sexta-feira, 24 de abril de 2015

Necromancia




[Trecho do meu primeiro livro]

O ritual começa diante dos olhos dos três. O líder alerta o homem dizendo:
- Para se reanimar um cadáver deve-se roubar uma alma do mundo espiritual e trazê-la de volta para a vida. Existem consequências irreparáveis para aqueles que ousam retomar o que a própria morte tomou. Talvez a mulher que você ama não volte do jeito que a conheceu, talvez a alma de outra pessoa se apodere de seu corpo. Está disposto a correr este risco?
- Hoje eu sei que existe um destino pior do que a morte, é a própria vida, a vida fria e vazia na ausência de quem você ama. A morte foi injusta ao tirá-la de mim, esta noite eu a trarei de volta.
O viúvo está abatido e todas as suas palavras são de tristeza e dor. Os necromantes tocam os tambores e dançam ao redor da fogueira, o homem continua debruçado ao lado de sua mulher em silêncio.
O líder se aproxima da mulher morta sobre a cama de pedra, o corpo dela está embalsamado e perfumado. O necromante carrega uma série de objetos ritualísticos e frascos com os mais variados conteúdos. Enquanto os derrama sobre o cadáver, ele diz:
- Mel para que sua alma deseje os sabores da vida. Leite para que sua alma deseje os alimentos da terra. Sangue para que os jaguares a conduzam de volta para o mundo dos vivos. Saliva para que seu corpo tenha saúde. Água porque a água é a origem de toda a vida. Finalmente o sangue de teu marido para lembrar que foi o seu eterno amor que a desejou de volta, e que nem mesmo a morte foi capaz de separar estas almas.
O homem estende seu braço e o necromante corta seu pulso com uma adaga cerimonial. O sangue quente escorre pelo cadáver, o viúvo não hesita em momento algum.
A fogueira se intensifica e forma uma chama descontrolada. O súbito clarão assusta os necromantes e o terrível calor faz eles se afastarem. Alguém aparece no meio do fogo, agachado e imóvel com a aparência de uma sombra negra intocada pelas chamas. Aderotes se surpreende ao ver que o fogo é inofensivo e que a sombra se levanta e caminha normalmente como se nada pudesse lhe fazer mal.
A sombra caminha em direção ao corpo sobre a pedra, no fogo ela é visível, mas assim que ela deixa a pira ela desaparece totalmente. De repente a mulher morta abre os olhos, o guerreiro não consegue acreditar no que vê, ela está viva?
- Meu amor, você voltou?
O homem está prestes a abraçá-la quando o necromante ordena:
- Não toque nela!
A mulher tem um olhar vazio e parece não notar a multidão à sua volta. Ela se levanta lentamente, seus movimentos são desordenados e confusos aparentando estar ainda muito fraca. Ela caminha em espasmos a cada passo, seus ossos estalam e parecem estar se estilhaçando. Ela passa pela multidão sob seus olhares perplexos e sob o espanto de Aderotes, que ainda não acredita que uma mulher morta vive novamente. Finalmente ela sucumbe às próprias forças e desaba no chão coberto de grama e terra úmida.
- Não! – o homem grita e olha para o necromante, ele o autoriza e então o homem corre para ajudar sua mulher. – Meu amor, não vá! Eu estou aqui, tudo vai ficar bem...!
O homem chora novamente e suas lágrimas caem no rosto de sua esposa. Ela ainda está inconsciente quando de repente abre os olhos, grita ferozmente como um jaguar faminto e o morde no ombro direito, fazendo-o se contorcer de dor. Os necromantes tentam livrá-lo e se espantam ao ver que os olhos dela estão negros como a face da morte. Eles a seguram pelos braços, mas ela se desvencilha e corre para a escuridão da selva.
O necromante aparece e fala ao viúvo:
- O equilíbrio entre a vida e a morte foi abalado. As forças da natureza foram alteradas, o que você conhecia por “vida” não é o que acontece aqui, voltar da morte não é como se curar de uma doença.
O rugido feroz reverbera entre as árvores escuras que cercam a tribo. Eles sabem que não foi um jaguar, todos se entreolham e temem a mulher que voltou da morte.
- Mas que aberração maldita é esta...?! – exclama Gualpa.
Alguém grita na penumbra da fogueira e é arrastado pelos tornozelos para a selva, a vítima arranha a terra molhada na vã tentativa de salvar sua vida. Eles ouvem os gritos de pânico e dor em meio aos rugidos ferozes da mulher. Então tudo se silencia novamente.
- O que você fez com ela? No que ela se tornou?
A luz dourada da fogueira ilumina um semblante enigmático do necromante. O rugido feral ressurge e outra pessoa é arrastada para a selva, sendo morta na escuridão. O caos então domina o lugar e todos correm para suas tendas. Em pânico eles percebem que a mulher também está lá dentro e faz outras vítimas. 
Um a um começam a cair, pessoas são pisoteadas, mulheres se apavoram, crianças choram, alguns apunhalam uns aos outros com adagas e machados pensando ser a mulher. O pandemônio se alastra em meio a gritos e sangue derramado, então o necromante diz:
- Matem com fogo!
