quarta-feira, 10 de abril de 2019

Sonata - Parte 38 - Frente Ateísta



Distinguindo-se na metrópole, o distrito de Aquarius – Setor F tem poucas megatorres. Ali a superfície é visível, não tendo a luz solar obstruída pelos enormes monólitos de concreto e aço. Entretanto, inúmeros viadutos ferroviários cruzam o céu, sustentados por seus robustos pilares. As longas pontes se estendem por quilômetros, encobrindo largas porções da superfície e ironicamente obstruindo a luz solar, assim confinando os níveis inferiores à escuridão.
Debaixo dessas largas pontes e protegidos pela vigilância inimiga, encontra-se a sede da Frente Ateísta. Aproveitando as estruturas remanescentes, os ateístas construíram sua fortaleza escondida, o quartel-general de onde eles promovem sua militância.
Nathan é trazido ao local. Descendo pelas profundezas do distrito, os propulsores do aerocarro levantam poeira enquanto se aproximam da área de pouso. Alguns sectários se aproximam, portando armas lasers em suas mãos. A porta se abre e Nathan deixa o veículo, finalmente pisando em terra firme após a longa viagem.
Deparando-se com a sede ateísta, o rapaz tem uma grande surpresa. À sua frente ele vê um prédio rústico, construído debaixo dos viadutos ferroviários acima. Ao seu redor há cercas de arame farpado e vários barris com fogueiras dentro, espalhados pela área externa. Nathan se sente na vizinhança do Mystique, pois os sinais de sujeira e improviso eram idênticos.      
Os guardas da sede se aproximam para escolta-lo. O rapaz nota que eles têm uma aparência arruaceira, pois todos se assemelhavam àquele grupo que o encontrou na superfície da Cúpula Corporativa. Os guardas vestem coturnos, roupas camufladas e jaquetas de couro, e Nathan nota que os dois têm moicanos vermelhos em suas cabeças. Eles então dizem:
- Siga-nos, por favor.
Seguindo-os pelo pátio, o rapaz nota que todos eles têm um símbolo “A” estampado em suas roupas. Então o rapaz percebe. O símbolo não queria dizer Anarquia e sim “Ateísmo”, alterando levemente o “A” original.
Entrando no prédio, os homens de cabelo moicano o guiam pelas escadas. Pelos corredores e salas, Nathan vê algumas paredes pichadas e vários cartazes políticos. Passando pelo refeitório, ele nota que o vasto ambiente demonstra sujeira, como se aquelas pessoas não se importassem com a higiene. Os dormitórios são mal organizados e as salas de servidores tem seus fios espalhados pelo chão. Mas, apesar da desorganização, todos ali estavam fortemente armados.
Chegando ao último andar, os guardas lhe indicam a sala do líder. Ao entrar, o rapaz se surpreende. Diferente do resto do prédio, a sala era limpa e bem organizada. Nathan vê vários diplomas na parede, assim como vários retratos do líder com pessoas influentes. O líder, porém, estava ausente.
- Sente-se, por favor. Nosso chefe já está a caminho. – diz um dos guardas.
Nathan se senta em uma confortável poltrona. Enquanto espera, ele nota que aquela sala tinha muitos luxos. Uísques, charutos, vinhos, e na parede à frente, um grande quadro com o “A” de ateísmo.
Alguns minutos depois o líder entra. Nathan vê um homem velho, de aparentemente cinquenta anos, vestindo elegantes roupas sociais. Era como se o líder fosse outro visitante, um intelectual no meio dos sectários arruaceiros. Ao vê-lo, o rapaz se levanta e o líder respeitosamente o cumprimenta.
- Boa tarde, senhor Nathan. Como vai?
Lembrando-se de seu terrível dia horas atrás, Nathan responde em tom de alívio:
- Bem, graças a Deus.
Então os homens se irritam. Com o pesado silêncio dominando o ambiente, o rapaz pode ver o ódio crescente em seus olhos, mas bravamente disfarçados atrás de suas faces.
- Perdoe-me. Eu não quis dizer isso.
Ignorando-o, o líder se apresenta.
- Meu nome é Bertrand Dawkins. Sou o líder da Frente Ateísta.
Apertando-lhe a mão, o rapaz responde:
- Nathan Hill. Prazer em conhece-lo.
O líder se senta e enche dois copos de uísque. Jogando algumas pedras de gelo, Dawkins o serve ao rapaz.
