quinta-feira, 9 de março de 2017

Secretamente Triste




Nasci em um país perfeito
Onde os impostos altos e a desigualdade
Destroem os meus sonhos e minhas vontades

Nasci em uma família perfeita
Onde tenho por parâmetro não ser
Tudo aquilo o que eles insistem em ser

Novamente o ônibus lotado
Trânsito pesado, poluição e ar condicionado
O estresse de uma rotina de amargura e penúria
Só mais um dia em minha vida de tristeza e angústia

Não converso mais com ninguém
Ouvir seus problemas não me faz bem
Os mesmos problemas que nunca vão embora
Por que a solução tanto demora?

Parece que seus sonhos não se realizaram
E que ninguém conseguiu superar seus passados
Que sua vontade natural de independência
Os condenaram à uma família interesseira

Parece que eles não se esqueceram de seus antigos amigos
Que lhes rejeitaram, abandonaram e lhes trataram como inimigos
Que sua vontade de se vingar, sendo entre eles o melhor
Os afundaram no fracasso, sendo de todos eles o pior

Parece que seus sonhos de fazer uma faculdade
Não se realizará devido a tantas dificuldades
Problemas financeiros que assolam tantas famílias
Sufocam seus talentos, impedindo-os de mudar suas vidas

Os solteiros sofrem por não ter alguém
E não conseguem achar quem eles queiram também
Os casados sofrem de isolamento físico, afetivo e emocional
E em suas faces eu vejo que seus casamentos vão muito mal

Poluição atmosférica
Calor, frio e confusão pluviométrica
Poluição audiovisual
Pelos cantos sujeira e matéria fecal

Meus sapatos velhos pisam no asfalto
Eu atravesso a avenida entre os carros e o som alto
Nesse mundo há escassez de oportunidades e de provisões
Onde abandonamos nossa humanidade, disputando-as como cães

O mundo nos odeia
E seu ódio implacável nos rodeia
Ele quer nos tragar em nossa agonia
E segue nos torturando dia após dia

A depressão de nunca poder se abrir
A certeza de ninguém querer te ouvir
O passado que você não consegue superar
O futuro que você não consegue mais sonhar

Cresce a fila nos hospitais
Quem entra lá, vivo não sai mais
Cresce o índice de desemprego
E eu precisando tanto de dinheiro

O desespero preenche o vazio
Eu não aguento mais esse sofrimento comigo
E sem mais ter forças para o suportar
Vem crescendo a vontade de me matar

Não sei que horas são
Tiro o celular do meu bolso, segurando-o em minha mão
Esse foi o tempo suficiente
Para que ladrões em uma moto aparecessem

Ladrões roubam o meu celular
O mesmo que demorei tanto para comprar
Que ainda faltava o pagamento de dez prestações
Estourando o limite dos meus dois cartões

Gente feia, agressiva em sua abordagem
Pela aparência pareciam até selvagens
Com revólveres velhos e até enferrujados
Nas laterais de suas cabeças, os cabelos raspados

Eles puxam o aparelho junto com o fone de ouvido
Aquele que eu gostava tanto de tê-los comigo
No celular tinha as músicas que eu gostava de escutar
Que me distraíam da realidade dura que eu era obrigado a suportar

Assim como vieram, eles vão embora de repente
E assustado, me pressiono de costas contra a parede
Sem fôlego eu me sento ao lado dos montes de lixo
E do fedor nojento de urina de mendigo

As lágrimas ácidas saem em ebulição
E pareciam queimar a palma de minhas mãos
As pressiono fortemente contra meus olhos e meu rosto
Lamentando essa vida miserável de puro desgosto

Horas se passam
As pessoas me viam, mas me ignoravam
Eu devo ter adormecido na rua, como um bicho
Ao lado daquilo que eu era, um monte de lixo

Nem me lembro mais do que havia comigo
Olhando ao meu lado, eu vejo a pasta com os currículos
Eles eu sei que hoje não vou mais entregar
Não existe situação ruim que não possa piorar

Não posso me lamentar com ninguém
Amigos, conhecidos ou familiares também
Minha própria mãe não queria que eu existisse
Então eu sigo vivendo assim

Secretamente triste



quinta-feira, 2 de março de 2017

Trisha, a Terceira Voz




Em frente ao espelho de lâmpadas
Dentro do camarim da banda
Em meu rosto eu passo maquiagem de vários tons
E em minha boca passo um requintado batom

Minha pele negra fica tão bonita maquiada
Meu cabelo black power é tão lindo penteado
Meus longos brincos realçam meu rosto
E meu vestido florido define o meu corpo

Hoje será minha grande noite
A noite da minha estreia
Finalmente irei cantar
Meu sonho irá se realizar

Alegria, alegria e alegria
Meus colegas de banda esbanjam energia
Uns se drogam, sem conter a excitação
Todos estão felizes pela nossa apresentação

Eu nem sei mais o que é ser feliz
Ultimamente venho tendo um sonho estranho

Sonho que estou em um mundo cinzento
Me arrastando em um solo lamacento
De minhas roupas saem insetos pretos
E na lama se arrastam vermes marrons e nojentos

