca havia fumado
um antes. Em silêncio, o líder apenas o observa enquanto ele tenta – sem a
menor experiência – acender o charuto com o isqueiro. Quando finalmente
consegue, Nathan traga a fumaça para dentro dos seus pulmões. A reação a seguir
é hilariante, pois o rapaz tosse inúmeras vezes, envolvendo-se na mesma fumaça
que ele acabara de tragar. Dawkins, porém, se mantém sério.
- Eu quero dizer –
responde ele, ignorando a vergonhosa reação dele – que eu conheço a causa
do Submundo, toda a Sonata conhece. Mas eu não conheço seu objetivo.
- Objetivo...? –
pergunta ele, enquanto tosse.
- O que pretendem
fazer, Nathan? O que pretendem se, hipoteticamente, o Submundo e as facções vencerem
a rebelião?
Nathan não sabe o
que responder. Essa etapa era tão improvável que ele havia focado apenas na coalisão,
que era tão improvável quanto.
- Eu não sei.
- Não sabe? –
insiste ele.
- Não. – ele tem
uma ideia – Talvez fomentar a partilha de Sonata.
Dawkins deixar
escapar um sorriso.
- De fato, é uma
ideia interessante, mas impraticável. As facções são organizações antagônicas, heterogêneas
entre si. Se as corporações caírem, Sonata será pequena demais para todas. Quer
saber o que eu penso, senhor Nathan? A violência não cessará com o fim da rebelião,
muito pelo contrário, continuará pior do que nunca, afundando a metrópole em
uma extensa e sangrenta guerra civil.
Essa mera ideia
assombra o rapaz.
- Tenho esperança
que após o fim das corporações, as facções poderão conviver em paz.
Meneando negativamente
a cabeça, Dawkins responde:
- Paz? Deixe-me
dizer o que a Frente Ateísta fará após a rebelião: vingança! Nos vingaremos dos
nossos arqui-inimigos, os Clérigos do Recomeço. As forças de segurança não irão
mais nos atrapalhar, partiremos para uma guerra aberta, feroz, implacável em
nosso intento. Vamos destruir sua pífia crença medieval, queimaremos sua sede e
exterminaremos seus membros. A razão vencerá a fé, ninguém mais será enganado
pela ilógica crença fideísta. A Frente Ateísta vencerá!
Dawkins vocifera,
havendo ódio em sua voz. Pela primeira vez, Nathan vê o fanatismo em seu olhar,
oculto por trás de sua elegância.
- Apesar de
lutarmos pela paz, vocês ainda pretendem se vingar?
-
Definitivamente. E não esperaremos a rebelião acabar para isso. - diz ele, referindo-se a algo mais recente - Nós encontraremos
o responsável pela explosão do hospital em nosso território, destruído dias atrás.
E quando o pegarmos, a “salvação” será a única coisa que ele desejará receber.
Apavorado, Nathan
se empalidece.
Levantando-se, o líder
gentilmente diz:
- Vamos, Nathan. Vamos
andar um pouco.
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