segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Setor L




[Trecho do meu terceiro livro. Tema: Cyberpunk]

Nathan passa seu dia de folga com seu sobrinho no apartamento de sua irmã. Os dois conversam assuntos de adultos enquanto a criança brinca inocentemente em seu computador.
- Gostou do meu computador, campeão?
- Como funciona o computador, tio Nathan?
- Funciona com eletricidade. – responde ele, evasivamente.
- O que é eletricidade?
- Eletricidade é o produto de tensão e corrente, resultando em potência elétrica.
- O que é potência elétrica?
- Potência elétrica são os efeitos primários e secundários da eletricidade medidos em Watts.
- O que é um Watt?
- Watt é o nome da unidade de potência criada por James Watt.
- Quem é James Watt?
Percebendo a insistência de seu filho, a irmã de Nathan diz:
- Não precisa responder tudo. Ele não sabe do que está falando.
- Não tem problema. Talvez seja curiosidade verdadeira e ele se tornará um engenheiro quando crescer. – Nathan olha para seu sobrinho e responde. – James Watt foi um físico que viveu no século 19 na Inglaterra.
 - Onde fica a Inglaterra?
Finalmente seu sobrinho faz uma pergunta que ele não consegue responder.
- Bem... Vamos procurar na internet.
Na caixa de texto do site de busca, Nathan digita a seguinte frase: “onde fica a Inglaterra?”. O resultado da busca retorna com uma resposta dura e inconveniente:
“Acesso Negado. Esta informação é restrita apenas ao conglomerado corporativo de Sonata”.
- O que foi, Nathan? Você parece nervoso.
- Eu estou!  - grita ele, assustando-os. – Olhe pra isso, é exatamente disso que estou falando! As corporações nos mantém sob controle e nos manipulam todos os dias! Você não vê?
- Do que está falando? Não me diga que é aquilo de novo?
- Primeiro restringem o acesso à informação, depois reprimem as manifestações nas vias públicas, e agora outra Lei Marcial? Isso sem falar dos desaparecidos. O que é que está havendo?!
- Não fale essas coisas na frente do meu filho! Não quero que ele seja um pirado neurótico como você!
- Então é isso o que sou? Um pirado neurótico? Por acaso disse algo que não seja verdade?
Sua irmã não sabe o que responder.
- Não me interessa o que diz ou o que pensa, eu não quero ouvir. Se não se importa com você mesmo, então se importe ao menos com sua família! Não vou por em risco a segurança de meu filho quando a polícia bater em minha porta procurando por alguém que fala demais.
Então um silêncio incômodo paira no lugar. Nathan não diz nada, ele já se acostumou com o silêncio, guardando para si a angústia e o vazio de viver sozinho numa cidade habitada por milhões.  Pensativo, ele se levanta e se despede. Ele não quer que sua família sofra com sua dor.
Na plataforma ao lado do megaedifício, ele espera pelo aero-ônibus. Ele não quis usar o aerometrô, está cansado demais para aturar aquelas pessoas alegres e materialistas que paqueram e cantam nos vagões.
Pessoas se aglomeram na plataforma. Prevendo que sua viagem de volta será muito desconfortável, ele desiste de pegar o aero-ônibus e chama um táxi.
Os aerocarros voam de um lado ao outro nas vias virtuais de Sonata. Eles passam por entre as torres em vários níveis e nunca parecem aliviar o trânsito da metrópole. De repente um aerocarro amarelo surge e buzina para as pessoas na plataforma. Rapidamente correndo para dentro do veículo, Nathan se senta no banco de trás. Ele ia dizer o destino quando vê outro homem sentado ao seu lado.
- O que é isso? Eu estou no táxi errado?
- Desculpe-me, senhor. Estamos com poucos aerocarros no trânsito. Com esses atentados terroristas muitos motoristas estão com medo de trabalhar.
Guardando para si o incômodo, ele assente e então diz:
- Leve-me ao distrito residencial Verdun.
- Sim senhor. Mas antes deixarei este cidadão no distrito industrial Phalanx, se não se incomodar.
Nathan responde:
- Não pode me deixar primeiro?
- Desculpe-me, senhor. Este passageiro estava aqui antes.
Não existe mais privacidade em Sonata, não existe mais paz. Os que se isolam geralmente ficam em seus apartamentos, escondidos e a salvo do mundo caótico lá fora. Pelo menos até a polícia aparecer e prendê-los por vadiagem e abandono de emprego.   