E mesmo acordada tenho alucinações
Às vezes em meu quarto vejo aparições

Vermes grotescos
Sonhos bizarros
Insetos pretos
Infestam o meu quarto

Tudo isso desde que os sonhos começaram
Estou me tornando apática

Subo ao palco e vejo toda a banda
É uma excelente banda de jazz
Mas, dirigindo-me ao fundo do palco
Fico atrás de todos
Pois do coral de três mulheres
Sou a terceira voz

Todas cantam muito bem
Mas me sinto excluída por minhas parceiras
Os holofotes quase nunca iluminam a gente
Mirando sempre nos músicos da frente

São dois cantores principais
Os dois são um casal
O marido toca guitarra enquanto canta em dueto
E a esposa dança sacudindo seus longos cabelos

“O sonho cinzento”
“Se tornará o seu lamento”

Está sumindo gente aqui

A primeira voz, que sempre abusava de mim por eu ser baixinha
Foi encontrada morta no porta-malas do carro, ao lado da pista
O baixista, que não quis ficar comigo por me achar feia e burra
Morreu ontem, vítima de overdose no quarto de uma prostituta

O rapaz do saxofone, um talentoso músico e artista
Foi preso por agredir e tentar violentar a própria prima
O baterista, um homem forte que disse que nunca me beijaria
Foi espancado e morto em um bar, envolvido em uma briga

“Os sonhos”
“Os sonhos estão me atormentando”

O guitarrista, um rapaz atlético que caçoava da minha apatia
Foi atropelado e deixado sem socorro no meio de uma avenida
Coitado daquele idiota
Acho que vai passar o resto da vida em uma cadeira de rodas

A namorada do tocador de trompete veio do Sul
Uma moça nascida em uma família de praticantes de vodu
Espalhou para todos que eu era uma bruxa possuída por espíritos das profundezas
Morreu esquartejada, durante um sinistro ritual de magia negra

“Minha cabeça”
“Estou perturbada por imagens grotescas”

O tocador de trombone estava desaparecido há quinze dias
Deixando muito preocupada a sua família
Foi encontrado no mato, morto com vinte e oito tiros
Não sei por que, mas o restante da banda não quer mais falar comigo

Ora, mas que surpresa
Hoje chegou a capa do disco LP
E na foto da banda ainda contém os antigos membros 
E também estou nela, parada ali atrás sem sorrir

Queria que minha mãe me visse agora
Ela nunca quis que eu deixasse o Louisiana
Queria que eu ficasse na igreja, cantando no louvor
Tendo meu talento desperdiçado em uma cidade do interior

Lembro quando ela me ligou e disse:
“Minha filha, volte para casa”
“Sua família e a igreja te amam”
“Você nunca devia ter abandonado a Jesus”

Talvez eu devesse lhe fazer uma visita agora

Enquanto eu estava sentada, olhando fixamente para a parede
O cantor líder se aproxima, com receio do que lhe acontecesse
Ele me diz que em sua banda eu não iria mais cantar
E que eu deveria imediatamente deixar aquele lugar

“A lama está sob minhas roupas e me contamina”
“Sujando meus seios, minha boca e minha vagina” 

Algo acontece com o cantor
E, tirando-me de meu estado catatônico
Ele beija os meus pés e se humilha
Dizendo “eu te adoro, ó minha deusa-rainha”

Então o cantor se ajoelha no chão 
E estendendo-lhe o braço ele beija a minha mão

Queime, estúdio, queime!
O fogo queimando é tão lindo
Tudo se distorce e derrete com as chamas dançantes
Seu brilho e poder são hipnotizantes

A fumaça sobe e começa a me sufocar
Meu rosto está estático, mas minha alma quer gargalhar

Os instrumentos queimam
As roupas de apresentação queimam
Os enfeites de palco queimam
Os discos, painéis e gravações queimam

A cantora, líder da banda, aparece de repente
E me vê ali entre as brasas ardentes
Mesmo em perigo, suada e suja ela é linda
Como eu tinha inveja dessa mulher magnífica

Mas ela sempre foi bondosa comigo
E sempre me apoiou quando eu cantava no trio
Uma humildade incompatível para uma estrela da música
Inocente demais para suportar os sanguessugas da indústria

Talvez seja por isso que ela nunca será uma superstar

Me guiando para fora do estúdio
Ela me leva para um local seguro
“Trisha, você está bem?” ela pergunta
“Sim” respondo um pouco confusa

E, preocupada com seu marido
Ela pergunta gritando em meu ouvido:

“Meu marido, você sabe onde está o meu marido?”
Eu aponto para o estúdio
E respondo:
“No fogo”

De repente ouvimos o forte som
E todo o estúdio vai aos ares em uma enorme explosão
Então a cantora grita em prantos
E com as mãos no rosto se desaba chorando

Parece que você não está tão bonita agora, não é?

Dias depois, um programa de TV exibe a matéria
A cantora, ainda traumatizada pela tragédia
Diz que não pretende cantar mais
“Nunca mais”

“Ainda sinto o arrastar dos vermes”
“Insetos pretos estão sob minha pele”
“A lama do dia cinzento me enfraquece”
“O sonho, em trevas, me enlouquece”

Saindo de meu devaneio, eu percebo
Meu parasita mental me falou
Dos treze membros da banda inteira
Parece que fui a única que sobrou

A última membra
Que se tornou a primeira
A única sobrevivente do incêndio atroz
Trisha,

A garota da terceira voz