Laura e Vertigo
voltam para a superfície. Levando o hacker na garupa, a garota sobrevoa as
movimentadas ruas com sua aeromoto. Vertigo conversou pouco durante a viagem e
manteve-se a maior parte do tempo em silêncio. Laura se intriga mas, tendo sua
privacidade sempre respeitada por seu amigo, prefere não pressiona-lo tanto.
Todavia, ela não esconde sua preocupação com o hacker.
Chegando ao
Submundo, ela estaciona a aeromoto na rua e prossegue pelo sinuoso beco.
Vertigo a acompanha em seu incomum silêncio, ecoando seus passos pela escuridão.
Entrando no bunker, muitos veem o hacker e calorosamente o cumprimentam,
felizes em ter seu companheiro de volta. Laura é cumprimentada também, sendo
gratificada pelo bem-sucedido serviço.
Database aparece
em seguida e, olhando para o hacker, ele pergunta:
- Você está bem?
Um pouco sério,
Vertigo responde:
- Sim, chefe.
Obrigado.
Database se
intriga. Geralmente o hacker seria mais eloquente, mais falante, mas naquele
momento ele demonstra uma frieza incomum. Após tudo o que aconteceu, Vertigo
jamais responderia de maneira sucinta.
- O que aconteceu
na sede dos Trans-humanistas? Eles machucaram você?
Mantendo-se
calmo, ele responde:
- Não.
- Você tem
certeza?
- Sim. Eles não
me fizeram mal algum.
Olhando para Laura,
o chefe se intriga.
- Onde esteve
todo esse tempo?
- Estive no Setor
T, na sede dos Trans-humanistas. Eles me mantiveram preso, mas decidiram me
soltar.
- Por quê?
- Porque para
eles eu não tinha valor algum.
- Está dizendo
que após todo esse tempo eles simplesmente te deixaram ir?
- Sim. Não havia
razão para me manterem preso. Era Nathan quem eles queriam.
Database se
confunde e não sabe o que dizer. Por fim ele diz:
- Fico feliz que
você esteja bem, mas vou ter que fazer exames em você. Preciso averiguar sua
saúde e garantir que você realmente esteja bem.
Vertigo se opõe.
- Não há
necessidade. Eu não estou ferido.
- É um
procedimento padrão, você já deve saber.
- Mas eu estou
bem.
- Então me deixe
examina-lo. Por segurança.
Então, pela
primeira vez, o hacker sorri.
- É por isso que
quer me examinar, não é? Não por minha saúde, mas por segurança?
Database o
provoca.
- Alguma objeção?
- Não, mas eu
posso me recusar, se eu preferir.
Desta vez é
Database quem sorri.
- Sim, pode.
Recuse-se, saia pela porta, se quiser. Mas cedo ou tarde você acabará aqui,
acordando em minha sala de exame, por bem ou por mal.
Ao demonstrar
autoridade, os runners se intimidam. Raramente eles viam seu chefe irritado, e
era melhor mantê-lo assim.
- Se você
insiste. – responde ele, fingindo consentir.
Deitado na mesa
cirúrgica, o hacker é envolvido pela sonda eletromagnética. Luzes brilhantes
percorrem seu corpo, procurando por sinais externos ou internos de agressão.
Olhando pela
janela do lado de fora, Laura e Database o observam. O chefe pergunta:
- Os mecanicistas
te deram problemas?
Sem desviar o
olhar de seu amigo, ela responde:
- Não. Na
verdade, não encontrei nenhum.
Assentindo, ele
olha para Vertigo e pergunta:
- O que aconteceu
com ele? Ele disse algo a você?
- Não, nada. Ele
está estranho desde quando o encontrei.
Ponderando,
Database diz:
- Se houver algum
implante de controle mental nele, os exames acusarão.
- Você acredita
que ele pode estar sendo controlado?
- É provável.
Devemos nos lembrar que Nathan quase foi implantado à força cirurgicamente. Se
você não o salvasse, nós o teríamos perdido.
Laura concorda.
- Se os
mecanicistas fizeram algo com Vertigo, eu vou matar cada um deles.
O chefe sorri.
- Então você vai
precisar de armas bem grandes.
O exame termina.
Entrando apressadamente na sala, Database averigua o relatório no computador.
Sua expressão é de desânimo. Aproximando-se, a garota pergunta:
- E então? Foi
encontrado algo?
Respirando fundo,
o chefe responde:
- Não. Os exames
não encontraram nada.
