quinta-feira, 17 de novembro de 2016

O Fatalista



Caminhando através da fumaça e do vapor, Aderotes vê uma fenda sobre o solo onde escorre um pequeno riacho de sangue. O guerreiro desce pela encosta e, para seu espanto, há um rudimentar trono improvisado forrado de pele humana. Indignado, ele se pergunta quem poderia assentar-se naquela coisa. Mais abaixo, à beira do riacho, Aderotes enxerga alguém através da visão trêmula das chamas. Ele vê um homem agachado comendo carne humana de um osso em sua mão. É algo surreal.
O homem tem longos cabelos negros enrolados em cachos, pelo formato de seu rosto o guerreiro percebe que é um tanzemini. Apesar do sufocante calor, sua pele não está deformada como a de todos os outros condenados, mas demonstra queimaduras cicatrizadas em seu corpo. O guerreiro se aproxima e, enojado, diz:
- O que faz é repulsivo e detestável.
O canibal se assusta ao ver o intruso e, irônico, responde:
- E o que vai fazer? Condenar-me ao fosso de lava para que eu pague eternamente por meus pecados em constante tormento, onde minhas vítimas em vida poderão assistir meu pranto indescritível com sádica satisfação? – então ele afirma seriamente – Eu já morri!
Aderotes acha hilária a inteligente resposta, mas não o demonstra.
- Você é filósofo?
- Filósofo...? Os pensadores que tentam explicar amargamente sua condenação recebem títulos no Sheol? Não sei se mereço esta honra.
- O juiz do mundo dos mortos lhe concedeu este titulo. Por quê?
- Porque sou o único que tento explicar a causa de minha danação, de como vim parar no mais vil dos mundos, no fosso mais fundo debaixo dos pés dos deuses do qual ninguém consegue sair.  – então o homem tristemente conclui – E tentar encontrar um alívio para minha alma.
Alívio através da filosofia. Aderotes já ouviu isto antes.
- Busca redenção tardia em tua hora mais negra. Não é diferente de ninguém aqui. 
O homem ri e, levantando-se, responde amistosamente:
- Redenção? Não sou tolo de me agarrar ao que é impossível para mim. Nós, os condenados, já passamos da última chance de nos redimir muito antes de morrermos e pararmos aqui. – o homem se identifica – Eu sou Koliac, o fatalista.  
- Fatalista? O que é isto? – pergunta o guerreiro, demonstrando curiosidade.
- É a minha teoria filosófica, o pilar do meu alívio espiritual. Criei o Fatalismo para atenuar meu sofrimento e me conformar com os incontáveis pecados que cometi em vida. – Koliac pergunta. – De onde vens, jovem alma?
- Razerote.
- Sim, há muitos razerotenses aqui, porém nunca vi Razerote pessoalmente. Vocês são um povo orgulhoso, disciplinado, culto e na mesma medida, triste. Teus conterrâneos lamentam uma guerra centenária em tua nação, de como ela assolou a terra e ceifou muitas vidas. Vocês são um povo muito sofrido. Vejo que a paz fugiu de vocês há muito tempo.
O guerreiro prefere não comentar.
- Vê este lugar? – continua Koliac – O Sheol, o destino final para todas as almas sádicas, o derradeiro castigo dos ímpios, o símbolo autoritário da justiça pós-morte. No Sheol encontram-se reis, príncipes, imperadores, nobres, mas também escravos e vassalos. Não importa a nação de origem, a classe social, o título de honra, o sangue nobre ou o simples mérito, este lugar não faz distinção. Mas o que todas essas almas têm em comum além do pecado e da morte? Sheol.
- Vocês estão aqui porque mereceram. O que fizeram em vida foi a causa de tamanho tormento.
- Mas e se eu disser que, independente do que fizemos em vida, Sheol fosse o destino final imutável e inevitável de nossas almas? – pergunta Koliac, desafiante.
Aderotes demonstra-se cético.
- O que você fez para parar aqui, afinal?
O fatalista suspira amargamente e, caminhando para seu trono, assenta-se com semblante pesaroso.
- Jovem alma, o que você entende por assassinato? – pergunta ele, surpreendendo o guerreiro – Ou por arte? As duas coisas são opostas uma à outra ou existe uma relação entre elas que as une e as singulariza?
“A pele humana, o coro que veste o corpo como uma roupa e abriga a vida, revestindo-nos nos mais variados formatos e definindo nossas identidades, é como se fosse o próprio gesso bruto e sem forma, e eu o inspirado escultor prestes a dar-lhe a forma digna de uma obra de arte. Eu sou o Escultor, a pele é minha matéria prima e minhas ferramentas são as mais afiadas facas. Com a pele, eu esfolava o corpo das vítimas e vestia seus coros, fazendo-as me ver vestido em suas próprias peles. Não é normal esfolar animais para confeccionar roupas e sapatos? Minha paixão doentia me consumiu, costurei uma manta inteira com pele de faces, foi meu verdadeiro legado, uma lembrança de minha arte. Cada vítima costurada lado a lado, unidas na mais esplêndida expressão artística pelas mãos do mais legítimo gênio da escultura. Vê este trono? Forrado completamente pela mesma parte do corpo que nos inunda de dezenas de sensações, das dolorosas às prazerosas, a primeira parte visível às pessoas,a Pele. A sensação do toque, da atração, do sexo, todas ligadas uma a uma para formar o assento do único artista que andou sobre a face da terra e pôde reconhecer o inesgotável potencial da pele humana. Estou assentado na parte humana que nos desperta o amor...”
Koliac encerra se discurso dizendo:
- O que você entende por assassinato eu chamo de a mais doce arte.
Após algum tempo, o guerreiro responde em desprezo:
- Você é louco.
- Talvez. Talvez a loucura seja uma variante da razão, talvez a transgressão da loucura fosse predestinada a mim, mas o que importa é que no Fatalismo bem e mal, razão e loucura, são irrelevantes, e que as consequências finais estão fadadas a acontecer dentro do senso crítico comum ou não.
“Sheol, o destino final inevitável a mim. Imagine que a vida seja um jogo de escolhas certas e erradas, que dependendo de nossas ações arcaremos com as responsabilidades perante o tribunal da morte. Entretanto, imagine que independente de nossas escolhas e ações, está tudo preestabelecido e destinado a acontecer numa sequência inquebrantável de eventos acima de nossa compreensão. Eis o Fatalismo, uma teoria que se contrapõe ao Predeterminismo, mas que também não se alinha ao Livre-Arbítrio, uma teoria ambivalente que equilibra o imutável com o poder de escolha”.
“Considere a proposição: se o homem escolher ser maligno, sua alma estará condenada ao Sheol; se o homem escolher ser benevolente, sua alma poderá se salvar do Sheol; independente da escolha do bem ou mal, o homem perderá sua alma no Sheol; se o homem for maligno e escolher ser benevolente, ou vice versa, sua alma estará condenada ao Sheol; logo, a escolha é inútil. O que te faz ser maligno? O que te influencia? Ou o mal nasceu dentro de ti e lhe inibiu o poder de escolher? É justo ser condenado pelo mal inerente à tua essência? Não existe poder de escolha, mas a escolha existe. Os benevolentes serão salvos pela benevolência, se assim o escolherem”.
- O Fatalismo contradiz a si mesmo em seus próprios argumentos. O destino predeterminado existe, mas pode ser mudado com o poder de escolha? – pergunta Aderotes, tentando compreender.
- Não, jovem alma. Não há contradição.
 “Quem decide? Quem define todas as aparências? Estamos nós à deriva neste buraco temporal em direção ao futuro negro e desconhecido? O Predeterminismo não é novidade aos otimistas e pessimistas, o Livre-Arbítrio é velho, mas o Fatalismo é a resposta metafísica clara e objetiva às aflições da Alma. Os fatores influenciáveis da vida como a religião, a política e a ciência são como talhadeiras que moldam nossa personalidade individual e indivisível, são como nuvens que, se você não permitir, não podem lhe fazer mal algum. Você vive do que escolhe sem saber que o destino o escolheu. Todo Homem fará as perguntas e todo Homem sofrerá com a resposta. Não há saída para o destino final da alma, Estrela Púrpura ou Paraíso, redenção ou danação, não existe uma terceira opção. Nós, os condenados ao Sheol, olhamos para os vivos com ódio e inveja, mas também com esperança, não para que se salvem, mas para que nós voltemos a viver novamente e eles sejam lançados aqui. Os vivos são ignorantes do poder de escolha e merecem estar em nosso lugar. Há aqueles que vagam depois de mortos pelo mundo dos vivos, fogem do tribunal da morte e procuram sozinhos sua própria redenção numa existência fria, desonrosa e covarde. A Escolha depende dos humanos, mas quem decide acima de nossas escolhas? O Fatalismo acredita na existência de uma Entidade Universal onisciente e infinita criadora dos poderes ambivalentes conflitantes, mas harmoniosos do Predeterminismo e do Livre-Arbítrio. Temos o poder de escolha num universo paradoxal e fatalista onde todas as escolhas e ações chegam a um mesmo fim”.
O guerreiro nada responde. Observando ao redor por um tempo, ele vê as chamas ao longe, o vasto rio de lava fluindo e as bolhas se estourando e soltando enxofre. Em meio as montanhas pontiagudas, castelos flutuantes no céu e as colossais estátuas de gigantes submersos na lava, os condenados peregrinavam em busca de salvação. "Sheol", pensa ele, "o destino final dos malvados".


