quarta-feira, 29 de abril de 2015

Não Estou Em Lugar Nenhum




Alguém uma vez disse
“Quando você está em um lugar”
“Pensando em outro lugar”
“Você não está em lugar nenhum”
É exatamente como me sinto nesse momento

O escritor caminha pelas ruas
Está anoitecendo e o poente é tão magnífico
O vento sopra frio e lhe dá calafrios
Discretamente o inverno está chegando

Ele imagina-se em diversas situações de seus livros
O personagem contemplando a noite
Aquele anoitecer brilhante da cidade grande
E a belíssima loira, sua musa inspiradora

Casais jovens e belos se apaixonando
O romance proibido
O casamento envolvido
Geralmente quem sente menos amor é aquele que sofre menos

E o homem romântico e persuasivo
Vestindo terno, gravata e elegantes sapatos sociais
Estende sua mão à mulher e lhe oferece uma rosa dizendo:
“Uma flor para uma flor”

E a mulher dedicada e profissional
Ocupada demais com sua vida e sua carreira
Se fascina com o jovem rapaz, de sentimentos tão puros
E finalmente aceita seu pedido para sair

E o piloto vive voando pelo céu
E todo dia está decolando e aterrissando os aviões
Mas diferente dos pilotos que caminham pela terra
O piloto está sempre ausente caminhando nas nuvens

E a mãe leva seu filho no colo
Dentro do ônibus a caminho de casa
E ela pega seu celular, enviando mensagens
Por que ela ainda quer tempo para ter amigos

E o pai tem que trabalhar para pagar as contas
Mas o dinheiro não será o suficiente esse mês
E mesmo assim ele pede um dia fora no trabalho
Para ver sua filha dançar quadrilha na escola infantil

E todos seus personagens depressivos
Que não tem amor pela vida
Olham para os lados, procurando uma saída
Mas não encontram solução alguma

Se revolvem , se criam
Se entristecem, se confiam
Mas nenhum deles se comunicam
Por que só existem na cabeça do escritor

O escritor para em frente ao espelho
E no reflexo ele enxerga a mim
E no reflexo do meu espelho
Eu enxergo o escritor

Alguém uma vez disse
“Quando uma pessoa está em um lugar”
“Pensando em outro lugar”
“Ela não está em lugar nenhum”

É exatamente como me sinto nesse momento

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Case-se Comigo na Ilha de Izu



 

Case-se comigo na ilha de Izu

A ilha do paraíso eterno
Ou a entrada do tenebroso inferno
A morada dos anjos e dos sonhos
Ou a casa dos próprios demônios

Aqui criaremos nossos filhos
Serão todos educados e bonzinhos
Ou maníacos, psicopatas e assassinos
Pode ser

Venha comigo respirar o enxofre
Esse aroma repulsivo e podre
O teu cheiro é tão agradável e sereno
No meu perfume tem o gás do veneno

Teu vestido é tão branco e cheio de pureza
O teu véu é tão branco e cheio de beleza
O teu buquê tem tantas flores belas e magníficas
Uma pena que daqui a pouco você estará inteira coberta de cinzas

Aceite minha aliança em teu dedo
Quero ficar com você o tempo inteiro
Sob a máscara posso ver o teu sorriso
Ou estará chorando por eu te arrastar a esse abismo?

Veja os barcos fugirem pelo horizonte
Veja o vulcão expelir lava pelos montes
Essa ilha cheia de perigos e sofrimento
Onde hoje realizamos nosso casamento

Sob a venenosa nuvem vulcânica
A aparência da festa é satânica
Chega ao fim nossa cerimônia maldita
Com a sagrada bênção xintoísta

Prometo te amar para sempre
Nesse lugar de enxofre, fumaça e magma fervente
Gás tóxico, solo infértil e calor
Izu, o lugar onde te darei meu amor

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Necromancia




[Trecho do meu primeiro livro]