- E então? – pergunta ele – Ouvi dizer que você gostaria de falar comigo?
- Sim. Em nome do Submundo, eu venho propor uma aliança com a Frente Ateísta.  
Dawkins não responde, ao invés disso ele fita Nathan nos olhos e bebe um gole de seu uísque. Então o rapaz bebe também, acompanhando-o. Para a surpresa do líder, o rapaz não se incomoda com a ardência do líquido, pois após um ano vivendo na superfície, Nathan já havia se acostumado à bebida forte.
- Antes de falarmos disso, devo dizer que é uma tremenda honra recebe-lo aqui. Eu jamais imaginei que receberia o Inimigo de Estado em minha sede.
Nathan se sente lisonjeado. Não é frequente que ele é elogiado por um homem tão mais velho.
- Obrigado.
- Porém – continua ele – eu preciso te perguntar uma coisa. Você é um agitador ou um militante?
O rapaz não compreende.
- O que quer dizer?
- Na manifestação, meus soldados me disseram que você provocou um violento confronto, causando um verdadeiro massacre por parte da polícia. Também me disseram que você estava praticamente sozinho, protegido por apenas um amigo, um mercenário, talvez? – o líder respira fundo e conclui – Depois de tudo o que aconteceu, eu sinceramente não sei dizer se seu ato foi deliberado ou apenas irresponsável mesmo.
Nathan se irrita. As facções se aproveitam de sua posição vulnerável para o insultar. Cansado dessa esparrela, ele olha para Dawkins e responde:
- Não foi deliberado e muito menos irresponsável. Eu já disse, foi um acidente.
O líder pondera.
- Eu concordo que foi um acidente, um acidente você se tornar o Inimigo de Estado, mas o massacre na manifestação? Não, isso não foi um acidente, isso foi irresponsável mesmo. – reitera ele, provocando-o – Você é idolatrado lá em cima, as pessoas te veem como um herói, um libertador. Talvez você ache justo usar a vida de inocentes para combater em sua rebelião, mas preciso saber se você fará o mesmo conosco, os soldados da Frente Ateísta.
- O quê?! Eu não estou usando a vida de ninguém. Meus objetivos são claros e nunca os escondi das pessoas. Eu combato a ameaça do Protótipo #8 e do Projeto Gemini.
- Mas, discursando isso sobre uma pilha de cadáveres, não me parece muito convincente. Portanto eu refaço a pergunta: você é um agitador ou um militante?
O rapaz não sabe o que responder. Ele arrisca.
- Sou um militante.
Apoiando-se na mesa, o líder sorri.
- Então temos algo em comum. Os seus companheiros runners também estão dispostos a morrer em sua rebelião?
- Nossa luta não é pela morte e sim pela vida.
- Nunca subestime o poder dos mártires, senhor Nathan. Se quiser vencer, você precisará deles. – ele continua – Por acaso você conhece a nossa facção?
O rapaz estudou alguns pontos importantes sobre os ateístas, mas com a constante luta nos níveis superiores, ele não teve tempo para se aprofundar no assunto.
- Eu ouvi dizer que vocês lutam por um Estado antirreligioso.
Dawkins concorda.
- Precisamente. Antes da Catástrofe de 2057 nós lutávamos contra o preconceito e a discriminação que os ateus sofriam. Em um mundo moderno, passivo de profundas mudanças sociais impulsionadas pelo avanço científico, a mera possibilidade da inexistência de um deus apavorava os fundamentalistas. Mas eles não permitiriam que esse formidável progressismo se instaurasse tão facilmente. Campanhas de ódio e difamação foram feitas, mas nós diligentemente as combatemos, usando suas próprias leis contra eles mesmos.
- Quais leis? – pergunta Nathan.
- A garantia da liberdade religiosa, incondicional e irrestrita, e a manutenção do Estado Laico.
Com a mão no queixo, o rapaz balança positivamente a cabeça. Dawkins então continua.
- Através de nossa militância, nós retiramos todas as representações religiosas dos espaços públicos. Imagens, santos, símbolos, livros sagrados, tudo foi tirado. Com a lei ao nosso lado, perseguimos nossos perseguidores, abolindo sua influência da sociedade e com ela sua arcaica noção ética e moral. Pouco a pouco implantamos o secularismo, finalmente nos aproximando do pleno Estado antirreligioso. Em outras palavras, nossa militância representava o novo Renascentismo!
