Caminhando através da fumaça e do vapor,
Aderotes vê uma fenda sobre o solo onde escorre um pequeno riacho de sangue. O guerreiro desce pela encosta e, para seu
espanto, há um rudimentar trono improvisado forrado de pele humana. Indignado,
ele se pergunta quem poderia assentar-se naquela coisa. Mais abaixo, à beira do
riacho, Aderotes enxerga alguém através da visão trêmula das chamas. Ele vê um homem agachado comendo carne humana de um osso em sua mão. É algo surreal.
O homem tem longos cabelos negros
enrolados em cachos, pelo formato de seu rosto o guerreiro percebe que é um
tanzemini. Apesar do sufocante calor, sua pele não está deformada
como a de todos os outros condenados, mas demonstra queimaduras cicatrizadas em seu
corpo. O guerreiro se aproxima e, enojado, diz:
- O que faz é repulsivo e detestável.
O canibal se assusta ao ver o intruso e,
irônico, responde:
- E o que vai fazer? Condenar-me ao fosso de
lava para que eu pague eternamente por meus pecados em constante tormento, onde minhas vítimas em vida poderão assistir meu pranto
indescritível com sádica satisfação? – então ele afirma seriamente – Eu já morri!
Aderotes acha hilária a inteligente resposta,
mas não o demonstra.
- Você é filósofo?
- Filósofo...? Os pensadores que tentam
explicar amargamente sua condenação recebem títulos no Sheol? Não sei se mereço
esta honra.
- O juiz do mundo dos mortos lhe concedeu este
titulo. Por quê?
- Porque sou o único que tento explicar a causa
de minha danação, de como vim parar no mais vil dos mundos, no fosso mais fundo
debaixo dos pés dos deuses do qual ninguém consegue sair. – então o homem tristemente conclui – E tentar
encontrar um alívio para minha alma.
Alívio através da filosofia. Aderotes já ouviu
isto antes.
- Busca redenção tardia em tua hora mais negra.
Não é diferente de ninguém aqui.
O homem ri e, levantando-se, responde
amistosamente:
- Redenção? Não sou tolo de me agarrar ao que é
impossível para mim. Nós, os condenados, já passamos da última chance de nos
redimir muito antes de morrermos e pararmos aqui. – o homem se identifica – Eu sou Koliac, o fatalista.
- Fatalista? O que é isto? – pergunta o
guerreiro, demonstrando curiosidade.
- É a minha teoria filosófica, o pilar do meu
alívio espiritual. Criei o Fatalismo para atenuar meu sofrimento e me conformar
com os incontáveis pecados que cometi em vida. – Koliac pergunta. – De onde
vens, jovem alma?
- Razerote.
- Sim, há muitos razerotenses aqui, porém nunca
vi Razerote pessoalmente. Vocês são um povo orgulhoso, disciplinado,
culto e na mesma medida, triste. Teus conterrâneos lamentam uma guerra
centenária em tua nação, de como ela assolou a terra e ceifou muitas vidas.
Vocês são um povo muito sofrido. Vejo que a paz fugiu de vocês há muito tempo.
O guerreiro prefere não comentar.
- Vê este lugar? – continua Koliac – O Sheol,
o destino final para todas as almas sádicas, o derradeiro castigo dos ímpios, o
símbolo autoritário da justiça pós-morte. No Sheol encontram-se reis,
príncipes, imperadores, nobres, mas também escravos e vassalos. Não importa a
nação de origem, a classe social, o título de honra, o sangue nobre ou o
simples mérito, este lugar não faz distinção. Mas o que todas essas almas têm
em comum além do pecado e da morte? Sheol.
- Vocês estão aqui porque mereceram. O que
fizeram em vida foi a causa de tamanho tormento.
- Mas e se eu disser que, independente do que
fizemos em vida, Sheol fosse o destino final imutável e inevitável de nossas
almas? – pergunta Koliac, desafiante.
Aderotes demonstra-se cético.
- O que você fez para parar aqui, afinal?
O fatalista suspira amargamente e, caminhando
para seu trono, assenta-se com semblante pesaroso.
- Jovem alma, o que você entende por
assassinato? – pergunta ele, surpreendendo o guerreiro – Ou por arte? As duas
coisas são opostas uma à outra ou existe uma relação entre elas que as une e as
singulariza?
“A pele humana, o coro que veste o corpo como
uma roupa e abriga a vida, revestindo-nos nos mais variados formatos e
definindo nossas identidades, é como se fosse o próprio gesso bruto e sem
forma, e eu o inspirado escultor prestes a dar-lhe a forma digna de uma obra de
arte. Eu sou o Escultor, a pele é minha matéria prima e minhas ferramentas são
as mais afiadas facas. Com a pele, eu esfolava o corpo das vítimas e vestia
seus coros, fazendo-as me ver vestido em suas próprias peles. Não é normal
esfolar animais para confeccionar roupas e sapatos? Minha paixão doentia me
consumiu, costurei uma manta inteira com pele
de faces, foi meu verdadeiro legado, uma lembrança de minha arte. Cada vítima
costurada lado a lado, unidas na mais esplêndida expressão artística pelas mãos
do mais legítimo gênio da escultura. Vê este trono? Forrado completamente pela
mesma parte do corpo que nos inunda de dezenas de sensações, das dolorosas às
prazerosas, a primeira parte visível às pessoas,a Pele. A sensação do toque, da
atração, do sexo, todas ligadas uma a uma para formar o assento do único
artista que andou sobre a face da terra e pôde reconhecer o inesgotável
potencial da pele humana. Estou assentado na parte humana que nos desperta o
amor...”