O ritual começa diante dos olhos dos três. O líder alerta o homem dizendo:
- Para se reanimar um cadáver deve-se roubar uma alma do mundo espiritual e trazê-la de volta para a vida. Existem consequências irreparáveis para aqueles que ousam retomar o que a própria morte tomou. Talvez a mulher que você ama não volte do jeito que a conheceu, talvez a alma de outra pessoa se apodere de seu corpo. Está disposto a correr este risco?
- Hoje eu sei que existe um destino pior do que a morte, é a própria vida, a vida fria e vazia na ausência de quem você ama. A morte foi injusta ao tirá-la de mim, esta noite eu a trarei de volta.
O viúvo está abatido e todas as suas palavras são de tristeza e dor. Os necromantes tocam os tambores e dançam ao redor da fogueira, o homem continua debruçado ao lado de sua mulher em silêncio.
O líder se aproxima da mulher morta sobre a cama de pedra, o corpo dela está embalsamado e perfumado. O necromante carrega uma série de objetos ritualísticos e frascos com os mais variados conteúdos. Enquanto os derrama sobre o cadáver, ele diz:
- Mel para que sua alma deseje os sabores da vida. Leite para que sua alma deseje os alimentos da terra. Sangue para que os jaguares a conduzam de volta para o mundo dos vivos. Saliva para que seu corpo tenha saúde. Água porque a água é a origem de toda a vida. Finalmente o sangue de teu marido para lembrar que foi o seu eterno amor que a desejou de volta, e que nem mesmo a morte foi capaz de separar estas almas.
O homem estende seu braço e o necromante corta seu pulso com uma adaga cerimonial. O sangue quente escorre pelo cadáver, o viúvo não hesita em momento algum.
A fogueira se intensifica e forma uma chama descontrolada. O súbito clarão assusta os necromantes e o terrível calor faz eles se afastarem. Alguém aparece no meio do fogo, agachado e imóvel com a aparência de uma sombra negra intocada pelas chamas. Aderotes se surpreende ao ver que o fogo é inofensivo e que a sombra se levanta e caminha normalmente como se nada pudesse lhe fazer mal.
A sombra caminha em direção ao corpo sobre a pedra, no fogo ela é visível, mas assim que ela deixa a pira ela desaparece totalmente. De repente a mulher morta abre os olhos, o guerreiro não consegue acreditar no que vê, ela está viva?
- Meu amor, você voltou?
O homem está prestes a abraçá-la quando o necromante ordena:
- Não toque nela!
A mulher tem um olhar vazio e parece não notar a multidão à sua volta. Ela se levanta lentamente, seus movimentos são desordenados e confusos aparentando estar ainda muito fraca. Ela caminha em espasmos a cada passo, seus ossos estalam e parecem estar se estilhaçando. Ela passa pela multidão sob seus olhares perplexos e sob o espanto de Aderotes, que ainda não acredita que uma mulher morta vive novamente. Finalmente ela sucumbe às próprias forças e desaba no chão coberto de grama e terra úmida.
- Não! – o homem grita e olha para o necromante, ele o autoriza e então o homem corre para ajudar sua mulher. – Meu amor, não vá! Eu estou aqui, tudo vai ficar bem...!
O homem chora novamente e suas lágrimas caem no rosto de sua esposa. Ela ainda está inconsciente quando de repente abre os olhos, grita ferozmente como um jaguar faminto e o morde no ombro direito, fazendo-o se contorcer de dor. Os necromantes tentam livrá-lo e se espantam ao ver que os olhos dela estão negros como a face da morte. Eles a seguram pelos braços, mas ela se desvencilha e corre para a escuridão da selva.
O necromante aparece e fala ao viúvo:
- O equilíbrio entre a vida e a morte foi abalado. As forças da natureza foram alteradas, o que você conhecia por “vida” não é o que acontece aqui, voltar da morte não é como se curar de uma doença.
O rugido feroz reverbera entre as árvores escuras que cercam a tribo. Eles sabem que não foi um jaguar, todos se entreolham e temem a mulher que voltou da morte.
- Mas que aberração maldita é esta...?! – exclama Gualpa.
Alguém grita na penumbra da fogueira e é arrastado pelos tornozelos para a selva, a vítima arranha a terra molhada na vã tentativa de salvar sua vida. Eles ouvem os gritos de pânico e dor em meio aos rugidos ferozes da mulher. Então tudo se silencia novamente.
- O que você fez com ela? No que ela se tornou?
A luz dourada da fogueira ilumina um semblante enigmático do necromante. O rugido feral ressurge e outra pessoa é arrastada para a selva, sendo morta na escuridão. O caos então domina o lugar e todos correm para suas tendas. Em pânico eles percebem que a mulher também está lá dentro e faz outras vítimas. 
Um a um começam a cair, pessoas são pisoteadas, mulheres se apavoram, crianças choram, alguns apunhalam uns aos outros com adagas e machados pensando ser a mulher. O pandemônio se alastra em meio a gritos e sangue derramado, então o necromante diz:
- Matem com fogo!
