sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Sonata - Parte 1 - Maynard



CAPÍTULO I

Sonata. Ano 2279.

Maynard abre os olhos. A noite quente lá fora dificulta seu sono, mas não foi isso que o fez acordar. Os aerocarros passam próximo à sua janela, produzindo zunidos e iluminando timidamente o ambiente. Levantando-se de sua cama retrátil, ele passa por caixas e mais caixas contendo poderosos materiais bélicos e se dirige ao banheiro.

Algo chama sua atenção. Ao olhar no reflexo ele vê riscos feitos por alguma ferramenta pontuda. Os riscos são legíveis e formam uma palavra. “Meia-noite”.

Um recado. Alguém entrou em seu apartamento e lhe deixou um recado. Maynard não se surpreende, ele já sabe do que se trata. Alguém está requisitando seu trabalho.

Uma hora se passa. Maynard, agora revigorado após o descanso, espera por seus empregadores.

Os aerocarros voam ao longe, zunindo e soprando o ar quente da metrópole. Algo se move calmamente atrás dele, calmo até demais. Virando-se, ele vê três homens encapuzados em trajes pretos. Ele reconhece aquela roupa tão estranha e antiquada, aqueles homens se pareciam com os antigos monges renascentistas. O vento sopra seus casacos e revela seus uniformes. São clérigos. Maynard conhece aquela facção, os Clérigos do Recomeço. Apesar de religiosos, nenhum deles é conhecido por conceder o perdão.

- Entregue este pacote ao nosso contato no distrito de Autremont. Pagaremos bem.

Sempre diretos ao ponto, nada de perguntas.

O homem vê um pequeno pacote lacrado. Ao guardá-lo em sua mochila, os homens dão as costas e vão embora.

Ser um Mercenário é fazer o que lhe mandam, o que precisa ser feito. É necessário discrição. Se um mercenário for curioso e perguntar demais, ele é melhor morto. Não interessa os motivos ou as intenções do trabalho, se são os motivos corretos para uma causa errada, a única – e somente única – coisa que interessa é o dinheiro.

§

A noite está movimentada nas alturas de Sonata. Maynard caminha pelas passarelas abarrotadas de gente. Ao olhar para o relógio, ele vê que horas são. 00h42min. Não importa o quão tarde seja, em Sonata a vida nunca pára.  

O agente leva consigo sua espingarda calibre 12, uma clássica espingarda pump action de doze tiros e coronha pistol grip. Ele sempre foi um entusiasta do século 20, um verdadeiro saudosista. Em uma cidade altamente tecnológica como aquela, armas de fogo são pouco comuns, algumas sendo até tratadas como relíquias. Mas, debaixo de seu casaco, ele leva sua pistola laser no coldre, afinal não se pode confiar demais no que é muito velho e antigo.

As pessoas nas passarelas e túneis caminham normalmente. Algumas estão indo trabalhar, outras vendem suas mercadorias em pequenas barracas, outras estão dentro das lojas... Aquela era a típica paisagem sonatense, nada de anormal. Maynard observa que a maioria delas têm membros bioprotéticos em seus corpos. Braços, pernas e até olhos substituídos totalmente pela avançada tecnologia sintética capaz de simular e aprimorar a antiga fisiologia. Diferentes delas, o agente não tem nenhuma prótese em seu corpo, ele via tudo aquilo como algo antinatural demais, quase um show de horror. Maynard era um homem ao seu tempo, um pouco antiquado para essas maravilhas tecnológicas modernas.

Ao lado da passarela, ele vê as linhas de aerometrô pelo céu. Suspensos nos trilhos pelo teto, os trens cruzavam as incontáveis megatorres em seus trajetos interurbanos. Essenciais ao transporte, eles conectavam os setores e distritos, levando milhares e milhares de trabalhadores diariamente aos seus destinos.

Muitos aerocarros sobrevoavam as passarelas. O milagre do conforto finalmente havia chegado no século 23, e diferente dos veículos poluentes, pesados e ultrapassados do século 21, em Sonata os motoristas podiam deslocar-se pelos ares, voando em vários níveis pelas vias virtuais exibidas em seus para-brisas. Maynard tem um aerocarro também, mas esta noite ele quis caminhar, afinal ele não tem um membro bioprotético para compensar o atrofiamento de seus músculos.