Então Laura se
confunde também. Apesar da forte desconfiança, ambos não podiam provar.
Levantando-se,
Vertigo veste seus calçados e diz:
- Acreditam em
mim agora?
Irritado, Database
o encara, mas não diz nada.
§
Em um aerocarro
dirigido por ateístas, Nathan é levado de volta à superfície. Pensativo, ele
segue a viagem em silêncio, lembrando-se dos momentos antes de deixar a sede da
Frente Ateísta.
Levando-o a um
galpão, Dawkins lhe disse:
- Aqui é onde
armazenamos nosso arsenal. Este é o poderio militar de nossa facção.
Então o rapaz vê
as milhares de armas enfileiradas e as munições empilhadas junto às paredes. Semelhantes
aos Trans-humanistas, os ateístas também têm exoesqueletos e armaduras de
combate à disposição. Caminhando pelos armamentos, Nathan vê um drone em uma
mesa. Havia algo escrito na fuselagem. Aproximando-se, o rapaz lê a famosa
frase de Iuri Gagarin, que diz: “Olhei para todos os lados, mas não vi Deus”.
Nathan fica
boquiaberto. Ele pensa: “E tudo isso na mão desses arruaceiros?”.
Parando em uma
plataforma elevada, eles sobreolham o galpão. Dawkins comenta:
- Sei no que está
pensando. Você acha que eu estou dando armas para os macacos, não é mesmo? Não
é nada disso, nossa facção é mais séria do que imagina e temos todos os meios
para sermos ouvidos. – mudando de assunto, ele diz – Eu sei que você já selou
uma aliança com os Clérigo do Recomeço. Me responda uma coisa, Nathan. O que
você fez para convencer aqueles fundamentalistas a se aliarem a você?
Lembrando-se do
atentado, o rapaz novamente se empalidece.
- Eu... – gagueja
ele – Apenas os convenci das vantagens de se trabalhar com o Submundo.
Encarando-o, o
líder percebe o medo em seu olhar.
- Não precisa ter
medo, Nathan. Apesar de nós e os clérigos sermos inimigos mortais, você é o determinado
Inimigo de Estado, preocupado apenas em combater a sua rebelião.
Suando, o rapaz
responde:
- Está bem.
- E então? –
insiste o líder – O que você fez aos clérigos?
- Eu apenas os
convenci. Talvez eles também tenham interesse, pois aceitaram facilmente
assim como a Resistência Purista.
- Simples assim?
- Sim.
Dawkins assente.
- Nesse caso,
deixe-me lhe falar algo sobre esses fundamentalistas. Os Clérigos do Recomeço
vivem em um delírio religioso e espalham suas doutrinas nos territórios em que
eles controlam. São contraditórios e violentos, pois pregam a paz e promovem a
guerra. Eles dizem existir um deus benevolente e bondoso, mas na verdade adoram
um deus inventado, de moralidade flexível, originado nas mentes dos cardeais e
seu líder. Sua conduta é imoral e vitimista, pois forjam atentados terroristas
para reforçarem sua narrativa de perseguição religiosa. Por acaso você ficou
sabendo de uma explosão em uma escola?
O rapaz
imediatamente se lembra. Os clérigos o mostraram aquele atentado covarde em que
se feriram mulheres e crianças.
- Sim.
- Aquele foi um
atentado falso, forjado para jogar a culpa em nós, a Frente Ateísta.
Nathan não
acredita.
- Não pode ser.
Eu vi o vídeo, as vítimas jaziam mortas no chão.
- Eram falsas. Os
clérigos encenaram a explosão. Se tivéssemos cometido um atentado tão covarde,
você não acha que a polícia não viria atrás de nós, com a fúria do povo e
sedentos de sangue, para esmagar nossa organização?
O rapaz pondera. “Nada
tão sanguinário sairia ileso assim” pensa ele.
- Como que
crianças encenariam algo com tamanha perfeição? – pergunta ele.
- Talvez não seja
totalmente uma encenação. Lembre-se que eles são radicais religiosos. Eu não
duvido que eles tenham usado bombas não-letais para simular uma explosão. De
qualquer forma haveriam feridos, mas não fatalmente.
Nathan se
confunde. “Será que os clérigo me manipularam?” pensa ele.
- Eu não consigo
acreditar.
- Acreditando ou
não, os fundamentalistas explodiram um hospital em nosso território. E esse,
Nathan, foi bem real.
O rapaz arrisca
uma pergunta:
- Houveram
vítimas?
Dawkins sorri.
