sábado, 29 de abril de 2023

Do Painel do Meu Carro


 

Do painel do meu carro

A noite se revelava

Cidade seca e esterilizada

Impermeabilizada

 

Terra macia e sufocada

Pelas ruas agora asfaltadas

Algumas árvores cortadas

O cimento duro na calçada

 

Do painel do meu carro

Eu vejo muitas desgraças

Ambulantes vendendo balas

Os mendigos pelas praças

 

Do painel do meu carro

Vejo montes de lixo deixados  

Cachorros rasgando os sacos

Para comer alimentos estragados

 

Suspirando eu digo

 

Eu não quero mais voltar para casa

Eu não aguento mais aquela desgraçada

Roubou de mim os meus sonhos

Sempre esteve me enganando

Fez de mim um pobre cachorro

Encoleirado e jogado em um canto

 

Privado do direito de ter onde viver

Pois nunca foi meu o direito de ter

Apenas trabalhar e prover

E obedecer uma autoridade até morrer

 

O mais infeliz dos homens

A dura verdade me consome

Na vida nada faz sentido

Se conformar é tão esquisito

Uma vida inteira de trabalho duro

Só para se manter vivo

 

Então por que temos sonhos?

Por que os desejamos tanto?

Se não podemos realiza-los

Por que lutar pelo irrealizável?

 

Reflito no cruzamento

Enquanto espero no sinal vermelho

Minha raiva crescendo por dentro

Não há resposta para este lamento

 

Eu me lembro com um frágil sorriso

Que os únicos momentos em que eu me senti vivo

Foi quando eu tristemente chorava

Durante minha infância desgraçada

Pelo me pai que não me acolhia

Pela minha mãe que não me amava

 

Eu continuo dirigindo

Para me livrar dessa dor que eu sinto

Para fugir dessa angústia inexorável

E desse destino tão miserável

 

No máximo dos meus esforços

Com muitas lágrimas nos olhos

Com mãos trêmulas no volante

Minha passageira é a dor constante

 

E nesta noite eu digo

 

Do painel do meu carro

Vejo os carros estacionados

Motos para todos os lados

E caminhões lentos e pesados

 

Sob esta poderosa tempestade

De emoções em alta velocidade

Trabalhando sobre quatro rodas

Morto por dentro

Mas vivo por fora