A polícia passa ao longe, a famigerada força de segurança pública metropolitana. Sempre em grupos de dois a três aerocarros, eles patrulham o céu. Rígidos, abusivos e implacáveis, sua conduta apenas reflete o caráter das próprias megacorporações que governam a cidade, fazendo o que for necessário para manter a ordem. O Ministério de Segurança Pública, o órgão que regulamenta a polícia, responde diretamente aos interesses das corporações, sendo assim chamada comumente de Polícia Corporativa. Com exceção dos terroristas, ninguém ousa desafia-los, pois estas ações geralmente acabam em prisão ou desaparecimento.

Passando por dentro dos tuneis entre as megatorres, ele vê as entradas dos andares que levam aos apartamentos. Devido ao enorme dimensionamento dos edifícios, cada andar tinha cerca de cinco mil apartamentos, distribuídos em várias alas para a facilidade de acesso. Sonata mantém um rígido código de conduta nos moradores, pois as paredes e corredores são limpos e bem conservados, evidenciando a educação e o forte senso de cidadania de seus habitantes.

As luzes são o que mais lhe chama a atenção. Nos tuneis há uma infinidade de painéis de neon, formando palavras e propagandas para atrair os clientes. Devido às belas cores dos neons, a escuridão do ambiente é tomada por esporádicas cores azuis, verdes e vermelhas, dançando com o piscar das letras.

Intentando cortar o caminho, o agente pega um atalho em um túnel de serviço. O túnel tem grossos tubos em sua parede, soltando gases e vapores em suas pequenas fissuras. O ambiente é coberto por uma fina neblina, a visão é limitada, o calor é desgastante e seus passos provocam ecos pela extensão. Definitivamente aquele não era um atalho seguro para os habitantes de Sonata, mas Maynard não era qualquer habitante. Um homem se aproxima na direção oposta, surgindo através da neblina.

O homem passa de cabeça baixa e continua apressadamente seu caminho, sem olhar para o agente uma única vez. Maynard conhecia essa reação, era quase como um instinto de defesa. Apesar da relativa segurança que a polícia impunha sobre a metrópole, ainda assim havia entre eles a cultura do medo. Infelizmente os sonatenses não sabiam que essa cultura eram pessoas como o próprio Maynard que ajudavam a fomentar.

O agente se aproxima de seu destino. Saindo ao ar livre, o vento sopra mais frio, soprando seus cabelos e agitando seu casaco. Ao olhar para o céu, ele vê relâmpagos e ouve trovões. Estava prestes a chover. “Que ótima surpresa” ironiza ele.

Maynard chega a um beco escuro entre os túneis das megatorres. Ele vê um homem velho agachado junto às sacolas de mercadorias transgênicas. Ao se aproximar, ele nota que são componentes e produtos capazes de estimular a mente e aprimorar os membros bioprotéticos de seus usuários. “Entorpecentes ilegais” pensa ele.

Ao ver o estranho se aproximando, o velho olha para ele e pergunta:

- Boa noite, meu jovem. Tenho ótimos produtos, todos de excelente qualidade.

- Sou o agente Maynard. Eu vim entregar o pacote.

Maynard pode ver que o velho possui olhos cibernéticos em sua face. Sem dizer mais uma palavra, o agente lança o pacote aos seus pés.

- Oh, sim. Como eu pude me esquecer...

O velho abre o pacote diante de seus olhos, sem se importar com a curiosidade ou até com a ganância do mercenário. Para a segurança dos próprios empregadores, objetos valiosos são melhores se mantidos em segredo. Esboçando decepção, o velho responde:

- Eu agradeço por me trazer o pacote aqui, mas esse aparelho é inútil.

O velho ergue seu braço e exibe um objeto em sua mão. Maynard vê o que se parece ser um decodificador.

- Isso não me interessa. Estou aqui pelo pagamento.

- Pagamento? – Sorri ele – Infelizmente não há pagamento nenhum.

Segurando sua arma sob o casaco, o agente responde:

- Ouça, cara. Me irritar não é muito inteligente.

- Ok, ok...! Acalme-se! – O velho se levanta e então diz – Eu não posso usar esse decodificador, os seguranças da Cybersys estão bloqueando o sinal não muito longe daqui. Esse decodificador é fraco, não consegue driblar os bloqueios corporativos. É isso o que os clérigos não entendem, a tecnologia deles é... ultrapassada.

