segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O Maçom




O Maçom

[Capítulo inteiro do meu segundo livro, de tema Pós Apocalíptico]

O professor ergue lentamente a tampa de madeira apodrecida sobre o abrigo, um compartimento subterrâneo para escoar águas pluviais, e espia se há alguém lá em cima. Ele não vê nada além de solidão, sujeira e as onipresentes ruínas.
No abrigo estão os refugiados, os fugitivos, as famílias inteiras que fogem durante meses e encontraram a chance de sobreviver, mesmo que não seja por mais alguns dias.
O médico sobe as escadas de concreto e se aproxima do professor, que observa atentamente lá fora. Ele pergunta:
- O que há de errado com o maçom? Ele está isolado lá embaixo, não fala com ninguém. Aconteceu alguma coisa?
O professor o vê sentado num canto escuro, encostado na parede embolorada.
- Eu não sei. Ele também não fala muito comigo.
O maçom está pensativo, sempre pensativo, se lamentando de estar passando por tudo aquilo quando não deveria. Ele foi enganado, covardemente traído, não era para ele estar ali sentado na sujeira, sofrendo com aquela gente como se fosse um rato de esgoto. Era para ele estar em segurança, confortável e aquecido em outro lugar, sobrevivendo protegido dos animais cruéis que perseguem os fracos neste novo mundo desfigurado. Ele não é igual essa plebe asquerosa de dentes marrons e trapos sujos, ele é melhor e deveria estar num lugar melhor. Um abrigo melhor.


George Everett era de uma influente loja maçônica em sua cidade. Como toda ordem hermética, ele zelava pela discrição e sentia-se parte de algo maior, ao lado de empresários e políticos, assistindo a cerimônias e rituais dirigidas pelo seu grão-mestre. Ele era um empresário bem-sucedido e foi convidado a participar da loja por sua amante, sendo o último a integrá-los. 
O dinheiro era trivial e fluía abundantemente entre os membros. Sob um tradicional juramento, eles se ajudavam em situações difíceis e assim ninguém passava necessidades. O requinte e o luxo eram requisitos obrigatórios, George jamais viveu tão bem em toda sua vida. Carros importados, casas em condomínios fechados, carteira de sócio em clubes requintados, eventos em restaurantes caros e roupas de grife eram comuns. Nas reuniões de portas fechadas, era comum ver prefeitos, deputados, vereadores, delegados, juízes, empresários, médicos, presidentes de hospitais, de clubes de campo, de clubes de golfe, e inclusive padres e pastores. 
O grão-mestre certa vez disse:
- Vocês não fazem parte do poder constituído. Vocês são o poder constituído.
A guerra se aproximava e a loja maçônica se preparava para os ataques. Um dos membros estava construindo um abrigo subterrâneo em seu quintal. O abrigo ficava em outra cidade, bem distante da loja, e todos foram convocados a ajudar na construção. O ambiente ia abrigar todos os membros e teria mantimentos suficientes para dez anos, com modernos sistemas de reciclagem de água e de ar. Os membros da loja, todos bem educados, inteligentes e cientes das consequências do conflito, sabiam exatamente o que aconteceria se as primeiras ogivas nucleares atingissem seus alvos. O mundo como conheciam seria devastado e contaminado pela radiação por séculos. Apenas aqueles com recursos sobreviveriam, e o recurso se chamava dinheiro.
George tinha um estagiário em sua empresa e o levava para fazer visitas comerciais com seus clientes. Apesar da diferença de vinte anos de idade e da relação de empregado e patrão dos dois, eles se tornaram grandes amigos. O estagiário, um rapaz jovem e inexperiente, tinha muito que aprender e George via no jovem ele mesmo anos atrás quando tinha acabado de sair da faculdade e não achava emprego em lugar nenhum. 
Certa vez George pediu para que o estagiário lhe preparasse um cheque nominal de trinta mil dólares. O jovem se assustou com o enorme valor mas não perguntou nada. Os dois saíram juntos no arrojado carro importado do chefe e George o estacionou no estacionamento da prefeitura da cidade. Em seguida apareceu outro carro, importado, preto e com os vidros escuros, estacionando ao seu lado. George lhe pediu o cheque e, assinando-o, abriu a porta e entrou no outro carro. O estagiário não pôde ver quem estava ali dentro e ficou muito curioso. 
Após meia hora de muita espera, George retorna e, antes dele dar partida, o carro preto sai apressado do estacionamento. Sem poder conter sua curiosidade, o rapaz pergunta:
- Quem era?
George é solícito ao responder. Ele adorava guardar segredo de participar da maçonaria, apesar da empresa inteira já saber.
- Um amigo.
- Ele deve estar com muitas dificuldades. Trinta mil dólares é uma tremenda quantia!
Seu chefe sorri e não responde nada. Mal sabe o rapaz que a loja maçônica está construindo um abrigo nuclear e que, quando a cidade e o mundo inteiro arder em chamas, George estará seguro sob a terra. Sua satisfação vira arrogância, “eu vou sobreviver” pensa ele enquanto retorna à empresa com um sorriso no rosto.
A guerra se aproxima. As ameaças são constantes e as provocações ainda maiores. As ruas estão vazias e ninguém sai de casa à noite. Muitos nem mesmo vão trabalhar, as mães não levam seus filhos à escola e de repente parece que a cidade inteira virou uma cidade fantasma.
George se dirige à loja maçônica para encontrar com os outros membros, de lá eles seguirão para o abrigo. Dirigindo tranquilamente pela noite sem trânsito algum, passando por sinais vermelhos e não parando em cruzamentos, ele chega à loja e estranha não haver nenhum dos belos carros estacionados na frente. Não há ninguém para recebê-lo como de costume, e ao tocar a campainha ninguém atende. A casa está completamente deserta, as luzes estão apagadas e não há nenhum ruído lá dentro. O que está havendo? Onde estão os outros membros?
Parado na calçada com suas caras roupas sociais, relógio de ouro e o anel de pedras preciosas da irmandade no dedo, ele fica confuso e surpreso, se perguntando com muita coragem e decepção: “será possível que eles me deixaram para trás?”.
Sentindo-se chocado e traído, ele olha de um lado ao outro, começa a ofegar e lágrimas se formam em seus olhos. George não sabe o que fazer, não sabe para onde ir, ele não sabe onde fica o abrigo, tudo era mantido no mais absoluto segredo. “Mas que droga, eu paguei pela construção!” pensa ele. 