O táxi se movimenta e se alinha às vias virtuais do espaço aéreo urbano. Contrariado, Nathan se cala e pretende ficar em silêncio o tempo todo. Então o homem, o outro passageiro ao seu lado, pergunta:
- Você trabalha nas corporações?
O rapaz olha para o homem ao seu lado. Ele tem um rosto pálido e bem barbeado. Seus olhos são negros, como se demonstrassem vigilância e fanatismo. Estranhamente ele veste um casaco volumoso demais para um dia quente como aquele.
- Sim.
- Bio Prótesis...?
- Electro Core.
O homem assente, parecendo pensar algo.
- Sua escolaridade é de nível superior?
- Sim.
- Meus parabéns. Nem todos têm condições ou aptidões para estudar numa faculdade atualmente. E esses que não conseguem, como posso chamá-los... inaptos e desafortunados... acabam trabalhando o resto de suas vidas em serviços braçais pesados, sendo obrigados a implantarem membros bioprotéticos em seus corpos, braço por braço, perna por perna, até sua verdadeira essência orgânica desaparecer em degradantes linhas de produção industriais, sendo corroídos e triturados pelo estresse e pela dor até o dia em que morrerem.
Com a estranha reposta, Nathan vira sua cabeça, terminando a conversa.
- Muito prazer. – diz o homem, estendendo sua mão para cumprimentá-lo.
Nathan estende sua mão, exibindo seu braço biomecânico. O homem o vê e faz uma expressão de repugnância.
- Você é jovem, e por trabalhar nas corporações devo deduzir que é inteligente também. A organização da qual faço parte se beneficiaria muito de novos recrutas como você.
- Recruta? De que organização está falando?
O homem é obscuro ao responder.
- Nossa organização acredita que o uso prolongado de próteses e implantes causa um efeito neural nocivo no usuário, enfraquecendo-lhe a razão. Esses chips destroem o usuário, corpo e mente se acostumam à sua presença cada vez mais obrigatória e fundamental. O organismo não mais os rejeita, ao contrário, os aceita ainda mais. É um processo lento e silencioso de simbiose, muito mais forte do que qualquer droga.
- Está dizendo que implantes bioprotéticos, que curam pessoas e salvam vidas, são... simbióticos...?
- A fusão neural e corpórea funciona melhor se o usuário acredita que de fato os implantes possam ajudá-lo. A manipulação estará completa.
- Cegos enxergarem, surdos ouvirem e cadeirantes andarem é prejudicial para sua organização?
- A escravidão é um preço justo a se pagar?
- Somos escravos?
- Você trabalha numa corporação, não trabalha?
Então Nathan se cala.
O táxi continua voando pela metrópole, até as bonitas torres urbanas mudarem para as robustas tubulações da paisagem industrial.
- Você conhece o distrito industrial Phalanx do qual estou indo?
- Não.
O rapaz conhece. Fica no Setor K, ao lado do famoso muro de Contenção que rodeia a metrópole.
- Neste setor estão alguns daqueles que te falei, os trabalhadores braçais robóticos, meio máquina, meio humano, condenados a morrer aqui.
- Acho que você está exagerando.
- E também estão... – prossegue ele, ignorando o rapaz – ...aqueles manipulados, expostos a tempo demais à lavagem cerebral dos implantes. Estes são a escória, o câncer do novo mundo, a última ameaça que deve ser destruída.
- Destruir os trabalhadores? Essa discriminação realmente lhe faz sentido?
- Ah não, meu jovem. Acho que não fui claro. O trabalho destes não é produzir bens de consumo para essa podre sociedade corporativa. Estes não veem o dano que os implantes cibernéticos produzem... Estes o defendem.
Então o homem abre seu casaco e retira uma pistola de sua cintura. Nathan se apavora, o homem tem um cinturão de bombas ao redor de seu corpo!
Apontando a arma para a cabeça do motorista, ele diz:
- Desça o aerocarro ao galpão dos Trans-humanistas!
- O quê?! Que galpão dos Trans-humanistas? Eu não sei do que está falando!
- Então eu mesmo dirijo até lá... – o homem destrava a arma.
- Espere! Está bem, eu te levo lá!
O motorista conduz o aerocarro pelas tubulações e chaminés. Há alguns galpões nas megaestruturas de concreto, mas o motorista não sabe onde fica.