- Isso é problema seu. – O agente segura novamente sua arma, pressionando-o para que ele lhe entregue o dinheiro.

- Espere! Eu lhe faço outra proposta. Se você desligar o sinal, eu te pago pelo serviço, em dobro.

Maynard se espanta.

- Como é?

- Sim. Você apenas precisa desligar o sinal e o bloqueio será suspenso. O que me diz?

Ponderando rapidamente, o agente chega a uma decisão. Seu instinto de mercenário fala mais alto.

- Está bem.

O velho sorri.

- Ótimo! – abrindo seu computador, o velho lhe mostra um mapa detalhado da região – Está vendo esta megatorre? Em seu terraço há uma antena instalada recentemente. A Cybersys a usa para bloquear o acesso ao ciberespaço, tentando conter a atividade criminal e limitar o acesso dos terroristas. Me disseram que a área é guardada 24 horas por dia, então você deve ser cuidadoso.

- Como eu desligo o sinal? – Pergunta Maynard.

- O decodificador tem acesso wireless. Apenas o deixe próximo à antena e ele fará todo o resto.

O velho lhe devolve o aparelho. Maynard vê uma tela azul com números aparecendo aleatoriamente no visor. Guardando-o em sua mochila, ele deixa o beco.

§

Espionagem é um trabalho interessante, o agente se põe em perigo, arrisca sua vida, acessa arquivos secretos e ainda recebe por isso. É como se sua vida de mercenário fosse um ciclo vicioso.  

Para receber mais dinheiro, ele se torna mais flexível, mais versátil, mais apto a qualquer tipo de serviço que possam lhe oferecer. Quanto mais experiência, mais dinheiro, e assim ele alimenta sua ganância. Vidas humanas têm pouco valor em sua linha de trabalho, pois este é o entrave que atrapalha a sociedade, esta tolerância aos inúteis e aos fracos. Maynard é um darwinista social, um sociopata, mesmo que nunca tenha se notado disso.

Começa a chover, relâmpagos iluminam brevemente o céu sobre a metrópole. O agente deve ser mais cauteloso. Passando pelas passarelas, as pessoas veem o imponente e silencioso homem e se intrigam. Quem era aquele homem tão calmo caminhando tranquilamente sob a chuva? E aquele estranho objeto em suas costas, seria aquilo uma arma?

Atravessando alguns túneis, o agente chega ao seu destino. Entrando no prédio, ele caminha pelo corredor e atravessa o andar. Os moradores não reconhecem o visitante, mas ninguém se importa, afinal todos estão ocupados demais lidando com seus próprios problemas. Avistando o elevador, ele vê dois homens armados e um bot de segurança guardando-o.

- Com licença, senhores. Este elevador leva para o terraço?

- Para trás, cidadão. Esta é uma área restrita.

- O que está havendo lá em cima?

- Eu mandei se afastar!

Os guardas apontam seus rifles para Maynard. E naquele momento o agente se irrita.

No terraço, os guardas vigiam seus seus postos tranquilamente. Após um trovão, a chuva recomeça e eles se abrigam em uma pequena área coberta em frente ao elevador. Alguns ficam ao ar livre e guardam a esbelta antena, que pisca intermitentemente contra as agitadas nuvens de chuva. Distraídos em seus próprios assuntos, eles se intrigam ao ver que o elevador está subindo. Pegando rapidamente o rádio, o capitão chama seus seguranças lá embaixo.

- Quem mandou vocês subirem?

Mas não há resposta, havendo apenas estática.

Então a porta se abre e ilumina o escuro ambiente. Não havia ninguém lá dentro, exceto o bot de segurança da Cybersys.

- O que está havendo aqui...?

De repente o bot abre fogo, metralhando os guardas na saída do elevador. O pânico se alastra. Seus avançados sensores de movimento são formidáveis, os guardas tentam se proteger, mas a metralhadora acoplada no pequeno robô mira precisamente até todos caírem.

- O bot foi hackeado!! – grita o capitão.

Os guardas se arrastam pelo chão, o terraço fica em alerta. Antes que o capitão pudesse chamar reforços, o alçapão no teto do elevador se abre e Maynard aparece. Empunhando sua espingarda, ele atira no restante dos guardas, eliminando-os e liberando a grossa cápsula de pólvora a cada tiro.