George deu as costas à esposa, aos familiares, aos filhos, aos amigos, e para quê? Sua esposa, vista por ele com desprezo como uma velha, gorda e mal humorada, foi avisada que ele não voltaria mais àquela noite. Em seu porta-malas estão suas malas e outros objetos pessoais. Ele não disse adeus aos seus filhos, deixando-os com a mãe. Que humilhação, ele terá de voltar para casa e encara-la novamente com seu semblante patético de quem foi enganado e traído friamente. Mas ela o receberia de volta?
“Isso não pode estar acontecendo...”.



O professor faz um sinal dizendo que está tudo bem e os refugiados se levantam, pegam suas coisas e sobem as escadas, saindo do abrigo. O maçom os acompanha, silencioso, sem a mínima vontade de conversar com qualquer um deles. 
O grupo deixa a galeria de águas pluviais e caminha pelas ruínas frias da cidade destruída. Liderados pelo professor, essas pessoas o seguem como se fosse um êxodo e o professor fosse o Moisés, mas ao contrário da verdadeira história onde os hebreus partiam rumo à liberdade, ali eles caminhavam diretamente para a escravidão. E a escravidão tinha diversas faces neste novo Egito de concreto armado e asfalto. Talvez a melhor comparação para eles seja com a diáspora, quando o povo judeu partiu para a escravidão, forçados a exilar-se na Babilônia.
George observa os refugiados ao seu redor. A maioria são pessoas bem instruídas, inteligentes, cultas, com diploma universitário, iguais aos antigos membros da loja maçônica da qual participou no passado. Ele se pergunta como estão os membros da antiga loja agora, com certeza melhor do que ele, caminhando ali como um mendigo sujo ao lado de crianças desnutridas e doentes. O ressentimento ainda o corrói por dentro, traído por uma organização cujo princípio é ajudar um ao outro. A memória vem ao acaso e ele se lembra de algo que seu grão-mestre disse numa reunião:
“Não importa se você é cristão, ateu, budista, muçulmano, agnóstico ou espírita, as pessoas seguem em caminhos diferentes mas todos têm um objetivo em comum. As religiões são apenas atalhos. Independente da crença que você tiver, todos os caminhos levam à Deus”.
O grão-mestre deve estar pregando esta mesma baboseira agora, seguro e aquecido do frio no abrigo subterrâneo que George ajudou a construir. Eles devem estar rindo dele agora, até mesmo gargalhando, extasiados ao lembrarem como fizeram alguém doar uma quantia exorbitante a algo que ele não iria participar. 
E sua esposa, o que ela estaria pensando a seu respeito agora? Ele sente remorso ao lembrar. Para ele o fim do mundo começou antes aquela noite, quando sua família soube de suas intenções egoístas logo após ele sair com o carro indo em direção à loja. George os deixou para nunca mais voltar, criando insuperável rancor em seus filhos, uma ferida na alma que espirrava desprezo pelo próprio pai que os abandonou na véspera do fim. Mas de repente ele volta. Por quê?
Que desculpa ele poderia inventar? O que a expressão patética em seu rosto poderia argumentar para que eles porventura tivessem pena dele e o aceitassem de volta? Ele prefere não relembrar a reação de sua família ao revê-lo, o constrangimento é duro demais. 
Sendo covarde demais para admitir o erro, ele culpa sua amante por tudo o que aconteceu. Por ela George se associou à loja maçônica. Enquanto ele mantinha a relação extraconjugal, exibindo-se aos seus amigos, gabando-se da fama de conquistador, ele jamais pensou que uma bela mulher de rosto felino, quadril largo e seios fartos poderia causar tanto dano em sua vida. Se aquela cachorrada terminasse simplesmente em um divórcio, que se dane sua esposa! Por anos eles se odiavam! Mas infelizmente não foi só o casamento que ele perdeu.
George teve sorte na noite seguinte. Dormindo num hotel à beira da estrada, ele estava longe quando a primeira ogiva nuclear caiu em sua cidade. Acordar ao som de pânico e correria é aterrador, ainda mais quando se sabe que é por causa de uma explosão nuclear e você está na superfície. Os hóspedes saem de seus quartos e olham em direção à cidade. Ela brilha como uma erupção vulcânica enquanto um monstruoso cogumelo de fogo e fumaça ergue-se ao céu. Estando a trinta quilômetros do hipocentro, George está a salvo da explosão, mas seus problemas estavam apenas começando.
O maçom não tem mais noção de tempo desde os ataques nucleares, mas passam-se aproximadamente dois anos. Ele testemunhou o mundo se tornar uma grande pilha de lixo com o passar do tempo, contaminado em todos os lugares pelo inimigo invisível da radiação. Muitas pessoas morreram contaminadas, mortes horríveis em que os cabelos caiam, a visão escurecia com cataratas e tumores protuberantes apareciam no corpo. Várias vezes ele viu peregrinos solitários agonizarem nas ruas, caídos ao lado de suas excreções corporais, o cheiro de vômitos e fezes empesteando o ar e sem ninguém que pudesse ajudá-los.
 Foi casualmente que ele viu um grupo de peregrinos caminhando pelas ruas desertas da cidade. George estava escondido num prédio abandonado, num apartamento do segundo andar, quando os ouviu lá embaixo. Espiando pela janela, ele viu homens, mulheres e crianças, eram famílias inteiras de jovens e velhos passando ali embaixo em passos confusos de quem não tem mais certeza se ainda quer viver. Era o grupo do professor.
O grupo sob a liderança do professor o aceita sem problemas. Eles são apenas sobreviventes vagando pelas cidades em busca de comida, água e abrigo. George não compreende a razão deles em se empenharem naquela marcha, afinal todos estarão expostos à radiação e morrerão mais cedo. Talvez seja a intenção, mas ele prefere pensar que a necessidade os forçou àquilo. Os instintos falam mais alto quando há fome e sede.
Voltando ao presente, o maçom ainda os acompanha. Da maneira em que ele pensa, ele tem um jeito bem ingrato de retribuí-los já que, diferente da loja maçônica onde todos supostamente se ajudam, o grupo do professor sim esteve se ajudando durante todo o tempo em que peregrinavam pelas ruínas deste novo mundo. Este bando de moribundos ambulantes os aceitaram, diferente daqueles a quem ele jurou ajudar.
Passando sob um viaduto em ruínas, eles desviam das pistas de rolamento caídas entre os pilares, as rígidas estruturas não foram capazes de suportar a fúria da chama nuclear. O professor ouve algo além do entulho à sua frente e pede para o grupo ficar em silêncio. Ele e o médico se esgueiram entre os enormes pedaços de concreto e escalam um pilar semidestruído. Eles espiam a avenida deserta à sua frente, com focos de vegetação crescendo nas rachaduras do asfalto.