O líder se empolga ao falar de suas convicções. Nathan não pode fazer nada a não ser ouvir.
- Mas... – continua ele – Veio a Catástrofe de 2057 e todo o nosso empenho se perdeu.  
O rapaz pergunta:
- O que aconteceu?
- Em 2057 nossa inevitável vitória foi interrompida. Com a devastação do mundo, nossa militância se perdeu. Mas felizmente, com a construção da metrópole, eu, Bertrand Dawkins, a retomei e sozinho a reconstruí, fundando e gerindo toda essa organização que você está vendo hoje.
Nathan se confunde.
- Está dizendo que você sozinho reconstruiu uma organização ateísta inteira, pré-2057?
Convictamente, o líder responde:
- Sim.
Impressionado, o rapaz comenta:
- Mas do jeito que você fala, me parece que o ateísmo militante da época era composto de cientistas sociais, intelectuais, professores e filósofos, e não desses arruaceiros aí fora.
Os guardas se ofendem, mas Dawkins acena com a mão, contendo-os. Pedindo-os para sair, o líder explica:
- Concordo que a aparência de meus soldados não correspondem com o brilhantismo de nossa ideologia, mas não se engane, senhor Nathan. O que lhes falta em intelecto lhes sobra em vontade. A juventude é abundante em algo que nos carece com o passar dos anos: força de vontade. Confesso que tive dificuldades em convencer esses jovens a se juntar à minha causa, mas ainda assim pude lhes mostrar os malefícios do teísmo e do efeito nocivo da fé. E esses, como você disse, arruaceiros e vagabundos de hoje, serão os ideólogos da militância ateísta amanhã.
Nathan pergunta:
- Você tem certeza que será prudente substituir a moralidade objetiva pela subjetiva?    
Surpreendendo-se com seu conhecimento, Dawkins responde:
- Que objetividade? O conceito de uma divindade plenipotente e universal lhe parece lógico? Quantas religiões haviam no mundo até 2057? Umas cinco mil. E quantos deuses haviam? Multiplique esse número por três. Vai me dizer que cada um deles tem uma objetividade diferente, estando todos acima de nosso próprio senso moral? – ele pausa para o rapaz ponderar um pouco – Não, senhor Nathan. Deuses podem ser inventados. De fato, eles foram criados na mente de profetas, sacerdotes, mártires e outros fundamentalistas. Eis aí sua existência, na mente de quem os cria e de quem os acredita.
O rapaz aprecia a resposta, mas em seguida ele faz outra pergunta:
- Mas o senhor considera o fato de que eles podem ser úteis em uma sociedade doente?
- Não, eles que são a doença. Deuses foram criados para a alienação intelectual e controle social, nada mais. A fé é um artifício irracional e ilógico que amortece as massas quanto ao verdadeiro problema, o teísmo. Por esta maneira, combato inclusive o agnosticismo, pois apesar de não poderem comprovar a existência de um deus, eles admitem a possibilidade deles existirem. E não existem.
- Então os deuses foram criados unicamente para controlar as massas?
- Sim, e foram muito eficientes em seus efeitos. É como disse o filósofo iluminista Voltaire: “se deus não existisse, seria necessário inventa-lo”.     
- Interessante. – diz Nathan.  
- Implantar o Estado Laico é a libertação de qualquer sociedade. Religião não é a solução e sim o problema. A fé não dá respostas, só impede perguntas. No Laicismo pleno, não haverá deuses ou reis, apenas o Homem.
Novamente Nathan acha muito atraente a convicção ateísta.
- Mas estará o Homem preparado para viver sem a noção protetora de um deus?
Sorrindo, Dawkins responde:
- É claro que sim. Como disse Nietzsche em sua teoria do Übermensch, “Deus está morto!”. Quando a humanidade finalmente perceber isso, tirará do fundo de sua própria essência a capacidade para criar seus próprios valores niilistas, livre das crenças compassivas e póstumas promovidas pelo fundamentalismo.
- Uma sociedade baseada em fortes e fracos, onde os mais fracos serão esmagados pelos mais fortes? – provoca Nathan.
- Não, uma humanidade livre do medo para buscar um real significado na vida.