Koliac encerra se discurso dizendo:
- O que você entende por assassinato eu chamo
de a mais doce arte.
Após algum tempo, o guerreiro responde em desprezo:
- Você é louco.
- Talvez. Talvez a loucura seja uma variante da
razão, talvez a transgressão da loucura fosse predestinada a mim, mas o que
importa é que no Fatalismo bem e mal, razão e loucura, são irrelevantes, e que
as consequências finais estão fadadas a acontecer dentro do senso crítico comum
ou não.
“Sheol, o destino final inevitável a mim.
Imagine que a vida seja um jogo de escolhas certas e erradas, que dependendo de
nossas ações arcaremos com as responsabilidades perante o tribunal da morte.
Entretanto, imagine que independente de nossas escolhas e ações, está tudo
preestabelecido e destinado a acontecer numa sequência inquebrantável de eventos
acima de nossa compreensão. Eis o Fatalismo, uma teoria que se contrapõe ao
Predeterminismo, mas que também não se alinha ao Livre-Arbítrio, uma teoria
ambivalente que equilibra o imutável com o poder de escolha”.
“Considere a proposição: se o homem escolher
ser maligno, sua alma estará condenada ao Sheol; se o homem escolher ser
benevolente, sua alma poderá se salvar do Sheol; independente da escolha do bem
ou mal, o homem perderá sua alma no Sheol; se o homem for maligno e escolher
ser benevolente, ou vice versa, sua alma estará condenada ao Sheol; logo, a
escolha é inútil. O que te faz ser maligno? O que te influencia? Ou o mal
nasceu dentro de ti e lhe inibiu o poder de escolher? É justo ser condenado pelo
mal inerente à tua essência? Não existe poder de escolha, mas a escolha
existe. Os benevolentes serão salvos pela benevolência, se assim o escolherem”.
- O Fatalismo contradiz a si mesmo em seus
próprios argumentos. O destino predeterminado existe, mas pode ser mudado com o
poder de escolha? – pergunta Aderotes, tentando compreender.
- Não, jovem alma. Não há contradição.
“Quem
decide? Quem define todas as aparências? Estamos nós à deriva neste buraco temporal em direção ao futuro negro e desconhecido? O Predeterminismo não é
novidade aos otimistas e pessimistas, o Livre-Arbítrio é velho, mas o Fatalismo é a
resposta metafísica clara e objetiva às aflições da Alma. Os fatores
influenciáveis da vida como a religião, a política e a ciência são como
talhadeiras que moldam nossa personalidade individual e indivisível, são como
nuvens que, se você não permitir, não podem lhe fazer mal algum. Você vive do que
escolhe sem saber que o destino o escolheu. Todo Homem fará as perguntas e todo
Homem sofrerá com a resposta. Não há saída para o destino final da alma, Estrela
Púrpura ou Paraíso, redenção ou danação, não existe uma terceira opção. Nós, os
condenados ao Sheol, olhamos para os vivos com ódio e inveja, mas também com
esperança, não para que se salvem, mas para que nós voltemos a viver novamente e
eles sejam lançados aqui. Os vivos são ignorantes do poder de escolha e merecem
estar em nosso lugar. Há aqueles que vagam depois de mortos pelo mundo dos
vivos, fogem do tribunal da morte e procuram sozinhos sua própria redenção numa
existência fria, desonrosa e covarde. A Escolha depende dos humanos, mas quem
decide acima de nossas escolhas? O Fatalismo acredita na existência de uma
Entidade Universal onisciente e infinita criadora dos poderes ambivalentes
conflitantes, mas harmoniosos do Predeterminismo e do Livre-Arbítrio. Temos o
poder de escolha num universo paradoxal e fatalista onde todas as escolhas e
ações chegam a um mesmo fim”.
O guerreiro nada responde. Observando ao redor por um
tempo, ele vê as chamas ao longe, o vasto rio de lava fluindo e as bolhas se estourando e
soltando enxofre. Em meio as
montanhas pontiagudas, castelos flutuantes no céu e as colossais
estátuas de gigantes submersos na lava, os condenados peregrinavam em busca de salvação. "Sheol", pensa ele, "o destino final dos malvados".
- Esta teoria é vazia e redundante. Você tenta explicar o que todos sabem, que somos
responsáveis por nossas escolhas, mas se ludibria com a certeza do destino
predeterminado. – insiste o guerreiro – Não há fato conclusivo nisto.
- Você ainda não está morto, não é mesmo? –
pergunta o fatalista, sorrindo.
- Não.
- Mas agora conhece os segredos da Morte, o
destino final dos pecadores. Isto tudo é real, a dor é real. Existe algum
paradoxo no que vê? Talvez para acreditar no que digo você deva considerar uma
hipótese tão improvável que nem Urano seja capaz de
considerar. A sentença pós-morte é o destino do Fatalismo. O que seria necessário
fazer para nos libertarmos definitivamente das Escolhas e do destino final
fatalista?
Aderotes não sabe o que responder.
- Eu não sei.
- Para que a Alma não sofra as consequências da morte, a própria Morte deve morrer.
Então o guerreiro arregala os olhos, calando-se.
Sentindo a surpresa nos olhos dele, Koliac sorri, satisfeito ao perceber que o guerreiro
finalmente entendeu o que ele queria dizer. Um silêncio incômodo prevalece entre os
dois, mas ninguém diz mais nada.
Uma luz sobrenatural mística envolve o corpo de Aderotes, lentamente puxando-o para cima. O fatalista o
observa e, num movimento labial inaudível, parece dizer adeus. Levantando-se de seu execrável trono, ele volta a comer carne humana à beira
do riacho de sangue, habituado e conformado com sua nova existência maldita.
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