Esgueirando-se atrás deles, George também sobe pelos entulhos e põe-se ao lado deles. Os três veem algo que nenhum deles tinha visto antes. Semelhante a uma pequena caravana, cinco homens vestidos com sobretudos e capuz no rosto caminham à frente de uma carroça puxada por bois. Atrás deles o trio vê uma fileira de seis pessoas com longos mantos cobrindo-os da cabeça aos pés, semelhante a burcas. Há correntes e cadeados prendendo os seus pulsos, e outra corrente ligando as seis pessoas como se fossem prisioneiros sendo escoltados pela caravana. Sobre a carroça há vários objetos empilhados sobre estantes improvisadas de madeira, como se fosse uma barraca de comércio. Ao observar bem eles veem que são garrafas plásticas de água, leite engarrafado, comida enlatada, caixas de cereais, sacos de grãos, latas de refrigerantes, latas de cerveja, bebidas alcoólicas, caixas de biscoitos, e mais outras variedades. 
O professor se espanta. Como podem essas pessoas vagar pelas ruínas assim? Eles têm dúzias de mantimentos que as pessoas comuns se matariam para obter. O vento sopra mais forte e o sobretudo dos homens se levanta, exibindo metralhadoras, pistolas e munição em seus peitos e cinturas. Está explicado porque eles caminham tranquilamente por aí.
A caravana para um pouco mais a frente, perto de um posto de gasolina abandonado. O professor e o médico os seguem, George também vai para o incômodo dos dois, não ficando atrás com o resto do grupo. Pensando que eles pararam para descansar, o professor se assusta ao ver um bando de saqueadores se aproximarem, vestindo suas armaduras detestáveis como se fossem cavaleiros medievais vindos do lixo. Normalmente eles estariam prestes a testemunharem um massacre, mas algo diferente acontece. Os saqueadores começam a olhar a mercadoria, como se estivessem escolhendo o que comprar, e alguns deles trocam objetos com os homens da caravana. Os objetos trocados são roupas, casacos, botas e ferramentas, e então os saqueadores compram comida enlatada, garrafas de água e bebidas alcoólicas. Tudo fica claro agora, os homens da caravana são Mercadores.
É a primeira vez que o professor, o médico e o maçom veem esse tipo de peregrino, pessoas que enriquecem vendendo mantimentos a assassinos como os saqueadores. A reflexão dura pouco quando um dos mercadores exibe os prisioneiros para eles. O mercador levanta a burca e os três se aterrorizam ao ver que são mulheres. Completamente nuas e presas pelos pulsos, o mercador parece negociar as mulheres exibindo as partes atraentes de seus corpos. Os saqueadores apertam seus seios e nádegas, comprovando a consistência da mercadoria, decidindo se vão pagar um preço tão alto para levar pelo menos uma delas.
A negociação dura vários minutos. Os três espionam em silêncio quando um saqueador, usando uma máscara de soldador, se aproxima da caravana e retira sua máscara para olhar melhor as mulheres. George se espanta, ele reconhece seu rosto, é um dos membros da loja maçônica! 
O maçom vê aquele que era um dos detetives de polícia na antiga loja. Mas algo não se encaixa, como pode um ex-policial ser um dos maníacos, assassinos e estupradores que aterrorizam as ruínas das cidades conhecido como Saqueadores? Não é possível! Estariam seus olhos enganando-o? George ainda está muito ressentido, seu rancor o manteve vivo durante todo esse tempo, o rancor de quem foi enganado e traído, deixado para trás pela arrogância de gente da qual ele jurou lealdade. Não há dúvida, é o detetive, aquele policial corrupto que recebia propina de traficantes de drogas, gigolôs e fraudulentos. Como é mesmo seu nome? Detetive Jensen?
O professor e o médico decidem voltar ao grupo e passar por outro caminho, evitando os mercadores. Mas George se levanta e deixa o esconderijo entre os entulhos. Os dois se desesperam ao vê-lo sair, mas não podem chamá-lo de volta, com medo de que os saqueadores os ouçam. O maçom caminha em direção aos saqueadores. Ele quer respostas, precisa das respostas, não importa o que tenha que fazer para obtê-las.
 Os saqueadores param o que estão fazendo e encaram o misterioso homem se aproximar ingenuamente da morte certa. Os mercadores também se intrigam e levam as mãos às armas sob seus sobretudos. Jensen está distraído olhando para as mulheres à venda quando percebe um homem vestido em trapos sujos, barba ensebada e olhar inquisidor se aproximar dele com determinação inabalável. Os mercadores estão confusos e não sabem se ele é só mais um cliente ou um peregrino desequilibrado e doente pela radiação. Sem a mesma indulgência deles, os saqueadores seguram suas armas rústicas e os cercam pelas costas. 
George olha fixamente para o detetive, intrigado com tudo aquilo. O maldito parece não se lembrar dele.
- Detetive Jensen? Lembra-se de mim?
Jensen não faz ideia de quem ele seja.
- Quem é você?
O maçom se irrita. Ao seu redor estão os saqueadores, prontos para abatê-lo como gado. Eles não são normais, agora que George está perto ele percebe isso. Estes criminosos são animais, olham fixamente como maníacos psicopatas prontos para esquartejar a vítima indefesa. Ofegando como feras cheias de adrenalina, exibindo seus dentes amarelos e podres, gesticulando como chimpanzés enraivecidos e sussurrando para si mesmo luxúrias sanguinárias, o maçom vê os braços da morte se fecharem sobre ele. 
Tirando seu capuz e limpando o rosto com as mãos, o maçom se apresenta:
- Sou George. Éramos membros da mesma loja maçônica anos atrás.
A expressão de surpresa se forma no rosto de Jensen. Lentamente seu rosto enrugado revela um sorriso horroroso, exibindo seus dentes marrons entre seus lábios rachados pelo frio. Inesperadamente ele gargalha, surpreendendo inclusive os animais selvagens que eles chamam de saqueadores atrás dele.
- George? Sim, eu me lembro de você! Achávamos que estivesse morto!
- Achavam...?!
Jensen ri novamente. A esquizofrenia parece ter tomado uma parte de sua sanidade com o passar do tempo.
- Eu estou feliz!
- Você estava com eles? Tem mais deles com você? O abrigo está perto daqui? Responda!