As pessoas apanham toras flamejantes da fogueira e queimam suas mãos, outras tentam acender tochas e são mortas por mordidas no pescoço. A mulher corre de tenda em tenda, se esquiva dos necromantes e se esconde na escuridão da selva até atacar de novo. Eles lançam as tochas no telhado das tendas e queimam uma a uma sem ter certeza se a mulher está lá dentro ou não. Logo toda a tribo começa a arder em chamas e a fumaça sobe ao céu escarlate.
Um dos necromantes se levanta do chão, olha para cima e exibe seu rosto ensanguentado. Em alucinação ele diz:
- Vejo espíritos ceifeiros voando pelo céu... – o homem olha para seus braços e peito e então continua. – Vejo cristais brilhantes como o vidro envolver meu corpo... O Néctar da Morte, tão belo, tão maravilhoso...
A mulher pula em suas costas e o morde, fazendo o seu sangue jorrar.
Os sobreviventes correm aos pés do líder e suplicam:
- Salve-nos! Quebre este feitiço antes que pereçamos!
- Eu não posso fazer nada. A fúria da morte voltou no corpo dela, as almas vingativas dos condenados se apoderaram da mulher. Nós abrimos um elo entre duas dimensões que não deve existir, o mundo dos vivos e o castigo dos condenados. Cruzamos a última fronteira, o limite do proibido, não há mais esperança agora.
A tribo está queimando e suas labaredas se erguem ao céu. Iris chama o guerreiro e diz:
- Vamos sair daqui, depressa! – os dois se soltam das cordas.  Gualpa se surpreende e os chama:
- Ei! Não me deixem aqui! Soltem-me!
A mensageira está preparada para fugir, mas Aderotes está imóvel olhando para a tribo em chamas. O caos ainda impera e as pessoas correm por suas vidas, a mulher está brincando com eles.
- O que está fazendo?!
O guerreiro está parado, olhando fixamente para a tribo. Iris protesta, mas ele ignora.
Os gritos e a correria são desconcertantes, ele vê as atrocidades que a mulher feral fez em suas vítimas no chão. Ele espera pacientemente quando o rugido sobre-humano surge em suas costas e, com a rapidez de uma flecha, a mulher pula para atacá-lo. Ainda mais rápido, Aderotes se vira e, com apenas um braço, a segura pelo pescoço. A mulher debate-se como uma cobra exibindo seus dentes podres e ensanguentados. Ele vê pedaços de pele presos em sua mandíbula carnívora.
A mulher está nua e tem um corpo muito sensual apesar de sua atual aparência. Ela arranha e chuta o guerreiro, mas não consegue se soltar. Então a voz de Inago sussurra em seus ouvidos.
“A musa da morte, a mulher que voltou do além túmulo para trazer desgraça e terror. Eu conheço teus pensamentos, guerreiro, vi como olhaste para ela. Apesar de querer matá-la, tu a desejas. Adúltero, assassino... Está explicado porque o viúvo a quis de volta, seu corpo formoso provoca cobiça em todos os homens, até naqueles que querem destrui-la”.
Aderotes sai do transe e com ódio quebra o pescoço da mulher. Em seguida a lança na ardente pira de onde sua alma saiu. Ela cai nas brasas flamejantes e o fogo se intensifica, a mulher se contorce e esperneia em grande agonia, rugindo com a fúria de cem jaguares. Os sobreviventes veem, estarrecidos, as silhuetas negras das almas se levantarem de seu corpo queimado e voar pelo céu, uivando de dor e lamentando retornar ao castigo dos condenados. As almas sobem contorcendo-se, visíveis apenas no fogo e invisíveis fora dele.
O uivo fantasmagórico das almas cessa e o fogo perde a intensidade. Eles olham ao redor e veem a carnificina deixada pela mulher feral, o banho de sangue impressiona com grossas manchas de líquido escarlate e carne dilacerada. O silêncio volta a dominar a noite quando o necromante diz:
- Ousamos roubar sua alma do mundo espiritual e arrancá-la das mãos da morte. Criamos uma fenda entre os mundos para resgatá-la, mas as almas condenadas viram esta fenda e tentaram atravessá-la também. Foi um risco alto demais.
“Trouxemos sua alma de volta à vida, o além túmulo provou ser um lugar incapaz de separar este imenso amor. O marido daria tudo para ela voltar, sacrificando inclusive sua vida. A esposa ouviu esta oferta do outro lado dos portões da morte e a aceitou. A possibilidade de viver novamente com seu amor era real e irrecusável. Mas os condenados também ouviram e ninguém que experimenta o castigo no mundo espiritual volta o mesmo. As almas se apoderaram de seu corpo formando uma amálgama espiritual, os anos e rancor viram no corpo físico a possibilidade de vingança contra todos os vivos, os mesmos que lhes lançaram no tormento e lhes fizeram sofrer. O corpo da mulher ficou profanado e imundo, ela teria desejos fisiológicos abomináveis, a fome pela carne e pelo sangue, a necessidade insana de devorar os vivos e roer-lhes os seus ossos. Este é o chamado Ritual da Zumbificação, o corpo ressuscita, mas torna-se uma aberração execrável contra as leis da natureza. Se esta mulher tivesse sobrevivido, em semanas o veneno se formaria em sua saliva e todos aqueles que fossem mordidos e sobrevivessem seriam infectados pela maldição dos mortos-vivos”.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Fragmento 3




