sexta-feira, 17 de abril de 2015

Fragmento 3




[Trecho do meu livro. Tema: Pós Apocalipse]

A mulher observa a paisagem sob o pôr do sol ao longe. Da calçada da rua, em frente a uma cerca de tela, ela admirava com olhares nostálgicos o vasto campo verde do clube onde as crianças costumavam jogar futebol, as avenidas ao longe onde antes ficavam congestionadas de carros, os morros que antes já foram verdes e arborizados, e o edifício da velha prefeitura heroicamente ainda de pé. Era a paisagem de sua cidade, ou pelo menos, do que sobrou dela.
Ela já havia perdido a noção dos meses ou das estações, mas a julgar pelo frio, era inverno e as nuvens vermelhas do poente moviam-se imperceptivelmente com os ventos gelados. Dolorosa nostalgia.
Em poucos minutos ia anoitecer e as ruas ficariam escuras. Ela sentia falta da eletricidade, do tempo em que quando anoitecia os postes acendiam as luzes, algo trivial e pateticamente óbvio. Ela jamais perdeu um segundo pensando que tudo o que conhecia, sua ostentação e padrão de vida, das maiores às menores coisas, simplesmente... desapareceria. Mas os noticiários avisavam, informavam, preveniam e advertiam e, ocupada demais com seus assuntos femininos e luxos pessoais, ela sempre ignorou.
Quando incomodada com as tensões globais que alarmavam o mundo, ela sempre respondia com a mesma resposta antes de excluir essa estúpida preocupação de sua cabeça e continuar com sua vida vazia e materialista: "o mundo não vai acabar!"
No passado, antes da guerra, ela passava todos os dias por essa rua e sequer notava a maravilhosa paisagem do poente sobre o campo verde. Quando criança ela frequentava o clube, nadava na piscina, comia na lanchonete, brincava de ginástica e às vezes passeava no vasto campo. O tempo passou e, dirigindo seu carro com o teto solar aberto, óculos escuros no rosto, falando ao celular e ouvindo o rádio, a lembrança do clube era mais uma das memórias infantis que não compatibilizavam com o estilo de vida de uma mulher adulta, com sua imagem, sua beleza, seu namorado mais bonito e suas roupas mais caras. Tudo isso é passado, tudo isso se foi, e o que sobrou?
A mulher continua observando a paisagem e atrás dela o homem arruma suas coisas na mochila. Ele guarda sua comida enlatada vencida e dobra suas roupas lavadas num córrego lodoso. Está anoitecendo e tudo ficará escuro, ele está preocupado em achar um abrigo e tem pressa em continuar caminhando, ela porém está cansada e pediu para pararem um pouco. Sem saber o porquê, o homem a vê contemplar a paisagem do poente com olhar distante e cheio de lágrimas.
Há um mês os dois fugiram de um povoamento na periferia da velha cidade. A mulher já estava lá quando ele chegou. O homem foi capturado por escravistas, homens com armaduras improvisadas, facas e lanças artesanais, alguns portando armas de fogo, e foi levado ao povoamento escravocrata. Ele ia ser vendido a outros povoamentos mas acabou por ficar no local, condenado a trabalhos forçados vestindo apenas uma faixa de roupa em sua cintura. A mulher era a escrava sexual dos chefes do povoamento, antes de fugir ela já havia sido estuprada oito vezes e muitas outras vezes antes de a comprarem de outro lugar. Fosse frio ou calor, ela era mantida com roupas leves, sensuais, e era obrigada a servi-los independentemente da condição física. Muitas vezes ela tinha fome e frio, e os chefes a alimentavam com os restos de seus banquetes, geralmente comida roubada de peregrinos solitários nas ruínas da cidade.
 O homem, jovem, belo e fisicamente fraco, ia ser estuprado também para a surpresa de todos. Os chefes, todos mais altos e fortes, cobiçaram-no após uma noite de bebedeira e só não conseguiram submetê-lo porque estavam muito bêbados para segurá-lo. A desesperada intenção de fugir veio depois que os chefes entraram em sua cela e deixaram a porta aberta. Ele passou por eles, rápido como um rato, e correu totalmente nu para o portão principal que, para sua sorte, não havia guardas protegendo-o. Antes de pular alguém o segurou pelo braço e o chamou, era a mulher. Ela lhe mostrou uma mochila cheia de roupas e comida e prometeu entregar-lhe se ele a levasse junto. O homem concordou e ambos pularam o portão, correndo pela noite e desde então fugindo pelas ruínas da cidade.
"Que reviravolta infeliz teve a minha vida" pensa a mulher. Quando ia para festas ela era cobiçada por homens mais velhos e ricos, e escolhia quem queria, o mais bonito, o mais alto, o mais forte, e os demais ela rejeitava, ignorava e humilhava. Hoje ela era possuída a força por qualquer um que tivesse poder ou dinheiro para comprá-la. Novamente ela pensa: "tudo se foi e o que sobrou?"
O homem chega atrás dela e a abraça. Ela suspira e sente a nostalgia sobrepor a realidade cruel de um mundo devastado, sem lei, violento e selvagem. Para onde foi o amor? Isso já existiu ou era um meio de a natureza perpetuar a procriação da raça humana? Por que os homens são tão cruéis? O que os diferencia dos animais mais ferozes, dos predadores mais sanguinários e impiedosos? Por acaso o homem é diferente deles se lhe faltar comida, água e abrigo e ele tiver de lutar pela sobrevivência? Que mundo estúpido é esse que a mulher pensou que existisse lei, justiça e compreensão? Ela fecha os olhos e se lamenta. Talvez seja a hora de começar a construir um mundo novo.
Ela o seduz e os dois fazem sexo sob o pôr do sol. Enquanto o homem a penetra, ela segura a cerca de telas e observa a nostálgica paisagem abaixo. Fazia tanto tempo que a mulher não fazia sexo por vontade própria e ela nem sentia a nauseante dor em sua vagina. Seus donos a possuíam com tanta violência que geralmente a machucavam.
Não se pode entender o impulso feminino de querer transformar o mundo ruim em um mundo bom, a abnegação das mulheres em passar por cima de suas próprias vontades, sonhos e desejos para auxiliar seus homens a mudar uma situação. Enquanto os homens se acovardam, se desesperam e se submetem, elas dão esperança, criam esperança. Não se pode compreender como elas carregam a esperança em suas almas quando o homem carrega apenas a dor. Talvez seja essa a saída que a natureza encontrou de perpetuar a vida, a de dar às mulheres a esperança de ver um mundo bom.
O sexo chega ao fim. O homem não sabe mas a mulher suspeita em seu subconsciente que ela acaba de conceber. Eles se vestem e continuam a caminhada pelas ruas desertas da cidade. Em seu ventre está a esperança, a nova geração que reconstruirá o mundo das cinzas e realizará o implacável impulso feminino de ver novamente o amanhecer de um mundo bom.

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