- Dezenas. Vinte
e sete mortos e quarenta e quatro feridos.
Nathan arregala
os olhos. Pensativo, ele não consegue acreditar que foi enganado pelos
clérigos. Por outro lado, os ateístas são radicais também, só que
antirreligiosos. Nessa luta ideológica, ambas as partes forjariam provas para
se justificar. “E se Dawkins estiver mentindo?” pensa ele. “E se o atentado
realmente aconteceu e ele está escondendo-o?”. Nathan não sabe em quem
acreditar.
- Droga... – sussurra
ele. O mundo das facções é mais sujo do que ele pensa.
Um minuto se
passa. Observando o arsenal lá embaixo, Dawkins diz algo sem olha-lo nos
olhos.
- Você tem sua
aliança, Nathan. A Frente Ateísta aceita trabalhar com o Submundo.
Surpreendido, o
rapaz não sabe o que dizer.
- Eu... – hesita
ele – o agradeço, senhor Dawkins.
O rapaz se
alegra, pois mais uma vez a rebelião se aproximava do fim.
- Mas eu devo te
alertar uma coisa. – continua ele, preocupando-o – Entre as facções nunca
haverá paz, não agora e nem depois da rebelião. A Frente Ateísta jurou vingança
contra os Clérigos do Recomeço, as vítimas do hospital nos clamam isso. Nós já temos
espiões trabalhando no caso. Quem quer que o tenha explodido, vai pagar caro
pelo que fez.
Então Nathan se
sente em perigo.
- Eu compreendo.
– responde ele, arduamente.
- Considere
minhas palavras, Inimigo de Estado. A paz que tanto almeja não passa de uma
ilusão. Lembre-se disso quando vencermos, e se vencermos, a rebelião.
O rapaz assente,
sentindo um gosto amargo em sua boca. Minutos depois eles se despedem e os
ateístas o levam embora da sede da Frente Ateísta.
§
Pousando próximo
ao Mystique, Nathan deixa o veículo e se despede dos ateístas. Levantando voo,
o aerocarro se eleva entre as plataformas e tubos, deixando a superfície.
Caminhando pelas
ruas, o rapaz se alegra ao finalmente voltar para casa. Entretanto, algo o
incomoda, ele se preocupa com Maynard. “O que será que te aconteceu, seu
mercenário ardiloso?” pensa ele.
De volta ao
Submundo, ele é recebido com surpresa e admiração. Os runners não esperavam
reencontra-lo vivo novamente, não depois do massacre na manifestação. Uma
runner se aproxima e diz:
- Nathan, você
está horrível. – ela se refere às suas roupas sujas.
Outro runner lhe
diz:
- No que estava
pensando indo lá em cima sozinho? Virou um suicida?
Esboçando um
sorriso, ele responde:
- Ainda não. O
Database está aqui?
- Sim, está. –
então o runner lhe informa – Nathan, temos boas notícias. O Vertigo voltou... E
Laura também.
O rapaz se
paralisa.
- Onde eles
estão?
- Na sala médica.
Apressando-se,
Nathan percorre os corredores, deixando-os para trás.
Parados em frente
à sonda eletromagnética, o rapaz vê Database, Vertigo e Laura conversando.
Abrindo a porta, os três olham para ele, mas Nathan só consegue ver uma pessoa
à sua frente. Ele sussurra:
- Laura...
A garota faz um
semblante irritado e cruza seus braços, em linguagem corporal rejeitando-o.
- Nathan, você
está bem? – pergunta Database, preocupado.
- Sim, eu acho. –
responde ele, olhando para suas roupas sujas de sangue.
- Nathan, você
não tem sete vidas. Se continuar se arriscando assim, você morrerá.
- Eu sei, chefe.
Na verdade, eu tenho muito a lhe dizer.
Vertigo então o interrompe.
- Eu também tenho
algo a lhe dizer, Nathan. Os Trans-humanistas aceitaram a aliança e também
trabalharão com o Submundo.
Então Database e
Laura se entreolham.
- Vertigo, por
que você não me disse isso antes?
- Porque esta era
uma mensagem pessoal para o Inimigo de Estado.
Intrigado, ele
pergunta:
- Pessoal? De
quem?
- De Huxley, o
líder dos Trans-humanistas.
Ainda intrigado,
o chefe diz:
- Nathan e
Vertigo, vamos para a minha sala, vocês têm muito a me dizer. E Nathan – chama ele,
olhando para o rapaz e para Laura –, você poderá cuidar de seus assuntos depois.
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