O rapaz não concorda com tudo o que Dawkins disse, mas confessa achar tudo aquilo muito interessante. O líder da Frente Ateísta é um homem muito inteligente e com muita cultura, os diplomas nas paredes comprovam isso. “Porém” pensa ele, “pode a inteligência justificar a violência e o fanatismo?”.
- Admiro sua inteligência, senhor Dawkins, mas gostaria que ela não fosse usada para o terrorismo.
Ao ouvi-lo, o líder relativiza.
- O que é a violência para um soldado niilista? Na implantação do Estado secular laico, valores compassivos não devem existir. É como disse Maquiavel: “os fins justificam os meios”. Se quisermos suplantar a noção de deuses, devemos ter valores diferentes deles. Nossa facção é pequena, meus soldados são arruaceiros violentos, mas nossa causa é nobre. Queremos a libertação do Homem. Se não combatermos fogo com fogo, como poderemos prevalecer?
Para Nathan, todas as facções são maquiavélicas, pois todas defendem o extremismo. Não importa a ideologia ou doutrina, em sua luta pela revolução, “os fins justificam os meios”.
- Entendo o seu ponto de vista. Não estou aqui para criticar, na verdade. – responde ele, tentando parecer diplomático.
Acendendo um charuto, o líder expele a fumaça e então diz:
- Fico feliz que tenha entendido. As facções de Sonata, a Frente Ateísta incluída, têm causas e objetivos bem definidos. Mas não posso dizer o mesmo do Submundo.
- O que quer dizer?
Dawkins pega outro charuto e o oferece ao rapaz. Ele logo o aceita, pois nunca havia fumado um antes. Em silêncio, o líder apenas o observa enquanto ele tenta – sem a menor experiência – acender o charuto com o isqueiro. Quando finalmente consegue, Nathan traga a fumaça para dentro dos seus pulmões. A reação a seguir é hilariante, pois o rapaz tosse inúmeras vezes, envolvendo-se na mesma fumaça que ele acabara de tragar. Dawkins, porém, se mantém sério.
- Eu quero dizer – responde ele, ignorando a vergonhosa reação dele – que eu conheço a causa do Submundo, toda a Sonata conhece. Mas eu não conheço seu objetivo.
- Objetivo...? – pergunta ele, enquanto tosse.
- O que pretendem fazer, Nathan? O que pretendem se, hipoteticamente, o Submundo e as facções vencerem a rebelião?
Nathan não sabe o que responder. Essa etapa era tão improvável que ele havia focado apenas na coalisão, que era tão improvável quanto.
- Eu não sei.
- Não sabe? – insiste ele.
- Não. – ele tem uma ideia – Talvez fomentar a partilha de Sonata.
Dawkins deixar escapar um sorriso.
- De fato, é uma ideia interessante, mas impraticável. As facções são organizações antagônicas, heterogêneas entre si. Se as corporações caírem, Sonata será pequena demais para todas. Quer saber o que eu penso, senhor Nathan? A violência não cessará com o fim da rebelião, muito pelo contrário, continuará pior do que nunca, afundando a metrópole em uma extensa e sangrenta guerra civil.
Essa mera ideia assombra o rapaz.
- Tenho esperança que após o fim das corporações, as facções poderão conviver em paz.
Meneando negativamente a cabeça, Dawkins responde:
- Paz? Deixe-me dizer o que a Frente Ateísta fará após a rebelião: vingança! Nos vingaremos dos nossos arqui-inimigos, os Clérigos do Recomeço. As forças de segurança não irão mais nos atrapalhar, partiremos para uma guerra aberta, feroz, implacável em nosso intento. Vamos destruir sua pífia crença medieval, queimaremos sua sede e exterminaremos seus membros. A razão vencerá a fé, ninguém mais será enganado pela ilógica crença fideísta. A Frente Ateísta vencerá!
Dawkins vocifera, havendo ódio em sua voz. Pela primeira vez, Nathan vê o fanatismo em seu olhar, oculto por trás de sua elegância.
- Apesar de lutarmos pela paz, vocês ainda pretendem se vingar?
- Definitivamente. E não esperaremos a rebelião acabar para isso. - diz ele, referindo-se a algo mais recente - Nós encontraremos o responsável pela explosão do hospital em nosso território, destruído dias atrás. E quando o pegarmos, a “salvação” será a única coisa que ele desejará receber.
Apavorado, Nathan se empalidece.
Levantando-se, o líder gentilmente diz:
- Vamos, Nathan. Vamos andar um pouco.


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