As pessoas apanham toras flamejantes da fogueira e queimam suas mãos, outras tentam acender tochas e são mortas por mordidas no pescoço. A mulher corre de tenda em tenda, se esquiva dos necromantes e se esconde na escuridão da selva até atacar de novo. Eles lançam as tochas no telhado das tendas e queimam uma a uma sem ter certeza se a mulher está lá dentro ou não. Logo toda a tribo começa a arder em chamas e a fumaça sobe ao céu escarlate.
Um dos necromantes se levanta do chão, olha para cima e exibe seu rosto ensanguentado. Em alucinação ele diz:
- Vejo espíritos ceifeiros voando pelo céu... – o homem olha para seus braços e peito e então continua. – Vejo cristais brilhantes como o vidro envolver meu corpo... O Néctar da Morte, tão belo, tão maravilhoso...
A mulher pula em suas costas e o morde, fazendo o seu sangue jorrar.
Os sobreviventes correm aos pés do líder e suplicam:
- Salve-nos! Quebre este feitiço antes que pereçamos!
- Eu não posso fazer nada. A fúria da morte voltou no corpo dela, as almas vingativas dos condenados se apoderaram da mulher. Nós abrimos um elo entre duas dimensões que não deve existir, o mundo dos vivos e o castigo dos condenados. Cruzamos a última fronteira, o limite do proibido, não há mais esperança agora.
A tribo está queimando e suas labaredas se erguem ao céu. Iris chama o guerreiro e diz:
- Vamos sair daqui, depressa! – os dois se soltam das cordas.  Gualpa se surpreende e os chama:
- Ei! Não me deixem aqui! Soltem-me!
A mensageira está preparada para fugir, mas Aderotes está imóvel olhando para a tribo em chamas. O caos ainda impera e as pessoas correm por suas vidas, a mulher está brincando com eles.
- O que está fazendo?!
O guerreiro está parado, olhando fixamente para a tribo. Iris protesta, mas ele ignora.
Os gritos e a correria são desconcertantes, ele vê as atrocidades que a mulher feral fez em suas vítimas no chão. Ele espera pacientemente quando o rugido sobre-humano surge em suas costas e, com a rapidez de uma flecha, a mulher pula para atacá-lo. Ainda mais rápido, Aderotes se vira e, com apenas um braço, a segura pelo pescoço. A mulher debate-se como uma cobra exibindo seus dentes podres e ensanguentados. Ele vê pedaços de pele presos em sua mandíbula carnívora.
A mulher está nua e tem um corpo muito sensual apesar de sua atual aparência. Ela arranha e chuta o guerreiro, mas não consegue se soltar. Então a voz de Inago sussurra em seus ouvidos.
“A musa da morte, a mulher que voltou do além túmulo para trazer desgraça e terror. Eu conheço teus pensamentos, guerreiro, vi como olhaste para ela. Apesar de querer matá-la, tu a desejas. Adúltero, assassino... Está explicado porque o viúvo a quis de volta, seu corpo formoso provoca cobiça em todos os homens, até naqueles que querem destrui-la”.
Aderotes sai do transe e com ódio quebra o pescoço da mulher. Em seguida a lança na ardente pira de onde sua alma saiu. Ela cai nas brasas flamejantes e o fogo se intensifica, a mulher se contorce e esperneia em grande agonia, rugindo com a fúria de cem jaguares. Os sobreviventes veem, estarrecidos, as silhuetas negras das almas se levantarem de seu corpo queimado e voar pelo céu, uivando de dor e lamentando retornar ao castigo dos condenados. As almas sobem contorcendo-se, visíveis apenas no fogo e invisíveis fora dele.
O uivo fantasmagórico das almas cessa e o fogo perde a intensidade. Eles olham ao redor e veem a carnificina deixada pela mulher feral, o banho de sangue impressiona com grossas manchas de líquido escarlate e carne dilacerada. O silêncio volta a dominar a noite quando o necromante diz:
- Ousamos roubar sua alma do mundo espiritual e arrancá-la das mãos da morte. Criamos uma fenda entre os mundos para resgatá-la, mas as almas condenadas viram esta fenda e tentaram atravessá-la também. Foi um risco alto demais.
“Trouxemos sua alma de volta à vida, o além túmulo provou ser um lugar incapaz de separar este imenso amor. O marido daria tudo para ela voltar, sacrificando inclusive sua vida. A esposa ouviu esta oferta do outro lado dos portões da morte e a aceitou. A possibilidade de viver novamente com seu amor era real e irrecusável. Mas os condenados também ouviram e ninguém que experimenta o castigo no mundo espiritual volta o mesmo. As almas se apoderaram de seu corpo formando uma amálgama espiritual, os anos e rancor viram no corpo físico a possibilidade de vingança contra todos os vivos, os mesmos que lhes lançaram no tormento e lhes fizeram sofrer. O corpo da mulher ficou profanado e imundo, ela teria desejos fisiológicos abomináveis, a fome pela carne e pelo sangue, a necessidade insana de devorar os vivos e roer-lhes os seus ossos. Este é o chamado Ritual da Zumbificação, o corpo ressuscita, mas torna-se uma aberração execrável contra as leis da natureza. Se esta mulher tivesse sobrevivido, em semanas o veneno se formaria em sua saliva e todos aqueles que fossem mordidos e sobrevivessem seriam infectados pela maldição dos mortos-vivos”.

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