Os saqueadores se aproximam. George sente um cheiro forte, as armaduras deles têm manchas escuras, um marrom encardido do sangue coagulado daqueles que eles mataram. O maçom se surpreende, os saqueadores costuraram borrachas de pneus em suas armaduras, usando-os como proteção no peito, braços e cotovelos.
Jensen aponta para uma das mulheres à venda e diz:
- O que acha dela... George?
O maçom se confunde, ele não está falando com coerência.
- Por que me deixaram para trás?!
Os mercadores intervêm e respondem:
- Jensen, você pode matar a saudade depois. Temos mais lugares para ir.
O saqueador sorri e fala aos outros atrás de George:
- Façam. 
Assustado, o maçom olha para trás e vê a própria morte nos olhos dos saqueadores. Ele implora por sua vida, retira de seus bolsos muito dinheiro, milhares de dólares em notas de cem.
- Aqui, peguem tudo mas não me matem!
Para a infelicidade de George, as cédulas de dinheiro que valiam tanto no passado, da qual as pessoas eram capazes de se matar para obter, hoje não valem nada, não passando de um simples papel verde sem valor.  
Os saqueadores rasgam o dinheiro diante de seus olhos. Ele apela mais uma vez.
- Espere! Eu não estou sozinho, tem mais gente comigo, a maioria mulheres e crianças. Levem-nos mas me deixem viver!
Ao ouvir isso, o professor e o médico se encolerizam, indignados com o maldito maçom que os entrega covardemente a um bando de assassinos cruéis.
Ignorando George para a sorte dos sobreviventes, os saqueadores erguem suas armas, prontos para golpeá-lo. Ele vê de relance a barra de aço se aproximar antes de ele cair no asfalto como um saco de lixo. Pouco antes de ele perder a consciência, ele vê Jensen comprar uma das mulheres e levá-la à força enquanto ela se debate como peixe fora d´água. 



  George não sabe por quanto tempo esteve desacordado. Ele abre os olhos, a visão ainda embaçada e a cabeça doendo, e vê dois saqueadores arrastando-lhe pelas pernas. Sua cabeça, costas e braços deslizam com dificuldade pelo solo áspero e empoeirado coberto de pedras. Mais a frente outro saqueador puxa a mulher comprada por uma corrente presa em seu pescoço. Ela usa uma espécie de coleira para cães, a corrente prende seus pulsos e passa pela coleira, dominando-a como se fosse um animal doméstico. Ele não consegue ver Jensen, entretanto.
Os saqueadores os levam para seu esconderijo, um local macabro do qual o maçom jamais irá esquecer. É um ferro-velho cercado por telas de arame farpado. Há fogueiras, torres de vigilância improvisadas e carcaças de carros empilhados em seu interior. George se aterroriza ao ver cabeças decepadas, perfuradas por lanças na entrada do ferro-velho, corpos nus mutilados e amarrados com cordas nas telas de arame e cadáveres enforcados pendurados nos postes. Ele sente temor, alguns dos corpos mutilados e enforcados são de mulheres!
“Que carnificina é esta?!” pensa ele.
Ao entrar, o maçom vê que os saqueadores fizeram um povoamento improvisado, usando containers velhos como dormitórios, barracos com paredes de aço dos carros enferrujados e um salão usado como refeitório feito dos restos da antiga construção de tijolo cerâmico, provavelmente a garagem do ferro-velho que havia ali. Ele também vê vagões de trem, o chamado carro-leito, sendo usado como dormitório dos saqueadores mais fortes, um privilégio para poucos naquela alcateia de animais.
Assim que a mulher chega, ela é jogada ao carro-leito. Os saqueadores mais fortes a agarram e a arrastam para dentro, fechando a porta em seguida. Os homens ao redor se aproximam do vagão e espiam pelas janelas quebradas, curiosos para ver a “domesticação” sexual lá dentro. Os mais fortes devem experimentá-las primeiro.
George é lançado dentro de uma jaula feita de barras de aço do tipo vergalhão e o telhado é de telhas metálicas, a maioria furada. O chão está coberto de feno e cheira a urina e excremento, ele vê vasilhas de ração iguais àquelas em que os cachorros comem, e ao olhar para trás ele vê buracos no chão com placas de sinalização de tráfego, são as tampas das fossas. Ele não percebe mas há mais pessoas na jaula, elas se aproximam e o ajudam a ficar em pé. Ao ver melhor, George se surpreende ao ver apenas homens vestidos em roupas mínimas, apenas cuecas e bermudas velhas e sujas, e os mais azarados usam trapos enrolados em suas cinturas como se fossem fraldas. O maçom se sente privilegiado por estar vestindo casacos, calças e sapatos, mas se pergunta até quando.
- Você está bem? – pergunta um rapaz. Ele é jovem e tem pouca barba, os pelos em seu peito são bem escassos.
- Minha cabeça dói muito.
- Como foi capturado? Sobrou mais alguém ou é o único sobrevivente?
O maçom fica confuso.
- Capturado...?
- É. Eles invadiram minha casa nos subúrbios. Vivíamos com outras duas famílias, nos protegendo do frio e compartilhando alimentos. Ao amanhecer os saqueadores fizeram o primeiro ataque, matando os homens guardando a casa, em seguida eles invadiram e atacaram os mais velhos, matando-os a golpes de machado. Meu pai morreu tentando proteger minha mãe, o golpe de bastão abriu um buraco horrível na cabeça dele...
- Meu Deus!
- Sobraram apenas os homens mais jovens e as mulheres. Minha mãe e irmã foram estupradas durante um mês, elas eram as escravas sexuais deles. Depois elas foram vendidas e nunca mais as vi. 
O maçom se assombra com a frieza de seus relatos.
- Por que eles os mantêm aqui?
- Somos seus escravos. 
- Escravos?! – indaga-se George.
- Tudo o que está vendo neste povoamento foram nós quem construiu. Eles nos usam como mão de obra, limpamos as fossas, construímos suas casas, consertamos os telhados, os barracos, as tubulações... Inclusive confeccionamos suas armaduras rudimentares feitas de pneus e aço. Somos excelentes artesãos, como pode ver. Às vezes eles nos usam como diversão, nos lançando em arenas para lutar contra cães raivosos ou contra nós mesmos. 
- Eles usam vocês como escravos e gladiadores? 
O rapaz assente, mostrando cicatrizes profundas e feridas infeccionadas em seu corpo.
