quinta-feira, 2 de março de 2017

Trisha, a Terceira Voz




Em frente ao espelho de lâmpadas
Dentro do camarim da banda
Em meu rosto eu passo maquiagem de vários tons
E em minha boca passo um requintado batom

Minha pele negra fica tão bonita maquiada
Meu cabelo black power é tão lindo penteado
Meus longos brincos realçam meu rosto
E meu vestido florido define o meu corpo

Hoje será minha grande noite
A noite da minha estreia
Finalmente irei cantar
Meu sonho irá se realizar

Alegria, alegria e alegria
Meus colegas de banda esbanjam energia
Uns se drogam, sem conter a excitação
Todos estão felizes pela nossa apresentação

Eu nem sei mais o que é ser feliz
Ultimamente venho tendo um sonho estranho

Sonho que estou em um mundo cinzento
Me arrastando em um solo lamacento
De minhas roupas saem insetos pretos
E na lama se arrastam vermes marrons e nojentos

E mesmo acordada tenho alucinações
Às vezes em meu quarto vejo aparições

Vermes grotescos
Sonhos bizarros
Insetos pretos
Infestam o meu quarto

Tudo isso desde que os sonhos começaram
Estou me tornando apática

Subo ao palco e vejo toda a banda
É uma excelente banda de jazz
Mas, dirigindo-me ao fundo do palco
Fico atrás de todos
Pois do coral de três mulheres
Sou a terceira voz

Todas cantam muito bem
Mas me sinto excluída por minhas parceiras
Os holofotes quase nunca iluminam a gente
Mirando sempre nos músicos da frente

São dois cantores principais
Os dois são um casal
O marido toca guitarra enquanto canta em dueto
E a esposa dança sacudindo seus longos cabelos

“O sonho cinzento”
“Se tornará o seu lamento”

Está sumindo gente aqui

A primeira voz, que sempre abusava de mim por eu ser baixinha
Foi encontrada morta no porta-malas do carro, ao lado da pista
O baixista, que não quis ficar comigo por me achar feia e burra
Morreu ontem, vítima de overdose no quarto de uma prostituta

O rapaz do saxofone, um talentoso músico e artista
Foi preso por agredir e tentar violentar a própria prima
O baterista, um homem forte que disse que nunca me beijaria
Foi espancado e morto em um bar, envolvido em uma briga

“Os sonhos”
“Os sonhos estão me atormentando”

O guitarrista, um rapaz atlético que caçoava da minha apatia
Foi atropelado e deixado sem socorro no meio de uma avenida
Coitado daquele idiota
Acho que vai passar o resto da vida em uma cadeira de rodas

A namorada do tocador de trompete veio do Sul
Uma moça nascida em uma família de praticantes de vodu
Espalhou para todos que eu era uma bruxa possuída por espíritos das profundezas
Morreu esquartejada, durante um sinistro ritual de magia negra

“Minha cabeça”
“Estou perturbada por imagens grotescas”

O tocador de trombone estava desaparecido há quinze dias
Deixando muito preocupada a sua família
Foi encontrado no mato, morto com vinte e oito tiros
Não sei por que, mas o restante da banda não quer mais falar comigo

Ora, mas que surpresa
Hoje chegou a capa do disco LP
E na foto da banda ainda contém os antigos membros 
E também estou nela, parada ali atrás sem sorrir

Queria que minha mãe me visse agora
Ela nunca quis que eu deixasse o Louisiana
Queria que eu ficasse na igreja, cantando no louvor
Tendo meu talento desperdiçado em uma cidade do interior

Lembro quando ela me ligou e disse:
“Minha filha, volte para casa”
“Sua família e a igreja te amam”
“Você nunca devia ter abandonado a Jesus”

Talvez eu devesse lhe fazer uma visita agora

Enquanto eu estava sentada, olhando fixamente para a parede
O cantor líder se aproxima, com receio do que lhe acontecesse
Ele me diz que em sua banda eu não iria mais cantar
E que eu deveria imediatamente deixar aquele lugar

“A lama está sob minhas roupas e me contamina”
“Sujando meus seios, minha boca e minha vagina” 

Algo acontece com o cantor
E, tirando-me de meu estado catatônico
Ele beija os meus pés e se humilha
Dizendo “eu te adoro, ó minha deusa-rainha”

Então o cantor se ajoelha no chão 
E estendendo-lhe o braço ele beija a minha mão

Queime, estúdio, queime!
O fogo queimando é tão lindo
Tudo se distorce e derrete com as chamas dançantes
Seu brilho e poder são hipnotizantes

A fumaça sobe e começa a me sufocar
Meu rosto está estático, mas minha alma quer gargalhar

Os instrumentos queimam
As roupas de apresentação queimam
Os enfeites de palco queimam
Os discos, painéis e gravações queimam

A cantora, líder da banda, aparece de repente
E me vê ali entre as brasas ardentes
Mesmo em perigo, suada e suja ela é linda
Como eu tinha inveja dessa mulher magnífica

Mas ela sempre foi bondosa comigo
E sempre me apoiou quando eu cantava no trio
Uma humildade incompatível para uma estrela da música
Inocente demais para suportar os sanguessugas da indústria

Talvez seja por isso que ela nunca será uma superstar

Me guiando para fora do estúdio
Ela me leva para um local seguro
“Trisha, você está bem?” ela pergunta
“Sim” respondo um pouco confusa

E, preocupada com seu marido
Ela pergunta gritando em meu ouvido:

“Meu marido, você sabe onde está o meu marido?”
Eu aponto para o estúdio
E respondo:
“No fogo”

De repente ouvimos o forte som
E todo o estúdio vai aos ares em uma enorme explosão
Então a cantora grita em prantos
E com as mãos no rosto se desaba chorando

Parece que você não está tão bonita agora, não é?

Dias depois, um programa de TV exibe a matéria
A cantora, ainda traumatizada pela tragédia
Diz que não pretende cantar mais
“Nunca mais”

“Ainda sinto o arrastar dos vermes”
“Insetos pretos estão sob minha pele”
“A lama do dia cinzento me enfraquece”
“O sonho, em trevas, me enlouquece”

Saindo de meu devaneio, eu percebo
Meu parasita mental me falou
Dos treze membros da banda inteira
Parece que fui a única que sobrou

A última membra
Que se tornou a primeira
A única sobrevivente do incêndio atroz
Trisha,

A garota da terceira voz


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