[Trecho do meu livro. Tema: Pós Apocalipse]

A mulher observa a paisagem sob o pôr do sol ao longe. Da calçada da rua, em frente a uma cerca de tela, ela admirava com olhares nostálgicos o vasto campo verde do clube onde as crianças costumavam jogar futebol, as avenidas ao longe onde antes ficavam congestionadas de carros, os morros que antes já foram verdes e arborizados, e o edifício da velha prefeitura heroicamente ainda de pé. Era a paisagem de sua cidade, ou pelo menos, do que sobrou dela.
Ela já havia perdido a noção dos meses ou das estações, mas a julgar pelo frio, era inverno e as nuvens vermelhas do poente moviam-se imperceptivelmente com os ventos gelados. Dolorosa nostalgia.
Em poucos minutos ia anoitecer e as ruas ficariam escuras. Ela sentia falta da eletricidade, do tempo em que quando anoitecia os postes acendiam as luzes, algo trivial e pateticamente óbvio. Ela jamais perdeu um segundo pensando que tudo o que conhecia, sua ostentação e padrão de vida, das maiores às menores coisas, simplesmente... desapareceria. Mas os noticiários avisavam, informavam, preveniam e advertiam e, ocupada demais com seus assuntos femininos e luxos pessoais, ela sempre ignorou.
Quando incomodada com as tensões globais que alarmavam o mundo, ela sempre respondia com a mesma resposta antes de excluir essa estúpida preocupação de sua cabeça e continuar com sua vida vazia e materialista: "o mundo não vai acabar!"
No passado, antes da guerra, ela passava todos os dias por essa rua e sequer notava a maravilhosa paisagem do poente sobre o campo verde. Quando criança ela frequentava o clube, nadava na piscina, comia na lanchonete, brincava de ginástica e às vezes passeava no vasto campo. O tempo passou e, dirigindo seu carro com o teto solar aberto, óculos escuros no rosto, falando ao celular e ouvindo o rádio, a lembrança do clube era mais uma das memórias infantis que não compatibilizavam com o estilo de vida de uma mulher adulta, com sua imagem, sua beleza, seu namorado mais bonito e suas roupas mais caras. Tudo isso é passado, tudo isso se foi, e o que sobrou?
A mulher continua observando a paisagem e atrás dela o homem arruma suas coisas na mochila. Ele guarda sua comida enlatada vencida e dobra suas roupas lavadas num córrego lodoso. Está anoitecendo e tudo ficará escuro, ele está preocupado em achar um abrigo e tem pressa em continuar caminhando, ela porém está cansada e pediu para pararem um pouco. Sem saber o porquê, o homem a vê contemplar a paisagem do poente com olhar distante e cheio de lágrimas.
Há um mês os dois fugiram de um povoamento na periferia da velha cidade. A mulher já estava lá quando ele chegou. O homem foi capturado por escravistas, homens com armaduras improvisadas, facas e lanças artesanais, alguns portando armas de fogo, e foi levado ao povoamento escravocrata. Ele ia ser vendido a outros povoamentos mas acabou por ficar no local, condenado a trabalhos forçados vestindo apenas uma faixa de roupa em sua cintura. A mulher era a escrava sexual dos chefes do povoamento, antes de fugir ela já havia sido estuprada oito vezes e muitas outras vezes antes de a comprarem de outro lugar. Fosse frio ou calor, ela era mantida com roupas leves, sensuais, e era obrigada a servi-los independentemente da condição física. Muitas vezes ela tinha fome e frio, e os chefes a alimentavam com os restos de seus banquetes, geralmente comida roubada de peregrinos solitários nas ruínas da cidade.
