domingo, 21 de abril de 2019

Sonata - Parte 39 - A Verdade Sobre as Facções



Laura e Vertigo voltam para a superfície. Levando o hacker na garupa, a garota sobrevoa as movimentadas ruas com sua aeromoto. Vertigo conversou pouco durante a viagem e manteve-se a maior parte do tempo em silêncio. Laura se intriga mas, tendo sua privacidade sempre respeitada por seu amigo, prefere não pressiona-lo tanto. Todavia, ela não esconde sua preocupação com o hacker. 
Chegando ao Submundo, ela estaciona a aeromoto na rua e prossegue pelo sinuoso beco. Vertigo a acompanha em seu incomum silêncio, ecoando seus passos pela escuridão. Entrando no bunker, muitos veem o hacker e calorosamente o cumprimentam, felizes em ter seu companheiro de volta. Laura é cumprimentada também, sendo gratificada pelo bem-sucedido serviço.   
Database aparece em seguida e, olhando para o hacker, ele pergunta:
- Você está bem?
Um pouco sério, Vertigo responde:
- Sim, chefe. Obrigado.
Database se intriga. Geralmente o hacker seria mais eloquente, mais falante, mas naquele momento ele demonstra uma frieza incomum. Após tudo o que aconteceu, Vertigo jamais responderia de maneira sucinta.
- O que aconteceu na sede dos Trans-humanistas? Eles machucaram você?
Mantendo-se calmo, ele responde:
- Não.
- Você tem certeza?
- Sim. Eles não me fizeram mal algum.
Olhando para Laura, o chefe se intriga.
- Onde esteve todo esse tempo?
- Estive no Setor T, na sede dos Trans-humanistas. Eles me mantiveram preso, mas decidiram me soltar.
- Por quê?
- Porque para eles eu não tinha valor algum.
- Está dizendo que após todo esse tempo eles simplesmente te deixaram ir?
- Sim. Não havia razão para me manterem preso. Era Nathan quem eles queriam.
Database se confunde e não sabe o que dizer. Por fim ele diz:
- Fico feliz que você esteja bem, mas vou ter que fazer exames em você. Preciso averiguar sua saúde e garantir que você realmente esteja bem.
Vertigo se opõe.
- Não há necessidade. Eu não estou ferido.
- É um procedimento padrão, você já deve saber.
- Mas eu estou bem.
- Então me deixe examina-lo. Por segurança.
Então, pela primeira vez, o hacker sorri.
- É por isso que quer me examinar, não é? Não por minha saúde, mas por segurança?
Database o provoca.
- Alguma objeção?
- Não, mas eu posso me recusar, se eu preferir.
Desta vez é Database quem sorri.
- Sim, pode. Recuse-se, saia pela porta, se quiser. Mas cedo ou tarde você acabará aqui, acordando em minha sala de exame, por bem ou por mal.
Ao demonstrar autoridade, os runners se intimidam. Raramente eles viam seu chefe irritado, e era melhor mantê-lo assim.
- Se você insiste. – responde ele, fingindo consentir.
Deitado na mesa cirúrgica, o hacker é envolvido pela sonda eletromagnética. Luzes brilhantes percorrem seu corpo, procurando por sinais externos ou internos de agressão.
Olhando pela janela do lado de fora, Laura e Database o observam. O chefe pergunta:
- Os mecanicistas te deram problemas?
Sem desviar o olhar de seu amigo, ela responde:
- Não. Na verdade, não encontrei nenhum.
Assentindo, ele olha para Vertigo e pergunta:
- O que aconteceu com ele? Ele disse algo a você?
- Não, nada. Ele está estranho desde quando o encontrei.
Ponderando, Database diz:
- Se houver algum implante de controle mental nele, os exames acusarão.
- Você acredita que ele pode estar sendo controlado?
- É provável. Devemos nos lembrar que Nathan quase foi implantado à força cirurgicamente. Se você não o salvasse, nós o teríamos perdido.
Laura concorda.
- Se os mecanicistas fizeram algo com Vertigo, eu vou matar cada um deles.
O chefe sorri.
- Então você vai precisar de armas bem grandes.
O exame termina. Entrando apressadamente na sala, Database averigua o relatório no computador. Sua expressão é de desânimo. Aproximando-se, a garota pergunta:
- E então? Foi encontrado algo?
Respirando fundo, o chefe responde:
- Não. Os exames não encontraram nada.
Então Laura se confunde também. Apesar da forte desconfiança, ambos não podiam provar.
Levantando-se, Vertigo veste seus calçados e diz:
- Acreditam em mim agora?
Irritado, Database o encara, mas não diz nada.