- Esta teoria é vazia e redundante. Você tenta explicar o que todos sabem, que somos responsáveis por nossas escolhas, mas se ludibria com a certeza do destino predeterminado. – insiste o guerreiro – Não há fato conclusivo nisto.
- Você ainda não está morto, não é mesmo? – pergunta o fatalista, sorrindo.
- Não.
- Mas agora conhece os segredos da Morte, o destino final dos pecadores. Isto tudo é real, a dor é real. Existe algum paradoxo no que vê? Talvez para acreditar no que digo você deva considerar uma hipótese tão improvável que nem Urano seja capaz de considerar. A sentença pós-morte é o destino do Fatalismo. O que seria necessário fazer para nos libertarmos definitivamente das Escolhas e do destino final fatalista?
Aderotes não sabe o que responder.
- Eu não sei.
- Para que a Alma não sofra as consequências da morte, a própria Morte deve morrer.
Então o guerreiro arregala os olhos, calando-se. Sentindo a surpresa nos olhos dele, Koliac sorri, satisfeito ao perceber que o guerreiro finalmente entendeu o que ele queria dizer. Um silêncio incômodo prevalece entre os dois, mas ninguém diz mais nada.
Uma luz sobrenatural mística envolve o corpo de Aderotes, lentamente puxando-o para cima. O fatalista o observa e, num movimento labial inaudível, parece dizer adeus. Levantando-se de seu execrável trono, ele volta a comer carne humana à beira do riacho de sangue, habituado e conformado com sua nova existência maldita.