- Desde que fomos capturados eles nos tratam como animais de estimação. No começo éramos doze mas agora somos apenas cinco, eles nos dizem que o último que sobrar se tornará um saqueador. As mulheres não têm a mesma sorte. Desde que chegam aqui elas são violentadas constantemente, dia e noite, passando de alojamento em alojamento. Minha irmã tinha sífilis quando foi vendida. Eles iam me obrigar a fazer sexo com ela por diversão, mas os chefes disseram que precisavam de mim saudável para trabalhar no povoamento. Se as mulheres não morrerem de doença venérea elas são vendidas para serem estupradas por outros. É um triste destino para quem é fraco e indefeso.
George sente repugnância. Em seguida o rapaz pergunta:
- E então? Como foi capturado?
- Eu não fui. Estava procurando alguém. Detetive Jensen, conhece?
Os escravos sorriem, algo que eles quase esqueceram como se faz.
- Detetive? A polícia não existe mais, estranho.
O maçom insiste.
- Eu o vi hoje. Ele estava usando uma máscara de soldador e vestindo armaduras de aço e borracha.
Ainda extasiado, o rapaz responde:
- Olhe ao redor, estranho. Todos usam máscaras e armaduras!
- Mas ele...
De repente dois saqueadores abrem a porta da jaula e agarram George. Eles arrancam suas roupas uma a uma, deixando-o completamente despido na frente dos escravos. Encolhido com a mão sobre a genitália, um dos saqueadores diz:
- Se quiser cobrir seu pinto de novo vai ter que trabalhar pelado amanhã o dia inteiro. E então devolveremos sua cueca.
Os saqueadores riem, dão as costas e vão embora. Depois que eles se afastam, um outro homem que estava vigiando-os de longe se aproxima e sussurra através das barras:
- Você tem um corpo bonito. Se não conseguir trabalhar amanhã, talvez eu consiga outro uso para você, te dando um carinho especial do mesmo jeito que eu fiz com o rapaz. – o saqueador olha para o jovem que esteve falando com George minutos antes.
Ele arregala os olhos, a aflição e o pânico dominam sua mente. O saqueador pervertido vai embora mas continua observando-os de longe.
Os escravos vão para o fundo da jaula e se sentam, cruzando os braços ao redor das pernas para se aquecerem. O rapaz que esteve tagarelando desde o momento em que George chegou se emudece e olha para o vazio, suas lembranças ainda estão fortes e transpõe a realidade.
George se sente só. Após esnobar tanto o grupo do professor, olhando-os como mendigos e inúteis, agora ele sente a falta deles. Ele implora que algum deles, qualquer um, venha em seu resgate, para resgatar alguém que se achava superior demais para trocar uma única palavra gentil.

Na manhã seguinte os saqueadores invadem a jaula e acordam os escravos, deitados no chão tremendo de frio. Eles os empurram para fora e imediatamente eles retomam suas atividades, eles parecem já saber o que fazer, tendo uma rotina comum após tanto tempo cativos. Alguns vão para a cozinha do refeitório, outros pegam esfregões e limpam o chão, e outros pregam as paredes e os telhados dos casebres, consertando-os. George está nu no meio do acampamento, e os saqueadores riem e zombam dele. Um dos chefes, saindo do carro-leito, vê a agitação no ferro-velho e apanha um pedaço de pau. Ele o usa para bater nas nádegas de George, provocando risos entre aquela corja de pervertidos. O maçom teme por sua integridade física. Seu orgulho e sua masculinidade estão em risco ali.
Enquanto os homens zombam dele, George não vê o detetive Jensen em lugar algum.
O chefe, um homem alto e corpulento, lhe diz:
- Quer se cobrir? Vai ter que trabalhar duro em nosso esconderijo. Sua primeira tarefa é lavar a novata. Tragam a escrava!
Ao dar a ordem, dois saqueadores entram no vagão e trazem a mulher. Parece uma tarefa bem simples, o maçom não vê dificuldades. Ao se aproximar, George nota como a expressão dela é de trauma, ela está branca como a neve, seu olhar é vazio e apavorado, os longos cabelos loiros estão armados e despenteados e ela parece não perceber que também está sem roupas.
- Leve-a ao tanque e lave-a bem. E lembre-se de esfregar as manchas ressecadas em sua pele. Quero-a bem limpinha essa noite.
Os saqueadores riem perversamente. 
Ao levá-los ao tanque, o maçom vê uma piscina de água suja e escura, é o tanque de que estavam falando. Provavelmente eles não trocam a água por semanas. É muito compreensível uma vez que a água se tornou um bem precioso, sendo raro encontrar riachos e nascentes que não estejam contaminados pela radiação.  
O maçom coloca a mulher na piscina, ela está imóvel e precisa ser transportada em seus braços. É difícil não se excitar com sua nudez também, mas a compaixão cresce ao ver como ela está abalada. Ele nota como os mamilos dela estão duros e pontudos com o frio. Dois homens os vigiam atrás dele, conversando tranquilamente enquanto ele tenta lavar a mulher. George não tem outra opção senão deitá-la na piscina rasa e enxaguar seu corpo. 
Ao passar a mão em sua barriga, George sente algo viscoso em seus dedos. É o sêmen dos chefes do povoamento. Ele sente náuseas e tenta conter o vômito. A água fria arrepia os pelos dela mas ela não esboça nenhuma reação, estando completamente ausente no olhar. O maçom continua enxaguando-a, lavando as manchas de sêmen de sua barriga e de seus seios. 
- Ei, estamos vendo você ficar de pau duro aí! – grita um dos saqueadores, caçoando-o.
Deixando a mulher sentada, encostada na borda da piscina, ele lava a vagina dela passando o dedo em seu clitóris. Algo viscoso sai em sua mão. Já sabendo o que é ele vomita, não conseguindo mais segurar a ânsia. Mas algo está diferente, sua mão está vermelha. É sangue!
- Meu Deus! O que fizeram a você?!
A mulher está toda machucada por dentro, aqueles animais a violentaram com brutalidade. Como alguém é capaz de fazer isso?
Ele lava o rosto da mulher. O rosto dela está cheio de hematomas, há cortes em suas bochechas e seus lábios têm ferimentos de socos. Ao ver manchas brancas em seus cabelos, ele os enxagua rapidamente para ela não sentir mais frio. É deprimente ouvir os maxilares dela batendo e ele não poder aquecê-la. George lava as mãos dela e vê resíduos de pele sob suas unhas, ela se debateu o quanto pôde. A sola dos pés dela estão com grossas camadas de lama, os mercadores as mantinham completamente nuas e descalças sob aquelas degradantes burcas. Por último ele lava o ânus da mulher, passando levemente a mão. 