§

Em um aerocarro dirigido por ateístas, Nathan é levado de volta à superfície. Pensativo, ele segue a viagem em silêncio, lembrando-se dos momentos antes de deixar a sede da Frente Ateísta.
Levando-o a um galpão, Dawkins lhe disse:
- Aqui é onde armazenamos nosso arsenal. Este é o poderio militar de nossa facção.
Então o rapaz vê as milhares de armas enfileiradas e as munições empilhadas junto às paredes. Semelhantes aos Trans-humanistas, os ateístas também têm exoesqueletos e armaduras de combate à disposição. Caminhando pelos armamentos, Nathan vê um drone em uma mesa. Havia algo escrito na fuselagem. Aproximando-se, o rapaz lê a famosa frase de Iuri Gagarin, que diz: “Olhei para todos os lados, mas não vi Deus”.
Nathan fica boquiaberto. Ele pensa: “E tudo isso na mão desses arruaceiros?”.
Parando em uma plataforma elevada, eles sobreolham o galpão. Dawkins comenta:
- Sei no que está pensando. Você acha que eu estou dando armas para os macacos, não é mesmo? Não é nada disso, nossa facção é mais séria do que imagina e temos todos os meios para sermos ouvidos. – mudando de assunto, ele diz – Eu sei que você já selou uma aliança com os Clérigo do Recomeço. Me responda uma coisa, Nathan. O que você fez para convencer aqueles fundamentalistas a se aliarem a você?    
Lembrando-se do atentado, o rapaz novamente se empalidece.
- Eu... – gagueja ele – Apenas os convenci das vantagens de se trabalhar com o Submundo.
Encarando-o, o líder percebe o medo em seu olhar.
- Não precisa ter medo, Nathan. Apesar de nós e os clérigos sermos inimigos mortais, você é o determinado Inimigo de Estado, preocupado apenas em combater a sua rebelião.
Suando, o rapaz responde:
- Está bem.
- E então? – insiste o líder – O que você fez aos clérigos?
- Eu apenas os convenci. Talvez eles também tenham interesse, pois aceitaram facilmente assim como a Resistência Purista.
- Simples assim?
- Sim.
Dawkins assente.
- Nesse caso, deixe-me lhe falar algo sobre esses fundamentalistas. Os Clérigos do Recomeço vivem em um delírio religioso e espalham suas doutrinas nos territórios em que eles controlam. São contraditórios e violentos, pois pregam a paz e promovem a guerra. Eles dizem existir um deus benevolente e bondoso, mas na verdade adoram um deus inventado, de moralidade flexível, originado nas mentes dos cardeais e seu líder. Sua conduta é imoral e vitimista, pois forjam atentados terroristas para reforçarem sua narrativa de perseguição religiosa. Por acaso você ficou sabendo de uma explosão em uma escola?
O rapaz imediatamente se lembra. Os clérigos o mostraram aquele atentado covarde em que se feriram mulheres e crianças.
- Sim.
- Aquele foi um atentado falso, forjado para jogar a culpa em nós, a Frente Ateísta.
Nathan não acredita.
- Não pode ser. Eu vi o vídeo, as vítimas jaziam mortas no chão.
- Eram falsas. Os clérigos encenaram a explosão. Se tivéssemos cometido um atentado tão covarde, você não acha que a polícia não viria atrás de nós, com a fúria do povo e sedentos de sangue, para esmagar nossa organização?
O rapaz pondera. “Nada tão sanguinário sairia ileso assim” pensa ele.
- Como que crianças encenariam algo com tamanha perfeição? – pergunta ele.
- Talvez não seja totalmente uma encenação. Lembre-se que eles são radicais religiosos. Eu não duvido que eles tenham usado bombas não-letais para simular uma explosão. De qualquer forma haveriam feridos, mas não fatalmente.
Nathan se confunde. “Será que os clérigo me manipularam?” pensa ele.
- Eu não consigo acreditar.
- Acreditando ou não, os fundamentalistas explodiram um hospital em nosso território. E esse, Nathan, foi bem real.
O rapaz arrisca uma pergunta:
- Houveram vítimas?
Dawkins sorri.
- Dezenas. Vinte e sete mortos e quarenta e quatro feridos.
Nathan arregala os olhos. Pensativo, ele não consegue acreditar que foi enganado pelos clérigos. Por outro lado, os ateístas são radicais também, só que antirreligiosos. Nessa luta ideológica, ambas as partes forjariam provas para se justificar. “E se Dawkins estiver mentindo?” pensa ele. “E se o atentado realmente aconteceu e ele está escondendo-o?”. Nathan não sabe em quem acreditar.
- Droga... – sussurra ele. O mundo das facções é mais sujo do que ele pensa.
Um minuto se passa. Observando o arsenal lá embaixo, Dawkins diz algo sem olha-lo nos olhos. 
- Você tem sua aliança, Nathan. A Frente Ateísta aceita trabalhar com o Submundo.
Surpreendido, o rapaz não sabe o que dizer.
- Eu... – hesita ele – o agradeço, senhor Dawkins.
O rapaz se alegra, pois mais uma vez a rebelião se aproximava do fim.
- Mas eu devo te alertar uma coisa. – continua ele, preocupando-o – Entre as facções nunca haverá paz, não agora e nem depois da rebelião. A Frente Ateísta jurou vingança contra os Clérigos do Recomeço, as vítimas do hospital nos clamam isso. Nós já temos espiões trabalhando no caso. Quem quer que o tenha explodido, vai pagar caro pelo que fez.
Então Nathan se sente em perigo.
- Eu compreendo. – responde ele, arduamente.
- Considere minhas palavras, Inimigo de Estado. A paz que tanto almeja não passa de uma ilusão. Lembre-se disso quando vencermos, e se vencermos, a rebelião.
O rapaz assente, sentindo um gosto amargo em sua boca. Minutos depois eles se despedem e os ateístas o levam embora da sede da Frente Ateísta.     