 O homem, jovem, belo e fisicamente fraco, ia ser estuprado também para a surpresa de todos. Os chefes, todos mais altos e fortes, cobiçaram-no após uma noite de bebedeira e só não conseguiram submetê-lo porque estavam muito bêbados para segurá-lo. A desesperada intenção de fugir veio depois que os chefes entraram em sua cela e deixaram a porta aberta. Ele passou por eles, rápido como um rato, e correu totalmente nu para o portão principal que, para sua sorte, não havia guardas protegendo-o. Antes de pular alguém o segurou pelo braço e o chamou, era a mulher. Ela lhe mostrou uma mochila cheia de roupas e comida e prometeu entregar-lhe se ele a levasse junto. O homem concordou e ambos pularam o portão, correndo pela noite e desde então fugindo pelas ruínas da cidade.
"Que reviravolta infeliz teve a minha vida" pensa a mulher. Quando ia para festas ela era cobiçada por homens mais velhos e ricos, e escolhia quem queria, o mais bonito, o mais alto, o mais forte, e os demais ela rejeitava, ignorava e humilhava. Hoje ela era possuída a força por qualquer um que tivesse poder ou dinheiro para comprá-la. Novamente ela pensa: "tudo se foi e o que sobrou?"
O homem chega atrás dela e a abraça. Ela suspira e sente a nostalgia sobrepor a realidade cruel de um mundo devastado, sem lei, violento e selvagem. Para onde foi o amor? Isso já existiu ou era um meio de a natureza perpetuar a procriação da raça humana? Por que os homens são tão cruéis? O que os diferencia dos animais mais ferozes, dos predadores mais sanguinários e impiedosos? Por acaso o homem é diferente deles se lhe faltar comida, água e abrigo e ele tiver de lutar pela sobrevivência? Que mundo estúpido é esse que a mulher pensou que existisse lei, justiça e compreensão? Ela fecha os olhos e se lamenta. Talvez seja a hora de começar a construir um mundo novo.
Ela o seduz e os dois fazem sexo sob o pôr do sol. Enquanto o homem a penetra, ela segura a cerca de telas e observa a nostálgica paisagem abaixo. Fazia tanto tempo que a mulher não fazia sexo por vontade própria e ela nem sentia a nauseante dor em sua vagina. Seus donos a possuíam com tanta violência que geralmente a machucavam.
Não se pode entender o impulso feminino de querer transformar o mundo ruim em um mundo bom, a abnegação das mulheres em passar por cima de suas próprias vontades, sonhos e desejos para auxiliar seus homens a mudar uma situação. Enquanto os homens se acovardam, se desesperam e se submetem, elas dão esperança, criam esperança. Não se pode compreender como elas carregam a esperança em suas almas quando o homem carrega apenas a dor. Talvez seja essa a saída que a natureza encontrou de perpetuar a vida, a de dar às mulheres a esperança de ver um mundo bom.
O sexo chega ao fim. O homem não sabe mas a mulher suspeita em seu subconsciente que ela acaba de conceber. Eles se vestem e continuam a caminhada pelas ruas desertas da cidade. Em seu ventre está a esperança, a nova geração que reconstruirá o mundo das cinzas e realizará o implacável impulso feminino de ver novamente o amanhecer de um mundo bom.