Lavar uma mulher que acaba de ser estuprada, usando as próprias mãos sem nenhum sabonete, é uma atividade nauseante, porém foi a tarefa mais humanitária que George fez em toda sua vida. Ele sente muita pena, lágrimas se formam em seus olhos por ter que testemunhar tudo aquilo, saber que coisas terrivelmente ruins estão acontecendo nos cantos mais sórdidos da cidade. E o maçom agindo com arrogância. George aprendeu uma lição muito amarga aquela manhã: neste novo mundo devastado e arruinado, a vida não vale absolutamente nada, muito menos a amizade de pessoas influentes que brincavam de “construtores” da sociedade.
Sentindo profunda compaixão, o maçom a carrega em seus braços e a leva de volta ao chefe. Enquanto caminha de volta, os saqueadores brincam com ele, usando fios elétricos para chicotear suas nádegas e costas. O chefe ordena que ele a ponha de volta no carro-leito, reservando-a para mais tarde. Ao entrar, George vê os outros chefes, dois homens altos e corpulentos. Os dois estão folheando revistas pornográficas enquanto fumam cigarros, algo raríssimo na cidade atual. O maçom deixa a mulher sobre um leito no fundo do vagão e a cobre com um velho cobertor, acariciando seus cabelos. Olhando mais perto, ele vê várias marcas de mordida em seus ombros, mais um sinal de violência e perversão.
Ao sair do vagão, George vê os saqueadores se organizarem. Eles estão se preparando para sair e todos portam suas armas rudimentares. Provavelmente vão atacar os peregrinos nas ruínas ou grupos solitários abrigando-se em prédios abandonados. O chefe que lhe dava ordens vai sair também e o deixará sozinho no povoamento. Enquanto os observa, George os ouve se chamarem por codinomes grotescos e até infantis, diferente de nomes comuns de gente da qual as pessoas normais geralmente se chamam. Eles se referem ao seu chefe pelo irrisório apelido de “Esmagador”.
Um dos chefes sai do vagão e nota que George está pelado. Ele entende que ele precisa trabalhar durante um dia para recuperar sua cueca, mais um dos jogos sádicos daqueles animais. Ele o chama e então diz:
- Está vendo aquele barracão ali? É o sanitário coletivo do povoamento. Pegue uma pá e uma carriola, você vai limpar a fossa.
Os outros escravos observam de longe George caminhar até o sanitário, já sabendo qual será sua próxima tarefa. Eles lhe indicam onde encontrar a pá e a carriola, e logo se afastam para não dividir a tarefa com ele. George abre a tampa da fossa e encontra uma poça escura de pura imundície. Baratas caminham nas paredes do buraco e ele vê vermes se moverem entre os excrementos. Com o terrível cheiro subindo à suas narinas, novamente ele sente náusea.
Ao golpear a matéria fecal com sua pá, gotas de sujeira espirram em suas pernas. O nojo tira-lhe a concentração e ele se desequilibra, quase caindo no buraco aberto à sua frente. Retirando a pá, ele começa a encher a carriola lentamente, controlando a tontura em sua cabeça. Um dos saqueadores, de codinome “Coelho”, aparece e lhe indica o local para descartar a sujeira. Escoltando-o para que o maçom não fuja, o homem o leva para fora do povoamento, passando pelos cadáveres mutilados, e chegam a um pequeno córrego cheio de lodo e vegetação alta. Aparentemente a água não flui ali há anos.
Ele despeja a sujeira ali e alguém chama o saqueador de volta. 
- Deixe-o. Ele não vai fugir, estou de olho nele. 
- O Esmagador saiu. Onde está a novata? – pergunta Coelho.
- Dentro do carro-leito. Nem pense nisso, a não ser que queira seus pedaços pregados na entrada.
- A escrava nos dormitórios está muito velha, não me excita mais. Eles saíram ontem e trouxeram apenas uma. Se continuar assim vou ter que caçar outra mulher para me satisfazer.
- Cuidado com seus ataques de violência. Se a velha morrer, o pessoal ficará muito irritado. Você se lembra do último linchamento, não é?
Os dois olham para uma cabeça decepada e espetada numa lança. O crânio está todo esmagado por pancadas de martelo. 
 - Fique de olho nele. Vou ao dormitório e já volto.
George retorna ao povoamento e continua retirando a sujeira lamacenta da fossa, repetindo o trajeto várias vezes. Enquanto caminha de volta ao córrego, ele ouve gritos abafados atrás dos containers. Deixando a carriola no chão, ele caminha lentamente pelas sinuosas passagens entre as carcaças de carros e os containers. Os gritos estão mais audíveis, parece que alguém está chorando. Ao passar pela pilha de carcaças, ele vê o tal Coelho pressionar uma mulher de cabelos grisalhos contra a parede de aço do dormitório. É uma mulher de aproximadamente quarenta anos, cabelos escuros e rosto machucado. Ela está completamente nua, de costas para Coelho, enquanto ele a pressiona violentamente com a mão direita em sua vagina e a mão esquerda em sua boca, tampando-a. Ele gesticula seu quadril, penetrando-a com força, quando percebe a presença de George.
Coelho rosna para ele, exibindo seus dentes marrons. Ele solta a mulher e ela corre, chorando com as mãos no rosto. Caminhando em direção a ele com a calça abaixada e o pênis ereto, ele o encara ameaçadoramente como um esquizofrênico sem a camisa de força. George recua mas Coelho o subjuga, segurando seu braço e batendo seu corpo contra a parede de aço. Segurando-o de costas para ele, o saqueador o ameaça dizendo:
- Se disser a alguém o que viu aqui eu... – o maçom sente o pênis do homem tocá-lo atrás de si – Você será a próxima escrava sexual do povoamento. 
Apavorado, George responde:
- Eu não direi nada!
O saqueador o solta e o maçom corre, voltando logo seus afazeres. 
Golpeando as fezes com a pá freneticamente, ele parece esquecer a náusea e a imundície. Os saqueadores não rejeitam nem os homens! Um dos escravos vê que ele caminha apressado com a carriola e o pergunta:
- Você está bem?
George o ignora e continua caminhando, apressado e perturbado. 
Ele faz o trajeto várias vezes, coletando os excrementos e despejando-os no córrego. Passados alguns minutos, ele chega ao córrego e despeja o material normalmente quando algo se mexe entre a vegetação alta. Pensando serem apenas ratos, ele ignora mas novamente a vegetação se mexe e ele vê o que parece ser um braço. O saqueador na entrada do ferro-velho está distraído e então George aproveita para descer e investigar.   