§

Pousando próximo ao Mystique, Nathan deixa o veículo e se despede dos ateístas. Levantando voo, o aerocarro se eleva entre as plataformas e tubos, deixando a superfície.
Caminhando pelas ruas, o rapaz se alegra ao finalmente voltar para casa. Entretanto, algo o incomoda, ele se preocupa com Maynard. “O que será que te aconteceu, seu mercenário ardiloso?” pensa ele.
De volta ao Submundo, ele é recebido com surpresa e admiração. Os runners não esperavam reencontra-lo vivo novamente, não depois do massacre na manifestação. Uma runner se aproxima e diz:
- Nathan, você está horrível. – ela se refere às suas roupas sujas.
Outro runner lhe diz:
- No que estava pensando indo lá em cima sozinho? Virou um suicida?
Esboçando um sorriso, ele responde:
- Ainda não. O Database está aqui?
- Sim, está. – então o runner lhe informa – Nathan, temos boas notícias. O Vertigo voltou... E Laura também.
O rapaz se paralisa.
- Onde eles estão?
- Na sala médica.
Apressando-se, Nathan percorre os corredores, deixando-os para trás.
Parados em frente à sonda eletromagnética, o rapaz vê Database, Vertigo e Laura conversando. Abrindo a porta, os três olham para ele, mas Nathan só consegue ver uma pessoa à sua frente. Ele sussurra:
- Laura...
A garota faz um semblante irritado e cruza seus braços, em linguagem corporal rejeitando-o.
- Nathan, você está bem? – pergunta Database, preocupado.
- Sim, eu acho. – responde ele, olhando para suas roupas sujas de sangue.
- Nathan, você não tem sete vidas. Se continuar se arriscando assim, você morrerá.
- Eu sei, chefe. Na verdade, eu tenho muito a lhe dizer.
Vertigo então o interrompe.
- Eu também tenho algo a lhe dizer, Nathan. Os Trans-humanistas aceitaram a aliança e também trabalharão com o Submundo.
Então Database e Laura se entreolham.
- Vertigo, por que você não me disse isso antes?
- Porque esta era uma mensagem pessoal para o Inimigo de Estado.
Intrigado, ele pergunta:
- Pessoal? De quem?
- De Huxley, o líder dos Trans-humanistas.
Ainda intrigado, o chefe diz:
- Nathan e Vertigo, vamos para a minha sala, vocês têm muito a me dizer. E Nathan – chama ele, olhando para o rapaz e para Laura –, você poderá cuidar de seus assuntos depois.

   

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