- Depressa! – grita o homem.
Nathan está paralisado. Agora ele consegue ver bem o terrorista ao seu lado. O homem não tem nenhum membro bioprotético aparente, como se seu corpo fosse puramente feito de carne e ossos, uma raridade hoje em dia. Definitivamente ele é membro de uma facção radical e violenta de Sonata, a sanguinária Militância Purista.
O motorista vira bruscamente o volante, fazendo o terrorista se desequilibrar. Num piscar de olhos, o motorista o ataca e tenta arduamente desarmá-lo. Nathan está apavorado e não sabe o que fazer. O aerocarro está desgovernado e voa perigosamente entre as vias e os prédios próximos. A arma do homem dispara, fazendo vários buracos na lataria do veículo. Como se aquilo tudo fosse um pesadelo ou um filme ruim, o motorista agarra as mãos do terrorista e tenta apontar a arma para o seu queixo. O aerocarro bate em alguma coisa e o desconcentra. Agora o terrorista força suas mãos e tenta mirá-la de volta para ele.
O aerocarro bate novamente. Nathan ouve um disparo. O motorista é baleado no peito e cai no banco da frente. O terrorista se inclina sobre o banco e tenta guiar o veículo. As bombas em sua cintura balançam, Nathan vê que são dezenas de granadas de mão. Sangue escorre para os pés do rapaz quando ele ouve:
- Ei, babaca.
O terrorista olha para baixo e vê o motorista segurando um pino em sua mão. O homem se desespera. Enquanto ele está distraído, Nathan aperta um botão no painel do aerocarro e as portas se abrem. Num momento muito improvável de coragem de quem quer sobreviver, Nathan empurra o terrorista com os pés, chutando-o para fora do veículo. O homem é lançado para fora, mas consegue se segurar na abertura da porta. Nathan se surpreende, os segundos antes da detonação estão demorando demais!
Reunindo suas forças, o motorista se levanta e pisa na mão do homem, esmagando seus dedos. O terrorista grita e solta, caindo descontroladamente pelo elevado céu de Sonata. Nathan olha para fora e vê o homem caindo, estranhamente ele parece sorrir. De repente a explosão sacode o ar, desmembrando seu corpo puro imaculado pela simbiose das máquinas em milhares de pedaços. 
Respirando aliviado, ele sente algo incomodar seu joelho. Nathan olha para o banco e vê outra granada, o pino estava ausente. Pulando para o banco do motorista, ele grita:
- Proteja-se!
O impacto da explosão é fascinante, quase alucinógeno. O rapaz perde a audição, o tempo parece desacelerar-se. Entre longos e confusos segundos, ele vê o fogo queimar o estofado e parte da lataria se soltar do resto do veículo. E paradoxalmente tudo isso parece tão... pacífico.
A audição e o tempo lentamente voltam ao normal, acompanhados de uma terrível dor física. Nathan olha para o que sobrou do para-brisa e vê o colossal muro de Contenção se aproximando. Na parede do muro está escrito: “Limite da cidade. Volte”. Puxando firmemente o volante, o aerocarro começa a subir enquanto se aproxima perigosamente da muralha. Nathan tem a impressão de estar escalando a barragem de uma usina hidrelétrica, algo extinto nos dias atuais.
O aerocarro chega ao topo, mas esgotado após o esforço, começa a cair novamente, desta vez no outro lado da Contenção. Acima do muro ele vê uma avenida larga e deserta, com arame farpado em seu entorno. Nathan treme. Seu corpo está inundado de adrenalina e surpresa, o que ele vê diante de seus olhos é inacreditável!
O mundo exterior é real!
A fronteira entre os mundos, o abismo entre a vida e a morte, Nathan se sente um deus vendo o inferno abaixo de si, sentado em seu trono flutuante no Paraíso. Ele vê a cidade cinzenta, arruinada e morta, os restos da antiga metrópole canadense que pulsava vida anos atrás. A mesma cidade rica e populosa que hoje carrega na escuridão memórias amargas de um passado inglório.
O aerocarro desce rapidamente. A paisagem vai se definindo quando ele vê enormes prédios em ruínas envolvidos por uma fina camada de neblina. Nathan sente medo ao ver que todos os lugares são escuros e vazios, nada convidativo a um lugar tão inóspito.
Caindo numa rua, o impacto reverbera em sua cabeça e ele desmaia.