Desviando da matéria fecal que ele despejou, o maçom se esgueira entre a vegetação e chega ao nível mais baixo do córrego. Seus pés descalços afundam no lodo, ele abre caminho no capim alto e encontra mais outra coisa que o aterroriza. Além da vegetação estão dezenas de cadáveres lançados ali para apodrecer. Ele vê homens, mulheres e até cães, e pela aparência dos homens eram todos escravos, vestidos com apenas as roupas de baixo em suas cinturas. George vê mulheres de todas as idades, jovens e velhas, mortas ali com feridas horríveis em seus rostos e suas genitálias. São doenças venéreas, irritações, bolhas e infecções severas na pele, causando-lhe nojo.
Novamente ele vê a movimentação. Afastando o capim do caminho, ele finalmente encontra quem estava mexendo-o, mas para seu infortúnio ele desejaria que nada daquilo fosse real. George encontra um homem moribundo, coberto de feridas de cortes e golpes. Ao olhar seu rosto ele quase desmaia, é o Detetive Jensen.
- Não... Não, não, não, não...!
Rapidamente George segura sua cabeça e a ergue, o rosto de Jensen está lavado de sangue. Seu corpo está despido como todos os outros, os ferimentos em seu corpo tem marcas violentas. Atordoado, o saqueador tenta ficar acordado mas a dor é forte demais.
- Jensen, acorde! Acorde, seu desgraçado!
O saqueador abre os olhos e enxerga alguém segurando-o, é George. O homem percebe que o maçom está totalmente nu enquanto recupera a consciência.
- Escravo... – ele tenta rir, zombando-o. – Eles te pegaram, não é?
- O que fizeram a você? Por quê...? – George não entende, até ontem Jensen era o líder do bando nas ruínas.
- Você sempre foi um escravo, afinal.
O detetive ainda está zombando dele. George está confuso, as coisas deram uma reviravolta e o deixou perdido. Foi por isso que ele não viu Jensen em lugar algum no povoamento. Ele se sente injustiçado, por Jensen ele se arriscou caminhando entre os saqueadores, por sua obsessão, sua resposta, sua implacável busca pelo motivo de ser abandonado e deixado para trás. Por essa razão ele começou esta aventura, a obcecada busca de um homem ressentido. 
- Não morra agora, maldito! Mais membros sobreviveram? É só você que sobrou? Responda-me!
Jensen parece se deliciar ao vê-lo implorar. Um último regozijo para o homem prestes a morrer.
- Nós nunca o consideramos um dos nossos... – ele se interrompe para tossir sangue. – Um homem patético, arrogante e vazio sem nada a oferecer.
George se indigna.
- Eu jurei minha vida por vocês!
Rindo, o saqueador responde:
- Os saqueadores vão estuprá-lo... Isto me deixa feliz! – Jensen está muito mal.
- Onde fica o abrigo? Eu tenho que ir para lá. Eu preciso!
- O abrigo...? – ele sorri. – Você não vai sobreviver. Você será violentado, agredido, ficará doente, a radiação entrará em você, contaminando-o. Você definhará pela dor de um agonizante câncer...
George ouve apenas incoerência.
- Diga-me onde está o abrigo! 
- Saber não mudará nada. Você é só mais um escravo dos saqueadores, seu destino já está selado.
- Responda-me! – vocifera ele, com ódio. 
Jensen para de sorrir e o encara seriamente. E então responde:
- Os maçons são a elite da sociedade, os mantenedores, os regentes, os construtores... Quando esses tempos turbulentos passarem, quando o espírito da morte voltar ao abismo, levando de volta consigo os demônios pelos portões do inferno, o Grande Oriente Maçônico retornará, reavivando a sociedade das pragas, das guerras, da fome e da destruição.
George não compreende.
- Responda-me, eu suplico, eles ainda estão vivos?
- Eles repousam, esperam, meditam, pacientemente aguardando o momento de sair e reconstruir a sociedade das cinzas. A Maçonaria reinará novamente.
Então o detetive Jensen tem espasmos e, sufocando com o próprio sangue, morre nos braços de George. Ele não consegue acreditar, as lágrimas de desespero e revolta formam-se em seus olhos e ardem de ódio ao escorrerem por seu rosto. George está sozinho de novo, está vazio, ele sente o fardo pressionar-lhe as costas ao perceber que sua busca ainda não chegou ao fim. As respostas fogem dele com o último suspiro do detetive tornado saqueador, espancado e lançado no córrego para morrer. A primeira e última pista que ele tinha sobre o paradeiro dos antigos membros da loja maçônica morre. Igual a todo o resto em sua vida.
Após o dia de trabalho, os saqueadores o agarram e o lançam na piscina da qual ele usou para lavar a mulher. Seu cheiro é insuportável, eles o obrigam a se lavar naquela água suja durante o frio entardecer. Tremendo o tempo todo, ele é levado de volta à jaula e os saqueadores o trancam lá dentro junto com os outros escravos. 
O Esmagador aparece em frente à jaula e diz:
- Parabéns, você mereceu receber sua cueca de volta. Pegue-a.
Ele a joga aos seus pés. Ainda tremendo e abraçando a si mesmo para combater o frio, George se agacha e a veste. Ele está calado, não disse uma única palavra desde que entrou no córrego. Os escravos se intrigam e o puxam para perto de uma fogueira no meio da jaula, ajudando-o a se aquecer. 
- Você está bem? – pergunta um deles, um pouco mais velho do que o rapaz. – Ouça, cara. Aqui nós nos ajudamos. Você não pode se isolar, estamos aqui para ajudar também.
George não diz nada, apenas observa o fogo enquanto se encolhe de frio. 
Após cinco dias cativo no povoamento dos saqueadores, George vê muitas coisas terríveis. Os homens pegam um dos escravos e o lança dentro de um fosso, é uma arena improvisada para diverti-los com espetáculos sanguinários. Deixando-o sozinho e desarmado, eles soltam cães raivosos lá embaixo para apanhá-lo. Vê-lo morrer daquele jeito, mordido e estraçalhado pelos cães, foi a coisa mais cruel que ele viu durante todo o tempo em que ele esteve vivo nas ruínas. 

Seu coração fica mais frio. Os escravos vivem com medo mas George sente apenas desprezo pela vida, pelo mundo, por tudo o que a humanidade provocou sobre ela mesma, e agora pessoas como ele tem que suportar as consequências. George sente indiferença, a crueldade, as mortes e a dor não lhe importam mais.
Onde é que ele veio parar? Ele era um homem bem sucedido, rico, tinha dinheiro para comprar o que quiser, fazer o que quiser, ir aonde quiser. Tinha empregados, carros luxuosos, uma casa grande, e onde é que ele está agora? Um povoamento improvisado num ferro-velho, habitado pelos homens da pior espécie, animais atrozes e selvagens em forma de seres humanos. 