O agente olha para fora e avista a antena. Antes que pudesse passar pela porta, uma saraivada de lasers atinge o chão e as paredes, fazendo-o recuar. Recarregando sua espingarda, ele faz o destrave pump action, se levanta e atira de volta. Os guardas são amadores, cães destreinados que só sabem rosnar. Nenhum deles consegue parar Maynard.

Jogando uma granada de concussão, os guardas ficam atordoados e são abatidos um a um pelo poderoso agente. Enquanto avança pelo terraço, Maynard ouve um guarda agonizar atrás de seu esconderijo. Sem olhá-lo nos olhos, o agente estica seu braço para a direita e puxa o gatilho, encerrando seu sofrimento e remuniciando sua arma em seguida.

A chuva se intensifica e fica difícil caminhar. Aproximando-se da antena, ele vê um pequeno console onde os operadores configuram o sinal. Há um monitor ligado e uma frase na tela diz: “Conexão com o satélite estabelecida”. Colocando o decodificador sobre o painel, Maynard o posiciona próximo aos computadores e deixa o local.

Atravessando o terraço, ele pisa nas poças de água, espalhando as gotas a cada passo. Ao chegar na parte coberta, os guardas atiram com suas armas lasers contra o agente, fazendo-o se agachar. Mais seguranças da Cybersys haviam chegado, provavelmente eles viram o ataque pelas câmeras de vigilância. Antes que pudesse pegar o elevador e deixar aquela conturbada área, Maynard teria de passar por eles.

Protegido atrás de um balcão, o agente saca sua pistola laser e revida, atirando de volta enquanto tenta escapar daquela adversa situação. Atrás dele há uma enorme janela de vidro, agora toda arruinada devido aos incontáveis tiros. Ele consegue ver a antena lá fora, alta e colorida devido as suas luzes brilhantes. Distraído enquanto planeja como fugir, algo inesperado acontece.

A antena explode em uma gigantesca bola de fogo sobre o edifício, propagando sua onda de calor e luz por todo o terraço. Tudo é iluminado pelo clarão amarelo, atordoando os guardas que caminhavam em sua direção.

Aproveitando a chance, ele pega sua espingarda calibre 12 e se levanta. Antes que seus olhos se recuperassem da intensa luz, os guardas são alvejados por Maynard, voando pelos ares com o poderoso impacto.

- Malditos cretinos...! – sussurra ele – Aquilo era uma bomba!

Os clérigos o usaram. Eles sabiam daquilo o tempo todo e não lhe disseram nada. O aparelho não era um simples decodificador, na verdade era uma potente bomba planejada para explodir a nova antena instalada naquele distrito pela Cybersys. Nem os clérigos ou aquele velho estúpido pretendiam leva-la àquele terraço, obviamente eles pretendiam ativá-la de longe, mas para isso precisavam de alguém forte o bastante para passar pelos guardas e chegar à antena.

Maynard foi manipulado, novamente manipulado. Recarregando sua espingarda, ele se martiriza por dentro. Como ele pôde ser tão distraído? Não era a primeira vez que as facções o manipulavam, e certamente não será a última. Mas ele decide não se importar, afinal a facção precisava do melhor para o serviço, e Maynard era o melhor dos melhores.

Dirigindo-se para o elevador, ele passa pelos guardas mortos pelo chão. Altivo e imponente, ele leva sua espingarda na altura do peito. Mais uma missão bem-sucedida, mais um serviço bem feito, agora só resta receber o devido pagamento. Então algo chama sua atenção, seu celular vibra em seu bolso. Abrindo-o, uma mensagem aparece no visor touch-screen.

“Pagamento efetuado com sucesso”.

“Agradecemos pelo serviço”.

“Atenciosamente”.

“Clérigos do Recomeço”.

Olhando para o teto, ele vê câmeras de segurança filmando-o. Os malditos clérigos estavam monitorando-o de longe. O bloqueio de sinal havia desaparecido e os clérigos podiam invadir o ciberespaço novamente. Maynard sorri por dentro.

Dirigindo-se ao elevador, ele ouve algo se mexer atrás dele. Um guarda ainda está vivo e tenta surpreendê-lo. Prestes a atirar, Maynard se vira e atira nele antes, acertando-o no peito. Ao ser atingido, o guarda grita e sangra até morrer.

Liberando a cápsula vazia, Maynard em seguida deixa o local.