A sociedade fez um excelente trabalho com sua hipocrisia ideológica. Por séculos se empenhou em convencer os fortes de que o uso da força é errado e passivo de castigo. Criou-se a moralidade e a consciência, os valores foram invertidos, tudo se transformou. Os feios tornaram-se belos, os ignorantes tornaram-se inteligentes, os tolos em sábios, a plebe em nobreza, o pobre em rico, o fraco em forte. E os verdadeiramente belos, inteligentes, sábios, nobres, ricos e fortes? Lançaram-nos ao constrangimento, à vergonha, à humilhação. A autoafirmação dos realmente capacitados e talentosos tornou-se digno de recriminação. Declarar-se talentosamente forte era sinônimo de preconceito, de arrogância, de soberba. Os valores foram invertidos, tentaram enjaular o homem belo, inteligente e forte com o uso de ferramentas institucionais - religião e política - e criaram sociedades baseadas na igualdade, isto é, na elevação dos medíocres e no constrangimento dos fortes. Esta foi a vitória dos fracos, os mesmos incapazes de combater abertamente os fortes e recorrendo a técnicas covardes, difamando-os com acusações fantasiosas quanto à sua crueldade e violência. Os fracos venceram, afinal. Deram-lhes direitos e leis, benefícios e privilégios, que até então apenas os nobres e governantes tinham.
Mas nem mesmo eles contavam que algo impensável durante tanto tempo mudaria tudo.
A guerra nuclear veio e reajustou as leis da natureza, voltando-a ao seu estado original. Hoje os fortes novamente governam, os fracos são perseguidos, é a clássica relação entre predadores e presas. Não é assim no mundo animal? Que presunção é esta do homem em pensar que é superior, declarando-se arrogantemente melhor que os animais por ser inteligente? A guerra nuclear alterou o mundo, o reconfigurou ao seu estado original, hoje os fortes verdadeiramente governam sem a máscara do escrúpulo inventada pelo conceito de má consciência. 
E tudo graças a uma maldita guerra nuclear.
Para a infelicidade de George, ele não está no lado dos vencedores. Não desta vez, não novamente, não como era antigamente antes da primeira ogiva explodir. Ele sente o ressentimento típico daqueles que antes tinham tanto e hoje não tem nada, que antes se fartavam e hoje dormem famintos, que antes mandavam e hoje são escravos de seus inexoráveis senhores. A vida lhe deu tudo para depois tirar, ela deve estar rindo dele agora enquanto ele limpa as fossas e revira o lixo em busca de comida.
A cada dois ou três dias os saqueadores voltam ao povoamento com vários objetos valiosos. Eles trazem roupas, comida enlatada, água em garrafas e cobertores. Os escravos sabem de quem são aquelas coisas, os saqueadores as roubaram dos peregrinos das ruínas. É assim que eles sobrevivem, matando, roubando e tomando à força. Nada daquilo é repassado aos escravos. Enquanto aqueles bandidos passam a noite aquecidos e alimentados, eles lutam constantemente contra o frio vestidos em seus trapos e cuecas, se aquecendo encolhidos dentro da jaula. Os saqueadores geralmente os provocam, oferecendo cobertores se eles lutarem até a morte dentro da arena. Esse tipo de abuso é normal, o maçom não se importa se viver ou morrer.
Certo dia o ferro-velho recebe visitantes. George está pregando os telhados quando homens estranhos entram, acompanhados dos chefes locais. São saqueadores também, mas aqueles são diferentes. Eles têm o rosto pintado de azul, como guerreiros bárbaros. É um sinal de identificação entre eles, o que os difere das demais “tribos” de saqueadores na cidade. “Esses assassinos psicopatas pensam que são guerreiros tribais?!” pensa George.
Aparentemente as duas tribos são aliadas. É engraçado pensar como a raça humana voltou a viver primitivamente assim. Os visitantes trazem objetos valiosos e negociam com os chefes. George assiste de longe eles fecharem um acordo após uma longa negociação. O Esmagador se aproxima dele e ordena:

- Ei, você! Desça aqui!
George desce do telhado e o Esmagador diz a um dos visitantes:
- Este é novo aqui. Aprendeu rápido a trabalhar e sabe consertar bem as instalações.
O visitante, um homem alto e corpulento, com o rosto pintado de azul até a barba, responde:
- Ele ainda é saudável?
- Não se preocupe, Lunático. Ele é jovem e ainda está saudável. – assegura o chefe. 
- Tudo bem. Eu vou levá-lo.
O tal “Lunático” fecha o negócio. Os saqueadores amarram os pulsos de George com correntes e vestem uma coleira em seu pescoço, passando a corrente em uma argola soldada na coleira. Pela primeira vez durante as semanas que ele ficou ali, os saqueadores o vestem com sapatos, calças e casacos, como se estivessem embrulhando-o de presente. 
O maçom vê o pagamento, ferramentas, baterias de carro, galões de gasolina e comida em conserva em potes de vidro. É isso o que sua vida vale? Comida em conserva em potes de vidro?
 Ele é levado pelos visitantes com os rostos pintados de azul. Enquanto caminha para fora do povoamento, os escravos restantes lhe acenam, se despedindo tristemente com lágrimas em seus olhos. George caminha entre os saqueadores e encontra Coelho, que o encara com perversidade e satisfação, relembrando-o de seu incidente entre os containers.
E assim George deixa o ferro-velho, sem saber por que mataram o Detetive Jensen, sem obter as respostas que tanto desejava, sem jamais compreender o uso de tamanha crueldade, sem jamais entender a terrível desgraça que a vida lhe reservou encerrando-o naquele lugar deplorável. O maçom vai embora, mas tudo vai ficar exatamente o mesmo. Os escravos continuarão sendo oprimidos, o Esmagador continuará estuprando sua escrava sexual, os saqueadores continuarão roubando e matando. Nada mudará realmente. 
A satisfação de George dura pouco. Ele finalmente saiu do ferro-velho, mas irá para outro povoamento escravista para ser explorado novamente. Mas pelo menos está vivo. Ele se felicita. Enquanto estiver vivo ele continuará sua busca. Ele procurará as respostas, e enquanto procurá-las ele encontrará seu objetivo, e quando encontrar seu objetivo ele contemplará a razão de mantê-lo vivo. George vai continuar procurando o abrigo, e quando encontrá-lo não haverá abrigo que proteja quem estiver lá dentro.